Arthur Chioro, entrevista exclusiva: Teremos um canal permanente de monitoramento do SUS, garantindo transparência e participação social

Por Conceição Lemes

Em 25 de novembro, os ex-ministros da Saúde Arhur Chioro, Humberto Costa e José Gomes Temporão, do GT da Saúde do Gabinete de Transição, apresentaram o primeiro diagnóstico do setor.

Foi durante entrevista coletiva, realizada em Brasília.

O governo Jair Bolsonaro (PL) desmontou criminosamente a saúde pública no Brasil.

O apagão de dados da vacinação contra covid-19 em crianças de 6 meses a 2 anos de idade foi um dos pontos abordados.

Apesar de o Brasil ter 6 milhões de crianças nessa faixa etária, o Ministério da Saúde distribuiu apenas 1 milhão de doses, restritas a quem tinha comorbidade.

“O DataSUS não tem registro dos dados dessa vacinação, estamos às cegas”, indignou-se Humberto Costa.

DataSUS é o departamento de informática do Sistema Único de Saúde.

Possui todas as informações referentes à saúde da população do País.

Além dos dados globais, armazena os referentes às condições de saúde de cada um de nós.

Os meus, os teus, os da sua família, os dos vizinhos… 

São informações pessoais, confidenciais. Mas também são dados estratégicos, questão de soberania nacional.

Até 2020, DataSUS, Ministério da Saúde e as empresas de informática públicas do governo federal eram os únicos guardiões dessas informações que exigem sigilo.

Porém, graças a um contrato misterioso de R$ 245 milhões firmado entre o Ministério da Saúde e a Amazon,   o armazenamento do DataSUS migrou para a multinacional americana (veja PS do Viomundo).

Em razão disso, comecei por aí esta entrevista com o médico sanitarista e professor Arthur Chioro, coordenador do GT de Saúde do Gabinete de Transição.

Viomundo — Há alguma possibilidade de esse apagão da vacinação infantil contra a covid-19 estar relacionado ao fato de o armazenamento dos dados do DataSUS ter migrado para a Amazon?

Arthur Chioro — No momento, não há como descartar essa hipótese nem confirmá-la. É que o Ministério da Saúde não está repassando dados detalhados para o GT- Saúde do Governo de Transição, o que nos impede de fazer avaliação detalhada. 

Só a partir de janeiro, com a posse, será possível verificar com exatidão essa situação, que se apresenta grave.  

Espero que a equipe que comandará o Ministério da Saúde faça uma auditoria minuciosa no contrato e analise em profundidade o “apagão de dados”.

Esses dados, aliás, sequer foram fornecidos ao Tribunal de Contas da União (TCU), que abriu procedimento especial de fiscalização para analisar as causas do apagão de dados do Ministério da Saúde em plena pandemia.

Viomundo — Esse contrato vai ser mantido?

Arthur Chioro – Até agora, como te disse, não tivemos acesso aos dados detalhados do processo e do contrato, já que muitas informações estão sob sigilo e não foram repassadas.

O contrato, portanto, precisará ser analisado em profundidade. Será o primeiro passo. 

O Estado brasileiro tem um conjunto de dados sensíveis em diversa áreas, entre elas a saúde. Não me parece adequado entregar a guarda de dados tão sensíveis a uma Bigtech [Amazon é uma das cinco globais] e, ainda por cima, com o pagamento de valores milionários.

Mais alarmante é observar a promiscuidade entre ex-dirigentes do Ministério da Saúde e a empresa americana.

Afinal, o contrato foi assinado por um servidor que na sequência tornou-se alto funcionário da multinacional. Isso precisará ser averiguado, pois deixa tudo sob suspeição.  

Há outras alternativas para armazenamento dos dados da saúde, em conjunto com outros ministérios, utilizando estruturas públicas já consagradas, como o Serpro e a Dataprev.

Além da proteção adequada de dados, podemos buscar o desenvolvimento de tecnologias e a garantia da soberania nacional.

Viomundo — O novo governo pretende revogar o programa Previne Brasil, já que desfinanciou o SUS e, principalmente, abriu espaços para fraudes e desvios que eram muito mais improváveis com o Piso da Atenção Básica (PAB fixo), extinto pelo governo Bolsonaro? 

Arthur Chioro — Há temas na saúde que precisam ser rediscutidos e aperfeiçoados, mas que não podem ser simplesmente revogados devido às implicações práticas no cotidiano dos serviços e no financiamento das ações de saúde.

