Barbara Simões: Os homens decidem nos gabinetes a guerra, mas as mulheres carregam nos seus corpos os despojos
Da guerra e das mulheres
Por Barbara Simões*
No dia 30 de abril de 1945, quando os soviéticos libertaram Berlim do regime nazista, nenhuma mulher alemã que pudesse andar, entre 06 e 66 anos, foi poupada de estupro naquela cidade, segundo relato de várias sobreviventes da guerra.
Hoje escolhi lamentar por elas também, assim como pelas que tiveram as entranhas fatiadas depois, e pelas que foram fuziladas porque eram as mulheres dos homens que lutavam por Hitler, obrigados ou não, motivados ou não a morrer pelo terrível regime que levou a Alemanha e a Europa ao caos e dizimou milhões de vidas em poucos anos em atos de horror sem precedentes históricos.
E lamento também hoje pelas mulheres soviéticas, quando o exército nazista avançou pelo leste europeu e entrou na Rússia. E pelas mulheres do leste europeu, quando antes disso foram submetidas pelos soldados da “pátria-mãe” e a que custos integraram a nova ordem imposta pelo cabo do fuzil de homens fardados.
Também penso neste texto nas vietnamitas, coreanas ou afegãs que venderam seus corpos para soldados vietnamitas, russos, coreanos, estadunidenses, canadenses ou europeus para alimentar seus filhos, e nas que foram vendidas e estupradas pelos Talibãs, antes, durante e depois da ocupação ocidental no Afeganistão.
Lamento pelas palestinas, pelas meninas da Síria, pelas iraquianas, pelas sudanesas e pelas nigerianas, exploradas por exércitos do “bem” e do “mal” que têm se alternado em seu corpo-território.
E de repente penso no Brasil e no mito da terra ensolarada, pacifista e feita de caipirinha, samba e futebol que não se envolve em guerras, e me lembro da guerra do Paraguai. Nem quero pensar no que os homens do meu país fizeram àquelas mulheres há mais de 100 anos atrás, quando o país vizinho já estava de joelhos, e sei que as bisnetas das paraguaias ainda carregam a lembrança daqueles terríveis dias em algum lugar de memória de seu corpo.
Penso neste texto em todas as mulheres que vivem governadas por homens que arquitetam regimes totalitários, que mandam em seus corpos, que dispõem deles como querem e quando querem, pelas que são vendidas em casamento por um prato de comida nos acampamentos de refugiados construídos em meio a escombros.
Escolhi falar delas neste texto por um motivo, senhores, que talvez vocês não tenham se dado conta nos tempos atuais e anda mesmo escapando a tantas análises sobre a guerra na Ucrânia, e é preciso que seja dito, em tempo: é que o horror da guerra é muito mais monstruoso no corpo feminino.
Por causa dele, posso falar do horror das alemãs estupradas e ao mesmo tempo sentir tão fortemente e vivo o horror das judias fatiadas e mortas com seus filhos e suas famílias, 6 milhões ou mais, de onde um pedaço do meu próprio corpo-mulher descende.
Porque os homens decidem no gabinete a guerra, mas as mulheres carregam no seu DNA o significado da guerra.
Há milhares de anos somos estupradas pelas tribos inimigas, e depois somos estupradas pelas tribos vencedoras.
Há milhares de anos a guerra é o momento em que vocês se esquecem das leis que fizeram e liberam seus instintos sobre nós, e revivemos nos campos de batalha os primeiros encontros entre tribos de Homo Sapiens e de outros grupos de hominídeos; e os homens entendem do que são feitos; e embora busquem se amparar na linguagem que aprendemos a construir para manter a destruição mútua sob controle, nem sempre têm sucesso. Há milhares de anos, um soldado inimigo morre, é ferido ou trocado em combate; mas uma mulher civil ou militar vira brinquedo nas mãos dos inimigos nas guerras, e depois vai ser brinquedo nas mãos dos vencedores das guerras.
Nossos corpos sempre foram: Despojo de guerra.
Força de matar. Duro de matar. 1. 2. 3. Rambo. 1. 2 .3. Stálin. 1. 2. 3 Hitler. Mussolini. Médici-Geisel-Pinochet. Talibã. Saddam. Bush. Ortega. Putin. Quantos sobrenomes masculinos mais tem a guerra? De quantas bandeiras? De quantas ideologias sacrossantas e intocáveis e justificáveis batalhas?
TS Eliot escreveu nos versos de Terra Desolada que todas as guerras são a mesma guerra, e eu sei que são, e toda mulher sabe que são, porque cada uma de nós carrega na memória genética o que as guerras sempre significaram em nossos corpos-abrigo.
Quando se abrem as portas da barbárie, as leis que nos protegem se demonstram sempre as mais frágeis, e é por isso que precisamos, cada vez mais, proteger a mesa de discussão, a linguagem, a diplomacia e os acordos, as relações e as leis que nos garantam paz negociada e justa.
Neste dia da mulher em março de 2022, penso também nas mulheres ucranianas.
Que o dia 08 de março no Brasil seja um apelo pela nossa luta sem armas, essa que mal começou a amanhecer .
*Barbara Simões é doutora em Literatura Comparada, pesquisadora associada do Homa (Centro de Direitos Humanos e Empresas) e professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde, de 2016 a 2021, foi diretora de Relações Internacionais.
Publicação de: Viomundo