Bahia tem primeira mulher indígena a ser aprovada para cargo de defensora pública
Aléssia Pamela Bertuleza Santos, 29 anos, de origem Tuxá, recebeu a segunda maior nota (9,12) na terceira fase (prova oral) do 8º Concurso de Defensores/as Públicos/as da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Na banca, ela recebeu nota 10 de um dos quatro avaliadores.
O resultado da terceira fase foi divulgado em 26 de janeiro. Agora o certame está no processo de avaliação de títulos, uma fase apenas classificatória, na qual será definida a ordem final de classificação para posterior convocação e nomeação.
A candidata concorreu por meio da reserva de 2% das vagas para a população indígena nos concursos públicos e processos seletivos da instituição. A cota foi estabelecida pela lei complementar estadual 46/2018, que altera a Lei Orgânica do órgão. A ação afirmativa já era adotada nos processos seletivos por meio do Reda (regime especial de direito administrativo) e na seleção de estagiário. Contudo, esse foi o primeiro concurso público a adotar o sistema.
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Formação acadêmica
Aléssia é egressa de escola pública, tendo cursado o nível médio no Instituto Rodelense de Educação. Em 2014, concluiu a graduação em Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), onde foi a primeira indígena admitida por meio do sistema de cotas raciais da instituição.
Em 2018, concluiu o mestrado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). A relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional foi o tema de seu trabalho de conclusão de curso (TCC). Já na dissertação de mestrado, ela analisou o processo de integração regional do Mercado Comum do Sul (Mercosul).
Aléssia fez estágio na Defensoria Pública de Feira de Santana, atuou como advogada, é analista do Tribunal de Justiça da Bahia e leciona Direito Internacional no Centro Universitário Unirios, em Paulo Afonso, cidade onde mora.
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Território indígena Tuxá
A família da futura defensora pública reside em Rodelas, às margens do rio São Francisco, no norte da Bahia, no território indígena Tuxá, onde professores, familiares e amigos comemoraram sua aprovação. Seu irmão de 17 anos cursa o 3º ano do nível médio na escola indígena Tuxá.
Na década de 1980, o povo Tuxá sofreu o impacto da barragem Itaparica da Usina Hidrelétrica Luiz Gongaza, com a transferência de parte da comunidade para o município de Ibotirama, no oeste do estado. Atualmente as famílias que ocupam a área em Rodelas não têm seu território regularizado. Há um processo de desapropriação pendente, e o grupo de estudos constituído para realizar trabalho de campo está paralisado desde 2018.
Em entrevista exclusiva para o Brasil de Fato Bahia, concedida à jornalista Claudia Correia, a futura defensora pública comentou sobre a atual política indigenista, o sistema de cotas raciais e o papel do Direito no processo de transformação social.
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Confira a entrevista a seguir.
Brasil de Fato Bahia: Aléssia, gostaríamos de saber qual a sua expectativa com relação à sua atuação na Defensoria Pública do Estado da Bahia?
Aléssia: Obrigada pelo convite. É uma alegria estar aqui, principalmente neste momento de tanta felicidade. Eu estagiei na Defensoria Pública do Estado da Bahia. Eu fui servidora da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Agora estou prestes a voltar como membro. As minhas expectativas são as melhores e maiores, porque nós chegamos à Defensoria agora, neste momento. Esse concurso se encerra, na verdade, no momento em que a Defensoria tem se voltado cada vez mais para a atuação junto às comunidades tradicionais, para a atuação na tutela coletiva. Foi publicado recentemente o plano de expansão da Defensoria Pública do Estado da Bahia e, lá, a gente verifica que um dos critérios para a instalação de novas sedes é, justamente, a priorização de municípios de comarcas onde haja a presença de povos indígenas e outras comunidades tradicionais, como comunidades quilombolas. Então, eu acredito que, chegando a uma instituição que já tem essa atuação pautada, esse olhar voltado para os grupos vulneráveis, especialmente as populações indígenas, já tinha, na verdade, e, agora, contando com uma indígena como membro, certamente, há muita coisa para a gente fazer. Nós vamos ter a oportunidade de pluralizar cada vez mais o debate nesses espaços de justiça e, cada vez mais, atuar para assegurar, aumentar o acesso à justiça do nosso povo e também assegurar direitos, todos os direitos. E isso é um dos principais pontos: permitir, cada vez mais, que outros indígenas venham ocupar espaços como esses.
