Débora Calheiros: Racismo ambiental em Mato Grosso prejudica pescadores em benefício de grupos econômicos e políticos; vídeos
Por Débora Calheiros*
Sim, por incrível que pareça, o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), está impondo, arbitrariamente, uma política de “racismo ambiental” com apoio de grande parte dos deputados estaduais
Trata-se do projeto de lei nº 1363/2023, que proíbe a pesca nos rios do Estado por um período de cinco anos.
Apelidado de Transporte Zero ou Cota Zero, ele é explicitamente contra os pescadores profissionais-artesanais de todo o estado, incluindo povos e comunidades tradicionais ribeirinhas, e até contra a população em geral, que culturalmente adora pescar e acaba por fazer economia no orçamento familiar ao trazer peixes para a alimentação.
O PL1363/2023 ameaça tanto os moradores urbanos e ribeirinhos que pescam para garantir comida à mesa como aqueles que buscam a pesca por lazer.
O governo enviou-o à Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) em 31 maio de 2023, como mostra o protocolo abaixo.
No mesmo dia, 31 de maio, o PL1363/2023 foi lido em caráter de ”urgência urgentíssima”.
E, em 2 de junho, os deputados já fizeram a primeira votação, aprovando o texto sem qualquer discussão com a sociedade. Um verdadeiro rolo compressor.
Foram 11 votos a favor, cinco contra, seis ausências e duas abstenções, como levantamento feito pelo site pelo site Olhar Direto e confirmado pelo Midiajur.
SIM
Beto Dois a Um (PSB)
Carlos Avallone (PSDB)
Claudio Ferreira (PTB)
Diego Guimarães (Republicanos)
Dilmar Dal Bosco (União)
Gilberto Cattani (PL)
Gilberto Figueiredo (União)
Max Russi (PSB)
Paulo Araújo (PP)
Reck Junior (PSD)
Valter Miotto (MDB)
NÃO
Dr. João (MDB)
Elizeu Nascimento (PP)
Lúdio Cabral (PT)
Thiago Silva (MDB)
Wilson Santos (PSD)
AUSENTES
Dr. Eugênio (PSB)
Fabinho (PSB)
Valdir Barranco (PT)
Valmir Moretto (Republicanos)
Júlio Campos (União)
Sebastião Rezende (União)
ABSTENÇÃO
Janaina Riva (MDB)
Faissal Kalil (Cidadania)
Entre os que votaram contra, vale ressaltar a firme atuação do deputado Wilson Santos (PSD) em prol do rio Cuiabá livre de barragens nos últimos anos, justamente para manter a produção pesqueira que sustenta milhares de famílias ribeirinhas, bem como a pesca profissional e turística, e agora luta para que o mesmo possa ser garantido em todo o Estado.
A segunda votação já tem data marcada: 28 de junho, quarta-feira da semana que vem.
RACISMO AMBIENTAL ESCANCARADO
De forma geral, segundo o Wikipedia (grifos são nossos), racismo ambiental
”é um termo usado para descrever situações de injustiça social no meio ambiental em contexto racializado, ou seja, nas quais comunidades pertencentes a minorias étnicas, como as populações indígenas, negras e asiáticas, são particularmente afetadas. Situações de injustiça ambiental podem incluir a inacessibilidade a recursos naturais (como ar limpo, água potável e outros benefícios ecológicos), a exclusão da tomada de decisão sobre territórios tradicionais e recursos naturais locais, e também o sofrimento das mazelas das degradações ambientais, como: inundações, queimadas, poluição, exposição à resíduos tóxicos, ausência de saneamento básico, situação precária de moradia.”
Ou seja, ao excluir a população afetada da tomada de decisão, o governo de Mato Grosso praticou racismo ambiental explícito, escancarado.
E os deputados, ao aprovarem o projeto, foram cúmplices.
Vejam bem.
A pesca é uma atividade que envolve segurança alimentar, em especial de populações tradicionais e das urbanas em vulnerabilidade social.
A sua proibição envolve violação de direitos dos povos e comunidades tradicionais (ribeirinhas, pescadores artesanais, indígenas e quilombolas) aos seus modos de vida e de acesso ao alimento.
Envolve ainda a violência quanto ao respeito à cultura das próprias comunidades tradicionais, assim como de toda a sociedade.
Em áreas onde os rios ainda estão saudáveis, a pesca é também uma forma de lazer, com profundas raízes culturais, inclusive gastronômicas, ainda mais em Mato Grosso.
Na bacia do Alto Paraguai, formadora do bioma Pantanal, a única bacia hidrográfica que tem dados científicos robustos em relação à produção pesqueira, para embasar qualquer tomada de decisão, as populações de peixes ainda estão vigorosas e capazes de movimentar uma economia de cerca de R$ 1,9 bilhão/ano.
Foram estudos coordenados pela Embrapa Pantanal e Agência Nacional de Águas (ANA), em parceria com mais de 80 pesquisadores de todo o país (UFMT, UNEMAT, UFMS, UEMS, UEM, UFRGS, UnB e outras unidades da Embrapa).
Estudos da Universidade de Brasília (UnB) avaliaram que a chamada Pesca Difusa, ou de barranco, é capaz de gerar economia das famílias pelo acesso a lazer barato e obtenção de alimento rico em proteína, como o peixe.
Esta modalidade foi capaz de gerar, sozinha, o montante de R$ 1,45 bilhão/ano !!!
O restante do valor gerado sustenta as famílias de pescadores profissionais-artesanais, por meio da pesca profissional, além do gerado pelo turismo de pesca.
Os turistas que vem pescar em Mato Grosso são de estados como São Paulo, Paraná e Minas Gerais, onde a maioria dos rios já está poluída e/ou bloqueada por hidrelétricas. Ou a pesca profissional foi fechada, como acontece em Goiás.
GOVERNO BASEIA-SE EM RELATÓRIO MALFEITO E IGNORA MINUTA DO CEPESCA
A ideia de acabar com a pesca profissional no estado é recorrente.
Em 2021, a ALMT contratou uma consultoria paga para fazer um relatório sobre a atividade pesqueira no Estado de Mato Grosso.
O resultado foi um documento muito mal elaborado, sem qualidade técnica, amplamente criticado por especialistas.
Entre outras pérolas, a consultoria alegou que produção de peixes no estado estaria diminuindo e recomendou que seria necessário fechar a pesca por cinco anos para recompor os estoques, liberando apenas a pesca na modalidade pesque-solte.
Curiosamente a mesma justificativa que consta da mensagem do governador à ALMT propondo a nova lei.
Ele diz que a medida se deve “em razão da notória redução dos estoques pesqueiros em rios do Estado de Mato Grosso e estados vizinhos, tendo como principal razão a pesca predatória, que acaba por colocar em risco várias espécies nativas”.
Indício de que o governo do Estado se baseou neste ”estudo” malfeito pago pela Assembleia Legislativa.
Só que este não era o único documento que o governo Mauro Mendes tinha em mãos para elaborar uma nova lei.
Em agosto de 2022, o Conselho Estadual da Pesca de Mato Grosso (Cepesca) aprovou em plenário uma minuta de lei (abaixo, a primeira página) que “Dispõe sobre a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca e regula as atividades pesqueiras”.
A sua aprovação se deu após intenso debate ocorrido desde 2020 e do qual participaram representantes de vários segmentos da pesca (profissional-artesanal e turística), órgãos governamentais e universidades (UFMT, UNEMAT, IBAMA, MAPA), além da sociedade civil.
Esta sugestão de minuta de lei foi, posteriormente, enviada ao governador pelo presidente do Cepesca, sr. Alex Marega.
Não é a ideal, tem problemas, mas foi construída no Cepesca sobre bases técnicas e de modo participativo, ao contrário da lei autoritária do governo apoiada por grande parte dos deputados que quer simplesmente acabar com a pesca. Exemplo claro de outro conceito, o negacionismo ideológico.
