Em “nome da paz”, EUA gastaram mais de US$ 8 trilhões em invasões militares desde 2001
A morte do líder do Estado Islâmico, Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi, em uma missão do exército estadunidense na Síria, foi comunicada pelo presidente Joe Biden como uma ação para “fazer do mundo um lugar mais seguro”. Da mesma forma, ao anunciar as sanções que aplicaria à Rússia após o início dos ataques na Ucrânia, Biden reforçou que as medidas chegam como resposta à agressão do presidente russo Vladimir Putin.
“Putin é o agressor. Putin escolheu essa guerra. Ele e seu país irão sofrer as consequências”, disse Biden.
A Casa Branca sugere buscar a paz nos países que invade e não economiza esforços para tal: segundo o projeto “Custos da Guerra”, desenvolvido na Universidade Brown, desde 2001, os Estados Unidos gastaram US$ 8 trilhões (cerca de R$ 40,4 trilhões) em guerras e ações militares pós-11 de setembro no Oriente Médio e na Ásia. A cifra é superior ao gasto total do governo norte-americano no ano fiscal de 2021, de US$ 6,8 trilhões, segundo o Departamento do Tesouro.
Apenas na Síria, em mais de uma década de intervenção estadunidense, e no Iraque, os gastos bélicos superam US$ 2 trilhões. Após 20 anos no Afeganistão, os gastos também foram calculados em mais US$ 2 trilhões. Nos territórios de conflito armado, as mortes foram calculadas em 929 mil vidas perdidas na chamada guerra ao terrorismo emplacada pelos Estados Unidos.
O mesmo estudo aponta que a atuação norte-americana entre 2018 e 2020 atingiu a 85 países, incluindo treinamento e assistência às forças de segurança em outros países, como no Brasil, na Argentina e no México nesse período.
Segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, em seu último relatório, em 2018, existem 625 bases militares oficiais em territórios estrangeiros. Contabilizando as clandestinas, o pesquisador em antropologia política David Vine revelou em estudo que em 2021 existiriam cerca de 750 bases militares estadunidenses. O maior número se concentra no Japão, com 120 bases ativas; na Alemanha, com 119; e na Coreia do Sul, com 73. Assim, os Estados Unidos são o país com maior presença militar e capacidade de ativação em qualquer região do mundo, mirando o que o jornalista e doutor em história social José Arbex destaca como “o nome do jogo”: a Eurásia.
“A questão central da política internacional, hoje, é quem controla a Eurásia, o coração do mundo em termos econômicos, de recursos naturais, com imensas reservas de petróleo e gás, de densidade populacional e é onde estão as potências nucleares, com exceção dos Estados Unidos”, pontua. “Após o desmantelamento da União Soviética, em 1990, o Departamento de Estado dos EUA assumiu como política considerar a Rússia como principal inimiga e criou daí uma teoria da política internacional para cercá-la, dado seu imenso território, através da Otan.”
Para Arbex, a tática de narrativa de um Estados Unidos pacífico é uma peça fundamental em sua atuação na geopolítica. “O agressor é sempre o outro. E a vergonha é que a mídia em geral se alinha a essa narrativa. Todos agora falam das sanções à Rússia. A pergunta é: quantos fizeram sanções contra os EUA quando mentiram abertamente em 2003, quando disseram que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa, e assassinaram centenas de milhares de civis, mulheres, crianças e idosos? Nenhuma.”
A guerra ao terror pós-11 de setembro
“A retórica da guerra ao terror a partir de 2001 deu ‘carta branca’ aos Estados Unidos para atacarem com base em mentiras”, observa Arbex. “Por outro lado, também estão as guerras híbridas, que fomentam movimentos como o impeachment da Dilma e o movimento pró-Bolsonaro, utilizando forças ultra reacionárias, neonazistas, fascistas, para gerar situações domésticas de acordo com os objetivos do império.”
A participação também indireta do governo norte-americano, seja na influência sobre o rumo político dos países (vide golpe da Bolívia, em 2019, ou a Lava Jato, no Brasil), seja no apoio a aliados (como Arábia Saudita em sua guerra no Iêmen e Israel em seu conflito contra a Palestina), revela sua ampla capacidade de intervenção logística e militar no mundo.
“Todas as guerras são, por princípio, ruins, seja por justificativa humanitária ou econômica”, destaca a professora de relações internacionais e doutora em ciência política, Cristina Pecequillo. “Todo conflito gera custos principalmente humanos, e toda guerra vai desorganizar um sistema geopolítico que existia previamente naquele local. Um exemplo disso são as operações dos EUA e da Otan no Afeganistão, em 2001, e no Iraque, em 2003, só para ficar no século 21. Provocou o surgimento do Estado Islâmico e a crise dos refugiados, com inúmeros imigrantes na África e no Oriente Médio.”
No caso da guerra na Ucrânia, Pecequillo ressalta: “Não é só uma guerra de fato, é uma guerra de narrativas. O Putin diz ser uma intervenção humanitária, mas não é. O Biden diz que o Putin é o agressor, mas o diz a partir dos interesses envolvidos. A narrativa dos EUA na construção dos conceitos de poder, democracia, potência, guerra, ainda é uma de suas grandes forças.”
Terra arrasada
Síria
A rivalidade entre Rússia e Estados Unidos se expressa no território da Síria. Tropas russas em bases sírias conferem o apoio do governo de Putin ao presidente da Síria, Bashar al Asad, com interesse no corredor ao mar Mediterrâneo que a Síria representa para a Rússia. Por outro lado, a Casa Branca trava batalha contra o Estado Islâmico para manter o controle sobre sua região de interesse.
Apenas em 2021, 1.271 civis, incluindo 229 crianças, foram mortos na Síria, segundo a Rede Síria para Direitos Humanos (RSDH). “A Síria está entre os países com maior insegurança alimentar em todo o mundo, com mais da metade da população com grave insegurança alimentar”, destacou nesta quinta-feira (3) Stephane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, afirmando que um quarto das crianças menores de cinco anos em partes da Síria enfrentam um crescimento ‘atrofiado’, com danos irreversíveis ao seu desenvolvimento.
“As hostilidades em curso, a infraestrutura precária e o poder de compra cada vez menor estão minando a resiliência das pessoas. 90% da população Síria vive abaixo da linha da pobreza”, disse.
A presença do exército norte-americano no país árabe já perdura há mais de uma década, com o saldo de mais de 400 mil mortes, sendo 333 apenas em fevereiro deste ano, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH). A Agência de Refugiados da ONU estima que pelo menos 6,6 milhões de sírios estão refugiados no mundo, com 6,7 milhões de pessoas deslocadas internamente.
Em 2016, 5 mil pessoas morreram na tentativa de atravessar o mar Mediterrâneo para buscar refúgio em outros países. Além disso, a Síria está entre os 10 países de maior insegurança alimentar no mundo, o que afeta cerca de 12 milhões de pessoas, com uma população total de 17,5 milhões de habitantes.
António Guterres, secretário-geral da ONU, enfatizou que, atualmente, nove em cada dez sírios vivem na pobreza. “A economia da Síria tem sido seriamente afetada e a pandemia de covid-19 tornou a situação ainda pior. Quase metade das famílias perderam suas fontes de renda”, afirmou.
Somália
Em 2007, a Somália passou a integrar a guerra ao terror durante o mandato de George W. Bush. Em 2009, Barack Obama deu início ao uso de drones na região.
Desde 2017, o exército norte-americano avança de forma significativa em ataques aéreos sobre a Somália, com aviões tripulados e drones. Segundo a Anistia Internacional, os Estados Unidos triplicaram a taxa anual de ataques e, em 2018, superaram juntos os ataques dos EUA à Líbia e ao Iêmen. A situação piorou a partir de março de 2017, quando o ex-presidente Donald Trump declarou a Somália como “zona de hostilidades ativas”, habilitando o aumento de ataques.