Qual a sua opinião sobre o sistema de cotas aprovado no Brasil por meio de legislação há alguns anos, que faz parte da política de ações afirmativas? Qual é o seu posicionamento diante desse sistema que ainda gera algumas discussões e polêmicas em nosso país?
Quando nós falamos sobre a política de cotas raciais, em primeiro lugar, eu gosto de lembrar que não é um privilégio. Não, não é um privilégio, não é um presente, é um direito. É o reconhecimento, é a concretização de um direito que por muito, muito tempo foi negado. E, quando eu falo sobre “muito tempo”, eu estou falando sobre séculos. É uma dimensão de tempo que a nossa existência não alcança. Quando nós falamos sobre a política de cotas, que, inclusive, já foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal [STF], nós estamos falando sobre uma medida de reparação histórica, nós estamos falando sobre um instrumento que permite, ou visa viabilizar, o acesso a determinados espaços públicos, espaços comuns, por pessoas integrantes de grupos que, durante muito tempo, foram impedidas de estar ali. Mas não estamos falando sobre dar um benefício, nós estamos falando sobre tentar reestabelecer para as gerações atuais direitos que foram negados durante séculos, direitos que foram tolhidos, impedidos de serem exercidos por esses grupos, inclusive, pelas populações indígenas.
Quando a gente diz que é uma medida de reparação histórica, nós não estamos apagando o passado, nós não estamos afastando tudo de errado, todas as violações que existiram e ainda existem. O que se está fazendo é tentando amenizar e evitar sua repetição. Eu sou egressa da universidade pública, eu estudei na Universidade Estadual de Feira de Santana [Uefs], uma instituição muito séria pela qual eu nutro muito carinho. Eu fui cotista lá, eu fui a primeira indígena a me formar pelo curso de Direito como cotista naquela instituição. Agora, na Defensoria, nesse concurso no qual eu fui aprovada, foi o primeiro concurso após a alteração da lei que instituiu a reserva de vagas para a população indígena.
E eu acho esse tipo de medida essencial. Não é suficiente, mas é essencial e me assusta que, após tanto tempo já em vigor, ainda cause espanto, ainda cause estranhamento, ainda haja pessoas que consigam erguer a voz contra isso. Mas, se nós considerarmos que nós estamos num país racista que não se considera racista, um país que considera a dizimação dos povos, a invasão do nosso território, até hoje não restituído, como uma espécie de “descobrimento”, um país que acha mesmo que a escravidão se acabou com a Lei Áurea e todo mundo passou a ser igual, é até compreensível esses comportamentos absurdos, esses posicionamentos absurdos no sentido contrário a essa política afirmativa. Mas nós estamos aí, cada vez mais, para ocupar esses espaços, cada vez mais para brigar por esses espaços, pela efetivação dos nossos direitos e para efetivar essas políticas e muitas outras.
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Com base em sua formação acadêmica e em todo o seu percurso profissional, como você avalia as possibilidades no campo do Direito, enquanto ferramenta de afirmação da luta pela conquista de direitos indígenas? Quais são as alternativas que você vê como uma das formas de fortalecimento do que tem sido reivindicado pelo movimento indígena no Brasil?
Eu sempre enxerguei o Direito não só como aquele conjunto de normas postas num papel, mas como um instrumento forte, um instrumento muito poderoso de transformação social. Então, eu enxergo o Direito dessa forma, como um forte instrumento de transformação social e eu acredito nas instituições. Eu reconheço a importância das lutas populares, das reivindicações, dos movimentos de massa, das ocupações populares, tudo isso, só que é nas instituições que as coisas acontecem. Esses movimentos são o pontapé inicial para qualquer discussão. É o que nos permite ser vistos, é o que nos permite ter visibilidade para poder discutir, sentar com o governo, sentar com autoridades. Mas as coisas se resolvem nas instituições. Existem procedimentos formais, existe uma burocracia. Então, o Direito, felizmente, cada vez mais está sendo acessado pelo nosso povo, pelos nossos parentes. Cada vez mais, nós temos indígenas advogados, professores de Direito, membros das instituições jurídicas e, cada vez mais, teremos mais e mais também. O Direito, que é esse instrumento, quando, cada vez mais, ele passa a ser manuseado por nós, somos nós na nossa defesa, somos nós fazendo as nossas reivindicações. Ele é um instrumento muito poderoso que, durante muito tempo, foi tão restrito a determinados grupos. [E, quando ele passa a ser manuseado por nós,] se torna mais poderoso ainda, ou melhor, ele se torna ainda mais eficiente, ele se torna um instrumento, uma ferramenta de verdadeira efetivação de direitos, não só de colocar no papel para dizer que fez, entende? Porque a gente reivindica, mas agora a gente também pode exigir judicialmente, pela via formal, por meio das instituições, tudo que nos é de direito.
