Débora Calheiros: A seca extrema está salvando o Pantanal!

Por Débora Calheiros

O título não está errado, não.

A seca extrema está, de fato, salvando o Pantanal!

Literalmente.

Mas deixe eu explicar melhor.

Apesar dos grandes incêndios, a maioria deles (calcula-se em torno de 95%[1]) provocados por ação humana — intencional ou não, criminosa ou acidental –, ainda temos a chance de que, com a próxima temporada de chuvas (e elas hão de vir!), o meio ambiente se regenere.

Obviamente, não por completo… com muitas perdas de flora e fauna… mas ainda tem-se a chance de recuperação.

Contudo, uma ameaça ainda maior paira sobre a conservação do bioma e esta não permitiria sua recuperação.

Trata-se do projeto de hidrovia do rio Paraguai.

Desde 1990, por três vezes (1990, 2000, 2021-2024), ruralistas, empresários de navegação e mineração (ferro e manganês), políticos locais, estaduais e órgãos federais (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes –DNIT  ANTAQ) também querem a Hidrovia, além dos ruralistas e empresários da mineração e navegação tentam implementar a navegação de grande porte no rio Paraguai, no seu Tramo Norte, ou seja, de Cáceres, em Mato Grosso (MT), a Corumbá, em Mato Grosso do Sul (MS).

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Neste trecho, o rio se divide, formando uma ilha, a ilha de Taiamã que abriga a Estação Ecológica de Taiamã – ESEC Taiamã, uma unidade de conservação de proteção integral.

Consequentemente, o rio se divide em dois braços estreitos de cerca de 50 a 80 m, muito sinuoso (meândrico), com curvas estreitas.

Mesmo assim, eles querem navegar por esses trechos com comboios de barcaças grandes e de calado maior (com mais carga, portanto, mais pesados), para transportar soja, milho, além de cargas tóxicas como agrotóxicos e combustíveis.

Os pesquisadores e a sociedade civil da região têm produzido e divulgado informações científicas, alertando sobre os graves impactos ambientais representados pela retomada da hidrovia do rio Paraguai, que, em 2023, foi incluída no atual Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) [2].

O projeto prevê a navegação de grande porte no Tramo Norte e a concessão à iniciativa privada de toda a hidrovia (entre Cáceres-MT e Porto Murtinho – MS), com base no Plano Geral de Outorgas Hidroviário [3, 4].

Estima-se que deverá aumentar, em pelo menos, quatro vezes o atual volume de cargas, incluindo o transporte de commodities agrícolas, além do minério de ferro e manganês.

A periculosidade da navegação de grande porte no Tramo Norte do rio Paraguai é enorme, já que é o trecho mais preservado do bioma. Reúne:

  • o complexo de Unidades de Conservação federais (Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, Parque Estadual do Guirá – MT, ESEC Taiamã);
  • a Terra Indígena (TI Guató);
  • várias comunidades ribeirinhas.

Uma região muito sensível às mudanças hidrológicas e geomorfológicas, incluindo impactos na hidrodinâmica do Pantanal Sul.

Em consequência, a proibição da navegação nessa área tem sido feita desde os anos 2000, com base em Ações Civis Públicas – ACPs movidas pelo Ministério Público Federal de Mato Grosso (MPF-MT), em 2000 e 2021.

A ACP de 2000 resultou em sentença do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou a realização de uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI) para examinar a sustentabilidade da navegação no Tramo Norte.

Em decisão de agosto 2024, o ministro Sérgio Kukina, do STJ, mencionou o licenciamento de um porto específico ao longo do rio Paraguai, Porto de Morrinhos.

Em sua sentença, o ministro Kukina disse:

“Não tem sentido como obra isolada. Deve ser situado no contexto de ampliação de toda a hidrovia e, por isso, o impacto ambiental será regional, além de atingir o Pantanal Matogrossense, patrimônio nacional”.

