Flávio Kothe: “Me engana que eu gosto” e a lavagem cerebral para heroicizar os ucranianos e demonizar os russos
Me engana que eu gosto
O cultivo do ódio aos comunistas trouxe consigo algo mais permanente: a russofobia
Por Flávio R. Kothe, em A Terra é Redonda
Tentar decifrar narrativas fictícias propagadas como notícias não salva ninguém quando ninguém quer ser salvo, já que a maioria crê estar do lado dos salvos ao acreditar no que finge ter pé e cabeça, mas não tem tronco nenhum.
A razão crítica não muda a prática dominante: demanda séculos de ação incessante, sem garantia de se chegar a um patamar mais esclarecido. Penosos são os percursos da dissidência ideativa. Seus mártires não serão santificados nem terão altares de celebração.
O que prepondera na população é a postura do “me engana que eu gosto”.
É mais fácil aderir ao que tem a força das instituições e o poderio passivo das multidões. A razão, acuada num canto, não ousa erguer críticas, mais ainda se sabe que a razão dita crítica tem servido tantas vezes para camuflar dogmatices que não eram racionais nem críticas. Finge-se ainda criticar a torto e direito para não tocar no que realmente deveria ser criticado.
A manipulação das massas é tão antiga quanto a existência de massas e de poderosos que as dominavam.
A vestimenta de um rei, a crença num deus, o cerimonial da corte, o desfile de um exército, incenso e cânticos em rituais são apenas amostras de uma tradição longa e descontínua. A estetização do poder – e com ela a arte – sempre serviu para auratizar e legitimar quem dominava: para dar mais poder a quem já tinha poder.
Está em curso nos quintais locais uma lavagem cerebral com a heroicização de ucranianos e a demonização dos russos.
Vladimir Putin é posto como capeta no poder. Se ele é ou não é, não importa: diz-se que é.
Poetas declamam poemas pela paz, criancinhas entoam cânticos e fazem danças, o ator que faz o papel de ministro da Ucrânia é divinizado e aparece cada dia na mídia.
O decisivo livro de John Reed chamado Dez dias que abalaram o mundo contava a revolução comunista contra o czarismo em 1917.
Não por acaso os americanos fizeram um filme chamado Treze dias que abalaram o mundo, sobre a chamada crise dos mísseis em Cuba, da perspectiva da Casa Branca.
Conseguiram exorcizar a lembrança do livro e mostrar os comunistas como ameaça permanente ao solo americano. O que parecia ser apenas cultivo do ódio aos comunistas trouxe consigo algo mais permanente: a russofobia.
As pessoas são manipuladas e nem sabem que são. Também não querem saber.
Silvester Stalone protagonizou filmes em travava lutas com um pugilista russo, acabando por destroçá-lo.Em seriados americanos aparece com frequência o que se diz ser a “máfia russa”, formada por brutamontes frios, assassinos.
Essa “máfia” substitui o que antes era o comunista, a KGB. O herói americano pode ser loiro de olhos azuis como o Gibbs do NCIS ou um negro de olhos escuros como o herói de O protetor, pouco importa a estrutura de superfície: relevante é a função que desempenha.
O governo americano pode colocar mulheres negras em funções relevantes, o importante é que elas vão fazer o que a plutocracia americana quer. No último filme do 007, tentaram colocar como substituto do agente britânico uma mulher negra, para no fim fazerem ela dizer que seria melhor ele mesmo manter o papel.
Cor da pele, altura, sexo, preferência sexual, idade e assim por diante são apenas máscaras que escondem uma identidade secreta, que se mantém igual.
Quanto mais for a mesma a estrutura profunda, tanto mais convém que sejam diferentes as estruturas de superfície. Mostrei como isso funciona em diferentes gêneros no livro A narrativa trivial.[i] De nada adiantou.
A “máfia russa” corporifica o mal, enquanto o mocinho que corporifica o bem é o representante do governo americano que acaba com o bandido, depois de deixar que ele demonstre a maldade nele pressuposta.
Os faroestes antigos ensinavam os jovens sul-americanos a vibrar com os mocinhos brancos e a odiar comanches e mexicanos, vibrando quando a cavalaria vinha salvar os colonos cercados: aí se exaltava a conquista do centro de do oeste do continente.
Bonzinhos eram os invasores das terras indígenas ou mexicanas: exaltava-se aí o genocídio dos povos indígenas e o expansionismo bélico, como se fossem caminhos da salvação e civilização.
Se os jovens ianques podiam se identificar com os seus antepassados e heróis, os jovens sul-americanos não percebiam que, no esquema americano, a posição deles seria de índios e mexicanos. Eles se identificavam com quem não queria a sua identificação, pois não admitia a sua identidade.
As novas gerações são doutrinadas por filmes e seriados que procuram mostrar como (n)os Estados Unidos (se) combatem os criminosos.
As pessoas ficam na frente do televisor e acham que estão se divertindo, enquanto o seu cérebro está sendo conformado a ver o mundo como a plutocracia americana quer.
São aulas de catecismo sob a aparência de pura ficção, ficção pura. Essa lavagem cerebral ocorre também no noticiário da grande mídia: é uma forma de totalitarismo, tanto mais eficaz quanto menos percebida como tal.
Essa lavagem cerebral já ocorre há um século e só tem aumentado. Não há reação da razão crítica, a mídia brasileira apenas propaga o que o establishment quer que seja propagado.
O Brasil não faz parte da OTAN, mas a OTAN já faz parte do Brasil há dezenas de anos.
Nas décadas de 1960-70 foram instaladas ditaduras na América Latina a pretexto de defender a democracia. Quando o Brasil descobriu o pré-sal, viu-se que havia muito petróleo e planejou-se um golpe contra a presidente eleita, o que teve dentro do país a cooperação de muitos parlamentares, jornalistas, promotores, juízes.
A quem faz dentro do país a política de uma potência estrangeira chamava-se, no Estado Novo, de quinta-coluna. Hoje, tais pessoas esbravejam moralismo, são respeitadas e badaladas.
A OTAN representa os interesses da indústria bélica e de grandes empresas americanas. Ela diz o que a Comunidade Europeia deve fazer, e esta diz o que os presidentes e ministros dos países europeus ocidentais e centrais devem fazer.
A Europa foi ocupada por tropas americanas no final da Segunda Guerra. Elas se estabeleceram e não saíram mais: antigas metrópoles imperiais foram ocupadas por uma ex-colônia inglesa e perderam a soberania.
A OTAN foi a legitimação de uma ocupação, apresentada como aliança defensiva. Ela representa interesses econômicos e geopolíticos, que precisam ser legitimados pela supraestrutura ideativa, de esportes a bolsas de estudo, de turismo a filmes divertidos.
A eleição francesa recente teve por tema a aceitação ou não dessa dominação. Tanto a esquerda quanto a direita se propuseram lá ampliar a soberania nacional, o que envolveria uma ruptura com o status quo de bases aéreas, quartéis, bases navais, estacionamento de foguetes.
Há inteligência suficiente na OTAN para saber que não conseguiriam. Foi previsto que a centro-direita iria conseguir manter o status quo francês, só que a contradição entre soberania nacional e presença estrangeira ainda não está resolvida e vai se desdobrar, com o avanço da extrema-direita xenófoba num país que desde 1789 tenta se apresentar como campeão da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
A mídia globalizada brasileira, tanto no bombardeio sígnico durante a Lava Jato quanto na Guerra da Ucrânia, tem sido de direita, fazendo o que a OTAN quer.
No Brasil não se tem um canal russo de televisão a cabo, como se tem da Alemanha, França, Portugal, Japão, Inglaterra, Espanha. O canal chinês só fala inglês, não aparece ainda em espanhol ou português, as redes russas não estão presentes, um aplicativo como RT é pouco lido. Jornalistas mais críticos não só não têm espaço na mídia global como já foram vetados até em canais alternativos.
Finge-se que se está numa democracia, mas se vive num totalitarismo espiritual. Não há efetiva liberdade de expressão e manifestação, as pessoas não aprenderam a desenvolver uma liberdade interior de pensar por si. Quando parece haver tolerância é apenas porque o senhor dos anéis tem consciência da pouca importância do que aparece como alternativa.
Por que os jovens não aprendem a decifrar a manipulação de que são vítimas?
Eles não se enxergam como vítimas: acham que estão apenas se divertindo. Ficam do lado dos “mocinhos”, como as crianças antigamente brincavam de “camonha”, que deve ser uma corruptela de “come on”, e que obrigava a levantar as mãos, como se os latinos e sul-americanos não estivessem mais para índios do que para wasps dominantes.
Há uma regressão mental em curso, que aumenta com uma profunda degradação moral, em que delitos e crimes são cometidos sem que ocorram punições aos culpados.
Inventam-se culpas para os adversários, enquanto as sujeiras dos aliados são varridas para debaixo do tapete. Quando alguma coisa é contada, não tem consequências, é tornada irrelevante por outra notícia qualquer.
A razão crítica tende a resignar, porque percebe a própria impotência. Alguns procuram sendeiros alternativos, mas acabam participando do sistema ao atender a uma fração do mercado.
A negação da negação não é confortável e precisa ser superada. Por quê? Porque somos manipulados por uma metafísica salvacionista, que nos foi inculcada desde pequenos. A maioria vê a salvação no céu, depois da morte; a minoria, na terra, enquanto houver vida. Atitudes que parecem opostas, mas são complementares.
*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática).
Publicação de: Viomundo