Viomundo — Por quê?

Arthur Chioro –– É para que não se crie um vácuo regulatório, comprometendo ou paralisando os  serviços prestados à população. A Política Nacional de Atenção Básica é um claro exemplo disso.

Além do mais, há aspectos do Previne Brasil, como a captação de usuários e o pagamento por atingimento de metas, que são defendidos por gestores municipais e alguns outros setores, que reivindicam sua manutenção

De qualquer forma, as mudanças que permitam qualificar e expandir a atenção básica precisarão ser efetuadas no bojo de uma ampla repactuação com o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), considerando o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde).

Viomundo – Mas há mudanças urgentes!

Arthur Chioro –– Com certeza. Entendo que precisam ser feitas com rapidez. Mas, insisto, devem ser fruto de um amplo debate e pactuação, restaurando o pacto interfederativo solidário e cooperativo. E, claro, sem deixar de considerar as necessidades da população acima de qualquer outro interesse.

Viomundo  — O governo Bolsonaro aboliu os mecanismos de fiscalização e controle em todos os setores,  inclusive na saúde. O Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DenaSUS) foi destruído. Ele vai ser recuperado?

Arthur Chioro — Na verdade, a desestruturação do Denasus teve início no golpe de 2016, que derrubou a presidenta Dilma Rousseff. Nosso compromisso é reestruturar o sistema nacional de auditoria e fortalecer os seus componentes.

Viomundo – Diria que a desestruturação do DenaSUS foi proposital? 

Arthur Chioro — É claro que foi. Não interessava ao Ministério da Saúde do governo Bolsonaro uma ação independente, capaz de identificar a desmontagem de políticas e programas a partir da ação dos dirigentes do próprio órgão, muitos agindo sob inspiração ou a mando do presidente da República.

Não queriam que fossem analisada e auditada a forma como recursos foram utilizados, seja por ação direta do Ministério da Saúde ou pelos convênios estabelecidos de forma clientelista, em particular pelo uso abusivo de emendas parlamentares individuais, de bancada e, principalmente, as secretas.

Se o DenaSUS estivesse funcionando adequadamente, a rede de hospitais do Rio de Janeiro não teria sido tomada pelos milicianos. Assim como não teriam acontecido muitas das barbaridades denunciadas pela CPI da Covid no Senado e nos inúmeros relatórios do TCU.

Esse é o governo mais desastrado, mas também o mais corrupto de todos os tempos. O futuro dirá se tenho ou não razão.   

Viomundo – Há planos de se resgatar a CartaSUS, instituída no governo Dilma? [A pessoa passava por algum procedimento no SUS – cirurgia, por exemplo –, tempos depois recebia em casa uma carta (com selo de devolução já pago) perguntando como tinha sido. A carta visava controlar a prestação e  qualidade do serviço e eventualmente pegar alguma fraude. No início do governo do golpista Michel Temer, ela foi paralisada. O então ministro da Saúde, o engenheiro e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) alegou falta de recursos]

Arthur Chioro — A CartaSUS não será apenas resgatada. Será também potencializada, inclusive com a criação de novas funcionalidades, como o TeleSUS, uma canal direto de teleorientação para os usuários.

Assim, poderemos não apenas captar as denúncias e sugestões, mas orientar, de forma segura, os cidadãos em relação à sua saúde e ao uso adequado dos serviços de saúde, identificar as principais queixas e insuficiências.

Instrumentos como a CartaSUS e outros voltados à participação social que pretendemos criar são fundamentais para uma ouvidoria ativa.

É para que o cidadão possa ter um canal permanente de monitoramento e fiscalização do SUS, garantindo transparência e participação social.

Viomundo – A propósito, no novo Ministério da Sáude vai ser criado mesmo um departamento/secretaria para cuidar exclusivamente da Saúde Mental?

Arthur Chioro — Após ouvir gestores municipais e estaduais, o Conselho Nacional de Saúde, especialistas e, em particular, as diversas entidades que representam o movimento da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial, o GT-Saúde chegou à conclusão consensual de que é necessário criar um Departamento para coordenar a política de saúde mental e a política de cuidados às pessoas em uso abusivo de álcool e outras drogas.

Viomundo – Saúde mental será prioridade do novo governo?