No ano passado, nós assistimos a uma intensa mobilização do movimento indígena contra a tese do marco temporal, que ainda está em debate e em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), provavelmente, voltando à pauta agora, no segundo semestre de 2022. O que você pensa sobre essa tese?
A dita tese do marco temporal, que está submetida a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, é algo que precisa ser muito, muito debatido e amplamente rechaçado pela sociedade e pela comunidade jurídica também. Porque veja: primeiro, é necessário que se esteja ciente do que se trata, que seja publicizado esse julgamento, as informações sobre ele. Por quê? Trata-se do julgamento de recurso extraordinário sobre a sistemática de repercussão geral. Isso significa que o que for decidido nesse caso será vinculante para os casos futuros. Os próximos processos, ou os outros processos já existentes sobre demarcação de terras indígenas, terão seu destino vinculado ao que for decidido nesse processo. A adoção da tese do marco temporal, caso isso venha a acontecer, é um absurdo, é um imenso retrocesso, é uma violação gravíssima à Constituição Federal brasileira, às normas dos tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte e a toda a construção histórica dos direitos dos povos indígenas. A tese do marco temporal, como é sabido, basicamente estabelece o seguinte: que, para se reconhecer, para se dizer que aquela terra é indígena, se aquele território é ou não pertencente àquele povo que reivindica, deve-se verificar se, em 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição Federal de 1988, aquele povo estava ocupando aquele território. Se não estivesse, aquele povo que está reivindicando aquele território deve comprovar que não estava ali porque tinha sido obrigado a sair. Mas note: o que é a história do Brasil senão um eterno expulsar dos povos indígenas do seu território ancestral, do seu território originário? A admissão da tese do marco temporal significa uma verdadeira legitimação da barbárie, significa dizer que o Estado brasileiro, por meio do Supremo Tribunal Federal, estaria legitimando, estaria chancelando as barbaridades que foram cometidas com os povos indígenas e que acarretaram na sua expulsão, no seu deslocamento do seu território originário. Isso viola toda ideia de ancestralidade, toda ideia de territorialidade. Isso viola, inclusive, as normas previstas na Constituição. A Constituição Federal não estabelece esse marco temporal. Não pode o Supremo Tribunal fazer isso. O Supremo não é legislador.
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Como você avalia a política indigenista hoje no nosso país, diante do aparato jurídico que nós temos, de alguns marcos no campo de conquistas a respeito da proteção dos territórios e de outras políticas públicas de atenção à saúde e educação? Qual é a sua avaliação na atual conjuntura dessa política indigenista governamental?
O Estado brasileiro, nos últimos anos, tem vivido um momento difícil em relação aos direitos fundamentais. Na verdade, nós estamos vivendo um retrocesso grave na garantia e concretização desses direitos. Mas, quando nós falamos especificamente sobre direitos dos povos indígenas, a situação é ainda muito mais grave. O julgamento do Supremo Tribunal Federal para a definição sobre a adoção ou não da tese do marco temporal, por si só, já é uma ameaça muito grande aos direitos historicamente construídos pelos nossos povos. Por outro lado, a pandemia [de covid-19] não só agravou como evidenciou as desigualdades sociais, o descaso do governo brasileiro com o cuidado, com a proteção dos povos indígenas. Tudo isso demonstra que nós estamos vivendo um momento muito delicado, um momento que exige muita resistência, muita estratégia também, muita reflexão, muita união do nosso povo para a construção de estratégias que nos permitam ultrapassar este momento, assegurar os nossos direitos, buscar pela efetivação dos direitos que nós já temos reconhecidos, sem nenhuma redução. Nós não podemos admitir o retrocesso dos direitos que nós já temos, nós temos que estar lutando pela efetivação deles e pelo reconhecimento de muitos outros que, durante muito tempo, nos foram negados.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog