Heleno Corrêa: Agora tem controle social da Saúde?
Agora tem controle social da Saúde?
Por Heleno Corrêa Filho*. no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
O governo brasileiro, por meio do Ministério da Saúde no comando do Sistema Único de Saúde (SUS), estabeleceu programas para reduzir filas de exames e cirurgias (2023), promover acesso a mais especialistas (2024) e incorporar componentes cirúrgicos, ambulatoriais e tratamento oncológico (2025, Agora Tem Especialistas-PATE).
Este último programa utiliza créditos financeiros e resgate de recursos devidos ao SUS para não precisar pagar com “dinheiro novo” os tratamentos e exames em instituições privadas devedoras que resolverem aderir. Para a instituição privada provedora de atenção à saúde aderir, precisa concordar em compensar débitos com serviços (Lei Federal 15.233, 07/10/2025).
No caso do PATE, não se trata do que a lei configura como Parceria Público-Privada (PPP), onde o poder público é financiador parcial de um empreendimento e o investidor se associa para obter lucros com consórcio social e privado.
A essência do PATE é troca de dívidas e créditos futuros por serviços. A gestão caberá a um “Instituto Social Autônomo” (AGESUS), e será operacionalizada pelo Grupo Hospitalar Conceição, uma empresa pública subordinada ao SUS, no papel de contratador.
Comentar a sequência de ações de governo em busca de estabelecer uma política de Estado para o SUS em acesso a cuidados especializados é um trabalho complicado.
A falta de acesso é resultado da história da dependência do SUS por não ter estabelecimentos, equipamentos e recursos humanos próprios suficientes em nível especializado.
Para ter este “equipamento” teria de superar o bloqueio dos lobbies privados no Congresso e Agências Reguladoras, bem como a atuação também histórica da maioria dos deputados e senadores negando financiamento público para saúde e educação.
A maioria neoliberal do Congresso rejeita orçamento público para saúde e educação ao mesmo tempo em que, com a mão escondida, dá isenção de impostos para os muito ricos, para os banqueiros, para os investidores-rentistas e agora para os donos de casas de apostas na Internet, escatologicamente chamados de ‘Bets’.
Candidato promete tudo para o SUS e depois dá tudo para sonegadores, investidores e exportadores de dinheiro para paraísos fiscais.
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Os defensores do SUS público, integral e de qualidade são compostos por grupos que aceitam as Parcerias Público-Privadas dentro de certos limites da ausência do Estado, e também por grupos que denunciam qualquer PPP como uma forma de privatização. Isto cria uma rusga social e política que não tem solução prática para quem está na gestão.
Se um gestor, como o ministro da Saúde, precisar socorrer uma emergência com uma parceria privada, incorrerá nesta discussão, que será sempre difícil se comparada com a proposta atual de trocar impostos não pagos por serviços.
Para alguns será “renúncia fiscal”, para outros será “transferência indevida de fundos”, para terceiros será objeto de denúncia e acusações de corrupção orçamentária. Na pobreza do SUS, todo mundo briga e ninguém tem razão. Não escapam nem as associações históricas do setor que são acusadas de conivência por um lado, e por outro, retaliadas por gestores insatisfeitos com as eventuais críticas.
A ação dos gestores se defronta com o dilema de fazer nada ou agir com controle de danos. Em um cenário de insuficiências, atender às críticas de quem é “contra” significa negar operar ou tratar quem está morrendo. Isto não combina com a ética da saúde.
Pessoas gravemente doentes não podem ser confrontadas com desculpas e alegações financeiras. Esperam atendimento.
Tudo isso só pode ser evitado se a gestão do Ministério da Saúde informar as decisões e combinar previamente com os aliados na Saúde Coletiva, não apenas com os adversários do CFM [Conselho Federal de Medicina] e AMB [Associação Médica Brasileira], como aconteceu em iniciativas anteriores, a exemplo do Programa Mais Médicos, cujos resultados poderiam ter sido mais bem assimilados pela sociedade sem os ataques neoliberais da corporação médica.
Estes fenômenos se repetiram com o lançamento do “Programa Mais Acesso a Especialistas” (2024) e do “Programa Agora Tem Especialistas” (2025) quando as gestões municipais e estaduais foram engolfadas pela onda golpista que elegeu a tsunami neoliberal anti-SUS de prefeitos, vereadores, deputados estaduais, federais e governadores que inundou o país a partir do golpe de Estado de 2016 contra a Presidenta Dilma e da campanha de ultradireita que criminalizou a política com as fraudes jurídicas da operação Lava-Jato.
DÚVIDAS NÃO RESPONDIDAS
Se o poder do Estado indutor, produtor, comprador, consumidor e executor de serviços não é suficiente para atender à demanda reprimida por serviços de saúde, a análise macroeconômica e política divulgada até outubro de 2025 não explica.
Como é que vamos comprar sem regular? Uma resposta gerencial será “Precisamos de metas”.
Lamentavelmente, sem Conselhos Populares de Saúde no controle dos gastos e dos serviços prestados, e sem vigilância participativa nos reguladores, ninguém declara que não cumpre metas.
Se existe a presunção de que 60 a 70% de tudo o que existe de infraestrutura e de serviços prestados é privada, o corolário é que vamos comprar deles fazendo escambo de serviços prestados sem contrapartida de dinheiro novo para abater em dívidas não pagas, não podemos privatizar mais nada, pois já está privatizado. Portanto, a acusação de que “estão privatizando o SUS” é tautológica. É uma discussão sobre o ovo e galinha.
Mas, e se o problema não forem as metas e sim o controle de execução e a participação social direta na base? Será que o “PATE” vai ser permeável à crítica do SUS pela base? Se já não é controlável socialmente pelas organizações acadêmicas e profissionais de saúde “pelo topo”, como será remediada a ausência de controle pela base?
Antigos ministros da Saúde, quando jovens, tiveram muito boa experiência com as tentativas de controle de produção de serviços do falecido INAMPS, utilizando ferramentas epidemiológicas construídas para tal fim.
Dentre as dúvidas não resolvidas até o momento, falta dizer que será feito pagamento por linhas de cuidado e não “por procedimentos” (Gentille de Melo agradece), como falta declarar e provavelmente já foi feito o reforço na realização de mutirões da EBSERH (Bem-vindo ao MEC que ignora sempre os pareceres do CNS).
Falta dizer se os valores a serem objeto de escambo de dívidas e créditos por cuidado especializado serão estabelecidos pelo gestor nacional ou se ficarão a cargo de negociações domésticas e municipais entre amigos e correligionários.
Falta dizer se os procedimentos e técnicas de maior complexidade e custo serão mapeados para investimento local e regional pelo SUS, condicionando futuras transferências fundo-a-fundo no SUS. Isto seria um bom remédio para substituir as misérias das “emendas PIX” que prometem saúde e entregam caixa dois.
Seria necessário quantificar e declarar o volume dos recursos que fazem falta na rede pública e que deveriam significar investimentos para estruturar, ampliar e aperfeiçoar a rede própria do SUS, para não exercer o papel deletério de beneficiar concorrentes privados diretos do SUS delegando sempre os serviços, ações e força de trabalho especializada.
Do ponto de vista macroeconômico e da arrecadação federal de débitos e impostos, a contratação de débito e crédito em troca de serviços pode criar um precedente sem volta.
Se a moda pega, ninguém mais paga o SUS para ressarcir os atendimentos públicos de pessoas que pagam as privadas. Não pagam e vão alegar que vão prover depois. Então, vão exigir mais financiamentos.
Se a forma de serviços for feita desregulada, será impossível verificar se os serviços prometidos foram mesmo feitos para as pessoas enviadas.
O velho INAMPS tinha esse problema ao pagar por Unidades de Serviço. Município sem central de referência e contrarreferência não tem como lidar com a resolutividade para avaliar os encaminhamentos. Os raros Consórcios Intermunicipais podem ser uma chave para criar grupos de acompanhamento constituídos pelo controle social dos Conselhos Municipais de Saúde.
O FIESS-PROUNI teve esse mesmo problema. O governo assumiu que as privadas de ensino não pagariam os impostos ‘como NUNCA pagaram”. Aí, fizeram proposta de que convertessem dívidas de impostos em bolsas de estudos.
Até hoje muitas bolsas de estudos são falsas, menores ou incompatíveis com o tamanho das dívidas dos sonegadores de impostos na educação. Teria de ser criado um mecanismo de contrainformação por parte dos usuários confirmando ou negando que tivessem recebido os serviços prometidos.
O usuário ou familiar do usuário teria de informar. Hoje com celulares isso é possível. Antigamente, com o INAMPS era uma farra. Cobravam e não faziam o serviço.
Não estamos nos expressando contrários à emergência sanitária de encaminhar pessoas para instituições devedoras. Estamos questionando o controle, a tabela de preços, a conferência e a colocação de barreiras para evitar que seja prática comum sonegar para depois fingir que paga.
Se não houver desembolso de dinheiro novo, se houver compensação cobrando mora, juros e multas sobre passivos anteriores ao calcular os “preços” dos serviços novos, a configuração política e jurídica pode favorecer pessoas que morreriam ou ficariam graves sem a prestação de serviços onde o SUS não contrata e não supre as necessidades.
Depende de COMO vai ser feito. Se for uma sequência de “descontos” premiando a sonegação, estamos todos lascados.
*Heleno Corrêa Filho é médico sanitarista, membro do Conselho Consultivo do Cebes.
Referências
Agora Tem Especialistas — Ministério da Saúde
Publicação de: Viomundo