Estranhamente:
1. O governador desconsiderou a minuta de lei do Cepesca. Nem a menciona.
2. A minuta aprovada pelo plenário do Cepesca em agosto de 2022 não está disponível ao público.
A editora do Viomundo, Conceição Lemes, solicitou-a reiteradamente ao presidente do Cepesca, Alex Marega, via assessoria de comunicação da Secretaria do Meio Ambiente de Mato Grosso.
A assessoria de comunicação respondeu que a solicitação deveria ser feita à Casa Civil, embora o Cepesca esteja no âmbito da Secretaria do Meio Ambiente.
Já os deputados nem receberam a minuta oficialmente.
Mas que ela existe, existe.
NEGACIONISMO IDEOLÓGICO OU APENAS ”ACHISMO’ DO GOVERNADOR?
A quem interessa a proposta do governador aprovada por 11 deputados estaduais?
Quem vai se beneficiar com a interrupção da pesca durante cinco anos?
Pela proposta, ganha certamente o turismo de pesca na modalidade pesque-e-solte.
Em consequência, outro setor diretamente favorecido é a piscicultura, que utiliza rações de grãos de soja e milho produzidas por famílias bem poderosas de Mato Grosso, como os Maggi.
Também será beneficiado o setor de geração de energia hidrelétrica, com forte influência política no governo estadual e nos órgãos colegiados de tomada de decisão, como os Conselhos de Meio Ambiente – Consema e de Recursos Hídricos – CEHIDRO.
Mas já há questões sendo levantadas:
1. Como o Estado pode decidir em relação aos rios Cuiabá, Paraguai, Araguaia, Teles Pires, Juruena, entre outros, que são de competência federal?
2.Como os gestores públicos podem decidir sem dados confiáveis, embasados cientificamente?
O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que é presidente do PSD de Mato Grosso, recomendou aos deputados do partido que votassem contra o projeto, por apresentar ”graves vícios”.
O PSD tem dois deputados. Um deles, Reck Junior, já disse que não seguirá a orientação do partido. Aliás, votou sim na primeira votação.
Em entrevista à mídia local, o governador minimizou os questionamentos feitos pelo ministro da Agricultura:
“Isso tudo tem, a Assembleia fez e não precisa de estudo nenhum, é só ir na beira do rio. O próprio pescador sabe que o peixe está acabando”.
O deputado Dilmar Dal Bosco (União Brasil), líder do governo na ALMT, segue o mesmo diapasão. Alega que o número de peixes reduziu drasticamente e que não é necessário nenhum estudo técnico, bastando apenas ir até um rio e avaliar
Negacionismo ideológico ou somente “achismo” de Mauro Mendes e Dilmar? Talvez ambos.
A propósito, o PSD divulgou a seguinte nota sobre o PL Cota Zero:
“O PL contém graves vícios e causa prejuízos irreparáveis à categoria do pescador profissional, violando a Constituição Federal e Estadual. Dentre as irregularidades e ilegalidades foram citados os seguintes aspectos:
1 – O Projeto de Lei nº 1363/2023 não possui Projeto Técnico;
2 – O PL nº. 1363/2023 não foi submetido à avaliação do Conselho Estadual da Pesca – CEPESCA-MT;
3 – O PL nº. 1363/2023 não consultou os povos originários, conforme estabelece a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
4 – O PL nº. 1363/2023 desrespeita o direito adquirido dos profissionais da pesca (art. 170 da Constituição Federal)”.
São os mesmos argumentos levantados por pesquisadores e pescadores.
Ou seja, racismo ambiental, violência cultural e favorecimento de grupos econômicos e políticos que sustentaram a reeleição do governador e de muitos deputados estaduais.
Em tempo: no PL 1363/2023 não houve previsão de onde serão tirados os recursos para pagar o “auxílio” aos pescadores nem como ficarão as famílias que dependem do peixe como segurança alimentar.
Com a palavra, nos vídeos abaixo, pescadores da Colônia Z2, de Cáceres (MT).
Publicação de: Viomundo