(…)

“Não houve aplicação específica de determinado dispositivo legal para concluir que o licenciamento do Porto deve ser feito em conjunto com o das demais obras exigidas pela pretendida ampliação da hidrovia, mas houve aplicação dos princípios de direito ambiental, especialmente o princípio sistêmico, que deve prevalecer no exame de todas as questões ambientais”.

A ACP de 2021 ainda está em tramitação.

Cabe lembrar que o Bioma Pantanal é considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal (art. 225 § 4º ), cabendo ao “poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” e, como explícito em seu Parágrafo 1º:

§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.

O Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNZU) emitiu a Recomendação CNZU n.º 10/2018 [5], na qual declara a vários órgãos federais: “excluam o trecho do rio Paraguai denominado Tramo Norte, entre Cáceres e Corumbá, da possibilidade de navegação industrial ou de grande porte na Hidrovia Parguai-Paraná… e que declare este trecho como Área com Restrição de Uso para a navegação de grande porte”.

O CNZU responde à Convenção Ramsar de Conservação de Áreas Úmidas de Interesse Internacional, à qual o Brasil é signatário desde 1996 [6].

Há importantes estudos científicos (vide Parecer Técnico de 2017) que embasam a necessidade de se respeitar os Princípios da Precaução e Prevenção, além dos direitos de Povos e Comunidades Tradicionais de serem consultados previamente e de forma livre e informada.

Recentemente foram publicados dois artigos pela comunidade de especialistas da região (hidrólogos, geomorfólogos, ecólogos) em revistas de padrão internacional que também contrapõem este projeto.

Um dos artigos foi na Nature.

O outro na Science of the Total Environment. 

Há também:

Posicionamento do Observatório Pantanal, rede que reúne mais de 40 ONGs e grupos de pesquisa sobre o Bioma de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Manifesto da sociedade civil de 2021.

Carta Aberta, agora em 2024, ao Presidente Lula e a ministros das pastas envolvidas.

Resposta dos pesquisadores sobre a inapropriada comparação de um funcionário de alto escalão do executivo, tentando desqualificar a opinião embasada dos cientistas, como sendo discurso meramente de “ambientalistas”, pessoas que se dedicam à causa ambiental mas não necessariamente profissionais da área.

Impactos da dragagem e colisão de barcaças nas margens ao passarem por trechos muito sinuosos e estreitos do rio Paraguai. Fotos: Débora Calheiros, Ubiratan Piovezan e Célio Apolinário de Oliveira

É insustentável a intenção de dragar o rio Paraguai no Tramo Norte em 27 pontos em profundidades maiores do que as consideradas como “dragagem de manutenção”, para aumentar o calado para este tipo de navegação “industrial” durante todos os 12 meses do ano, incluindo a fase de seca.

Mais insustentável ainda em períodos plurianuais naturais de seca, como vivenciado na década de 1960  por 10 anos seguidos e que podem voltar a ocorrer. Ou mesmo de secas extremas resultantes da influência das mudanças climáticas, como as ocorridas em 2019-2022 e, em especial, em 2024.

O ano de 2024 já é considerado o mais seco da série histórica de 124 anos da régua de Ladário-MS, monitorada pelo Serviço de Sinalização Náutica do 6º Comando Naval da Marinha do Brasil.

Em maio de 2024, a Agência Nacional de Águas (ANA) aprovou a declaração de Escassez Quantitativa dos Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai [7].

Medida inédita que vigirá até 31 de outubro, quando termina o período seco normal na bacia do Paraguai, que forma o bioma Pantanal. Caso a escassez hídrica persista, a declaração da ANA pode ser prorrogada.

O período 2023/2024 não encontra paralelo em nenhum outro período do registro histórico, sendo
sem precedentes em termos de intensidade e duração da seca, e no próximo trimestre (julho-setembro) esperam-se temperaturas acima da média e precipitação abaixo do normal, segundo informe do LASA/UFRJ [8].

Na Carta Aberta ao presidente Lula e seus ministros, os cientistas consideram extremamente temerário que haja operações de dragagem no Rio Paraguai, mesmo que apenas de manutenção, num ano de escassez hídrica excepcional, como o atual, sem haver possibilidade de previsão de como será o comportamento da próxima cheia no ano hidrológico de 2024-25.

Como alternativa, indicam a adoção de formas menos impactantes, mais viáveis e racionais, como o uso de um sistema de transporte multimodal, incluindo ferrovias e rodovias, com base em tomadas de decisão adaptativas às condições hidrológicas e de navegabilidade, em especial nos períodos de seca anuais e em anos caracteristicamente mais secos.

O rio Paraguai é uma das melhores vias navegáveis naturais do mundo, podendo ser navegado por até 8 meses, desde que sejam respeitados suas características hidrológicas e geomorfológicas e o PANTANAL.

A proposta atual tem um impacto potencial substancial sobre o regime de inundações do bioma, incluindo um escoamento acelerado, maiores descargas de pico no rio e diminuição da área passível de inundação sazonal na planície pantaneira, em especial na fase de seca, as quais produziriam alterações nos processos ecológicos que regem o bioma.

As consequências ambientais, sociais e econômicas devido aos impactos hidrológicos, geomorfológicos e, por conseguinte, ecológicos, que colocam em risco a conservação do Bioma Pantanal, serão muito graves.

A navegação no Tramo Sul pode continuar a ser realizada, desde que com controle do tamanho e calado dos comboios e apenas dragagens de manutenção, como tem sido licenciado pelo IBAMA desde 1998 no Tramo Norte.

A previsão inicial era de dragagens em apenas cinco pontos, agora já aumentaram para 30 (!!!) pontos ao longo do Tramo Sul

Desrespeitar informações técnicas multidisciplinares simplesmente para colocar em prática projetos estritamente econômicos é negacionismo científico.

Os trágicos acontecimentos das enchentes e secas extremas tristemente vivenciadas no país são uma constatação evidente que este desrespeito acarreta gravíssimas consequências ambientais e, por conseguinte, sociais e econômicas.

— Então, como a seca extrema está salvando o Pantanal? — alguém talvez pergunte.

Explico: se não fosse esta seca excepcional que levou à interrupção obrigatória da navegação pelo rio Paraguai, muito provavelmente o aprofundamento das dragagens, o tráfego de grandes barcaças de Cáceres (MT) a Porto Murtinho (MS) e a concessão à iniciativa privada já estariam sendo implementados.

Em outras palavras. Estariam “passando a boiada”, ou melhor, estariam “passando os comboios”…

NOTAS

[1]  https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2024/06/24/carlos-nobre-maioria-dos-incendios-no-pantanal-e-cerrado-sao-criminosos.htm

[2]  https://www.gov.br/portos-e-aeroportos/pt-br/assuntos/noticias/2024/04/governo-federal-estabelece-secretaria-nacional-de-hidrovias-e-navegacao-para-impulsionar-desenvolvimento-economico-regional

[3] https://www.gov.br/antaq/pt-br/paraguai-madeira-barra-norte-lagoa-mirim-tapajos-e-tocantins-sao-hidrovias-prioritarias-para-a-concessao

[4] https://www.gov.br/portos-e-aeroportos/pt-br/assuntos/noticias/2023/10/mpor-e-antaq-anunciam-primeiro-pgo-hidroviario-e-chamamento-para-estudos-de-concessao-da-hidrovia-do-paraguai

[5] https://www.gov.br/mma/pt-br/assuntos/ecossistemas-1/arquivos/recomendacao-cnzu-no-10.pdf

[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1905.htm

[7] https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/diretoria-colegiada-da-ana-aprova-declaracao-de-escassez-quantitativa-dos-recursos-hidricos-da-regiao-hidrografica-do-paraguai

[8]https://www.researchgate.net/publication/381660931_NOTA_TECNICA_012024_avaliacao_da_situacao_atual_do_fogo_no_Pantanal_-Junho_2024 channel=doi&linkId=6679ea591dec0c3c6fa2e659&showFulltext=true

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Lunes Senes

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