A missão estadunidense na África, a Africom, busca combater o grupo armado Al Shabaab, no entanto, a Anistia Internacional afirma que apenas foram identificados mortos civis. “Os dados são cada vez mais destruídores”, afirmou o diretor da Anistia para a África Oriental Deprose Muchena. “A Africom não apenas fracassou rotundamente em sua missão de informar sobre as mortes de civis, como parece não se importar com as numerosas famílias destruídas.”
Segundo o observatório Airwars, os Estados Unidos promoveram 32 ataques aéreos apenas nos três primeiros meses de 2020, mais que o dobro em 2019, que totalizou 63 ataques aéreos no país.
Um dos países mais pobres do mundo, a Somália possui grandes reservas de petróleo e minerais. Sua economia, baseada principalmente na agricultura e pecuária, sofre com as guerras e secas e a infestação de gafanhotos que afetam sua produção e o preço dos alimentos. Em 2021, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estimou que cerca de 2,6 milhões de pessoas enfrentaram extrema insegurança alimentar na Somália.
Além da pandemia, a crise climática agrava a crise na Somália. O país enfrenta a pior seca e escassez de água dos últimos 40 anos, afetando a 4,3 milhões de pessoas. Um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que cerca de 1,4 milhões de vítimas serão deslocadas pela seca.
Iêmen
Palco da maior crise humanitária no mundo segundo a ONU, o Iêmen é um dos países árabes mais pobres e sofre ataques da Arábia Saudita desde 2015. A guerra conta com o apoio logístico e de inteligência dos Estados Unidos, Reino Unido e França, com o objetivo declarado de combater as forças rebeldes hutis.
A população iemenita é atingida pela fome, inundações, crise de combustível e também com a infestação de gafanhotos, que ameaça suas plantações. 82% da população encontra-se em necessidade de ajuda urgente e 16 milhões de pessoas passarão fome neste ano, segundo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
As infâncias atravessam uma realidade dramática, com cerca de 360 mil vítimas de malnutrição aguda. Estima-se que 30 mil crianças morrem por falta de cuidados de saúde e dois milhões estão fora das escolas. A guerra limita o acesso aos centros educacionais, o que leva à cifra de 4,7 milhões de crianças com necessidade de assistência em educação.
Iraque
Invadido em 2003, dois anos após o ataque às Torres Gêmeas, o Iraque foi bombardeado pelos Estados Unidos e Reino Unido sob o pretexto da ameaça do grupo terrorista Al-Qaeda e de um suposto arsenal de armas químicas que mantinha o então presidente Saddam Hussein. A chamada “Operação Liberdade do Iraque” inaugurou o imaginário social dos terroristas árabes que deveriam ser combatidos a qualquer custo para alcançar a paz mundial.
A ocupação do território interferiu no próprio governo do país, com a instalação de um administrador norte-americano no Iraque, Paul Bremer. A invasão aprofundou os conflitos internos entre xiitas e sunitas e favoreceu o surgimento de grupos armados. Passou a ser comum o uso dos equipamentos explosivos improvisados (IED, na sigla em inglês), e, hoje, o Iraque é um dos pelos menos 60 países contaminados com minas terrestres, que podem ser ativadas com proximidade ou contato pessoal.
Com cerca de 200 mil mortes, dentre as quais 120 mil eram civis iraquianos, a guerra teve seu fim em 2011, quando as tropas invasoras deixaram o país. No entanto, o estudo de David Vine mostra que ainda há 8 bases militares norte-americanas no Iraque. Em 2020, as autoridades locais emitiram um alerta diante do aumento de casos de suicídio entre mulheres. Das 1.112 tentativas de suicídio notificadas em 2019, 80% eram mulheres.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog