Brasil sofre de amnésia eleitoral grave
Menos de um mês após a vitória do presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018, quatro em cada dez brasileiros não se lembravam em qual candidato votaram para deputado federal ou estadual, mostram dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), feito com 2.506 eleitores. O número revela uma faceta política antiga no país: a “amnésia eleitoral”, que é maior no Brasil em comparação com outros países, segundo dados do Centro de Estudos e Opinião Pública (Cesop), da Unicamp, levantados com exclusividade para o Pulso.
Em países próximos, como Uruguai e Chile, esse percentual não ultrapassa os 20%. E na Europa, nações como Alemanha, Portugal e Finlândia têm taxas ainda menores, que variam entre 1% e 2%.
A desmemória do brasileiro vem piorando ao longo dos últimos anos. Em 2010, 33,7% dos eleitores não lembravam a escolha do candidato para a Câmara dos Deputados. Na eleição seguinte, esse número passou para 40,70% de esquecidos e, quatro anos depois, 44,1%.
A tendência de alta é um reflexo do aumento do desinteresse pela política e da fragmentação partidária no país, analisa Bruno Bolognesi, cientista político e coordenador do Laboratório de Partidos e Sistemas Partidários (LAPeS/UFPR):
— A partir da criação de vários partidos nos governos Lula, tivemos um aumento da fragmentação partidária. São muitas siglas e muitos candidatos. Somado a isso, os postulantes migram com frequência de legenda e cargo, o que dificulta a criação de uma lealdade política com o eleitor —afirma o especialista. — No começo do mandato Dilma, ainda vimos um aumento da negação da política, resultado da escalada de corrupção, que faz com que as pessoas acreditem menos na política e não se importem com o voto.
‘Brasil tem tempestade perfeita’
Apesar do aumento nos últimos anos, o Brasil já vinha de um patamar de esquecimento superior ao de outros países. Um dos fatores que contribuem para esse fenômeno é o presidencialismo, cuja eleição do Executivo tem sempre um peso maior e protagonismo na cabeça dos eleitores. Por isso, é comum que se discuta a escolha do candidato a presidente e governador com antecedência e se deixe para a véspera da eleição a de deputado ou senador.
Já no sistema parlamentarista, explica Bolognesi, a lógica é diferente: além dos votos serem apenas para deputado, o que de antemão reduz a quantidade de candidatos para escolher, há um incentivo para votar em poucos partidos, pois a eleição do primeiro-ministro demanda a formação de uma maioria no Parlamento. É o que explica Canadá e Reino Unido terem 0% e 1% de amnésia cada um de acordo com os dados levantados pelo Cesop/Unicamp.
Alguns países vizinhos, como Chile e Uruguai, também presidencialistas, no entanto, mostram um comportamento diferente, e isso se explica em grande parte pelo sistema partidário, afirma Rachel Meneguello, professora titular de ciência política da Unicamp.
— Os dados comparam eleitores sem memória do voto para as eleições legislativas. O Uruguai, por exemplo, com apenas 7% de esquecimento do voto, tem um sistema composto de sete legendas, duas delas atuando desde o século 19 (Partido Nacional e Partido Colorado), e uma há mais de 50 anos (Frente Ampla). O Chile, por sua vez, com mais partidos (15 legalmente constituídos em 2022) apresenta uma proporção de esquecimento um pouco maior, 20%, mas, mesmo assim, muito menor que o caso brasileiro — diz a professora.
Segundo ela, o tempo de funcionamento dos partidos é fundamental para os eleitores consolidarem suas referências, tanto de legendas quanto de candidatos. Assim, em democracias mais jovens, ainda em processo de construção institucional, essas referências ainda não estão consolidadas em geral para o eleitorado.
— A elevada porcentagem para a Tunísia pode ser em parte explicada por esse aspecto. O país saiu em 2011 da revolução democrática e, em 2021, teve sua segunda eleição realizada nos novos moldes.
O sistema de votação de lista aberta, em vigor no Brasil, também é prejudicial à memória do voto. Apesar de haver possibilidade de voto em legenda no país, brasileiros têm o costume de votar em candidatos específicos — e, a cada pleito, são milhares de opções de dezenas de partidos.
— A Finlândia (cujo percentual de desmemória é 1%) tem um sistema similar ao nosso, que te obriga a votar no candidato. Lá, porém, há apenas oito partidos no Congresso e 18 no total. Normalmente, duas legendas têm a metade do Congresso. Já no Brasil, temos uma fragmentação partidária bem maior, são mais de 30 siglas e, para ter metade da Câmara, precisamos juntar 7 legendas. É muita informação para processar, não fixa na memória a longo prazo — acrescenta Bolognesi.
O professor cita também a quantidade de cadeiras em disputa nos estados e a alta renovação de cargos nos pleitos para justificar a “tempestade perfeita” do esquecimento brasileiro.
Pobreza e desigualdade influenciam
A conjuntura socioeconômica também ajuda a explicar a amnésia eleitoral, diz Bolognesi. Baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e falta de acesso à educação contribuem para que os cidadãos estejam menos envolvidos com a política. É o caso, além do Brasil, da Costa Rica, que, apesar do sistema de lista fechada, tem 17% de eleitores “esquecidos”.
Democracias jovens ou instáveis costumam apresentar alto percentual de desmemória. A Tunísia, que enfrenta sua maior crise em uma década de democracia, é exemplo disso. Lá, 16% não se lembram do voto para a câmara. O país do norte-africano ainda soma um sistema partidário fragmentado, o que contribui para o índice de esquecimento.
Uma das soluções apontadas por especialistas para melhorar a memória do voto é a desfragmentação do sistema — em outras palavras, reduzir o número de partidos. A cláusula de barreira, que entrou em vigor em 2018, tenta fazer isso: estabelece que as siglas precisam atingir um percentual mínimo de votos para terem acesso aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda na televisão e no rádio. Mas os efeitos do dispositivo foram reduzidos com a aprovação das federações, que permite a união de dois ou mais partidos pelo prazo de pelo menos quatro anos.
Globo
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