Arthur Chioro – É um dos temas mais graves e importantes a ser tratado pelo novo governo. Essa área, além de duramente desestruturada ao longo do governo Bolsonaro, foi muito atingida pela pandemia de covid.

É inaceitável a falta de respostas para o aumento expressivo de casos de pessoas em sofrimento psíquico (leves, moderados e graves) e em uso abusivo de álcool e outras drogas, particularmente as mais pobres, que dependem exclusivamente do SUS.

É um tema que precisa ser conduzido a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica, priorizando a RAPS [Rede de Atenção Psicossocial] e garantindo direitos e o cuidado em liberdade.

Viomundo – E a saúde da população negra como será tratada?

Arthur Chioro — Está sendo tratada como uma prioridade em nossos relatórios e recomendações. Queremos que esse trabalho seja desenvolvido em estreita articulação com o Ministério da Igualdade Racial, que será recriado.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra foi um dos grandes avanços da gestão dos governos petistas.

Ela diz respeito ao reconhecimento do racismo estrutural como um dos determinantes sociais na saúde, justificado pelos dados epidemiológicos.

Covid-19, morte materna, insegurança alimentar, morbimortalidade, violência obstétrica, entre outros problemas, incidem com maior contundência sobre a vida da população negra brasileira, demonstrando de forma cabal as desigualdades raciais em saúde.

É como disse o Presidente Lula: “A doença também tem cor”

Adotaremos em todas as ações e programas do Ministério da Saúde uma diretriz antirracista na política nacional de saúde no Brasil.

PS do Viomundo — Em 25 de novembro, na coletiva de imprensa do GT-Saúde do Gabinete de Transição, o ex-ministro e senador Humberto Costa disse: “O DataSUS não tem registro dos dados dessa vacinação [contra covid-19, em crianças de 6 meses a 2 anos de idade]. Estamos às cegas”. 

Na hora, devido a falta absoluta de transparência do Ministério da Saúde, me veio à cabeça a migração dos dados do DataSUS para a Amazon. 

Apenas como hipótese pensei: Haveria conexão entre o misterioso contrato e o fato de o DataSUS não ter registro dos dados da imunização infantil contra covid-19? 

Por isso, foi a primeira pergunta que fiz ao médico sanitarista Arthur Chioro, coordenador do GT Saúde do Gabinete de Transição, que respondeu: 

No momento, não há como descartar essa hipótese nem para confirmar. É que o Ministério da Saúde não está repassando dados detalhados para o GT- Saúde do Governo de Transição, o que nos impede de fazer uma avaliação detalhada. 

Só a partir de janeiro, com a posse, será possível verificar com exatidão essa situação, que se apresenta grave. 

repórter Paulo Motoryn, do Brasil de Fato, foi quem revelou em primeira mão o contrato de R$ 245 milhões.

Também que governo Bolsonaro defendeu a contratação de um serviço privado, ignorando a estrutura pública federal em tecnologia da informação. Leia-se: desprezou as expertises do Serpro e da Dataprev.

Com vários agravantes: 

*Jacson Barros, ex-diretor do DataSUS, foi um dos responsáveis pela decisão do Ministério da Saúde adotar o serviço de Amazon. Um mês após deixar o governo Bolsonaro, Jacson assumiu o cargo de gerente de negócios da mesma empresa.

*Falta de transparência do processo licitatório.

*Até hoje o contrato o Ministério da Saúde e Amazon não é público, logo se não sabe exatamente ele reza. 

Há muitas perguntas em aberto: 

De acordo com o contrato, que obrigações o Ministério da Saúde tem com a Amazon e vice-versa?

Como esses dados estão armazenados?

Há cláusula de sigilo e de inviolabilidade quanto a esses dados?

Que garantia o cidadão brasileiro tem que de que os dados referentes à sua saúde pessoal não serão usados pela Amazon, já que não deu nenhuma autorização nesse sentido?

A Amazon pode fazer uso comercial desses dados, vendendo ou repassando-os para outras empresas?

A Amazon pode repassá-los para governo dos EUA para uso estratégico/militar?

Via Secom, fiz essas perguntas ao Ministério da Saúde, além de solicitar a íntegra do contrato. Não responderam.

O Viomundo tentou ainda, via  Lei de Acesso à Informação (LAI), obter a íntegra do contrato. Nada.

Tomara que todo esse mistério seja revelado a partir de janeiro, com a posse do presidente Lula. Conceição Lemes

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *