Após apoiar Guaidó e oposição golpista, Espanha recua e volta a reconhecer Maduro
Um dos países que mais forneceu apoio ao chamado “governo interino” de Juan Guaidó, a Espanha decidiu normalizar suas relações com a Venezuela e voltou a reconhecer o mandato do presidente Nicolás Maduro. O diplomata espanhol Ramón Santos Martínez entregou na última terça-feira (24) suas credenciais diplomáticas ao mandatário venezuelano e formalizou sua posse como novo embaixador do país europeu.
O ato encerrou um período de mais de dois anos em que Madri ficou sem um representante diplomático de alto escalão na Venezuela, mantendo suas atividades consulares apenas com um encarregado de negócios.
A decisão tomada pela direita venezuelana no final de dezembro de encerrar o cargo fictício de “presidente interino” de Guaidó serviu como motivação para que a Espanha saísse da lista de países apoiadores do “interinato”, ao contrário dos EUA e do Reino Unido, que decidiram manter o apoio à Assembleia Nacional paralela controlada pela oposição e seguir sem reconhecer Maduro.
Ao Brasil de Fato, o cientista político venezuelano William Serafino explica que a postura espanhola responde “à nova realidade política da Venezuela”, na qual Guaidó e seus aliados estão cada vez mais enfraquecidos e isolados.
“A Espanha não quer ficar para trás diante desse novo quadro político, ou seja, evidentemente a realidade está trazendo eles de volta à Terra, então se viram obrigados a reconhecer Maduro. Além disso, diferente de outros países, como por exemplo Reino Unido e Estados Unidos, parece que a Espanha está buscando uma forma de interlocução, uma forma de aceitação frente ao governo com um ato propositivo e não de confrontação”, diz.
No domingo (29), um grupo de opositores ligados a Guaidó se reuniu com o ministro das Relações Exteriores da Espanha, José Manuel Albares, em Madri. O objetivo da visita, segundo um dos ex-deputados venezuelanos presente no encontro, era pedir ao governo espanhol que não normalizasse as relações com a Venezuela. Pelo Twitter, Albares confirmou a reunião e disse que a Espanha apoiará o diálogo entre governo e oposição.
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Serafino ainda destaca a maneira com a qual o governo espanhol voltou a reconhecer Maduro, sem um anúncio formal ou, ao menos, uma declaração de revisão da política externa.
“Essa decisão acontece como se fosse algo protocolar, administrativo, burocrático, porque é uma forma de reduzir os custos políticos de um giro dessa característica. Ou seja, eles desconheceram um presidente legítimo, se juntaram a uma campanha de sanções e cooperaram para o cumprimento dessas sanções, e agora tratam isso como se fosse apenas uma troca de documentos, uma simples entrega de credenciais diplomáticas para que ninguém note que estão dando um giro abrupto na política externa”, afirma.
Tensão e ruptura
A aparente atitude apaziguadora adotada por Madri nas últimas semanas difere das tensões diplomáticas e políticas criadas nos últimos quatro anos, desde que o país decidiu reconhecer a “autoproclamação” de Guaidó como “presidente”, em janeiro de 2019. O ponto alto da confrontação ocorreu naquele mesmo ano, quando no mês de abril o ex-deputado e então líder da oposição encabeçou uma tentativa de golpe de Estado.
Com tropas sublevadas da Guarda Nacional Bolivariana que haviam aderido ao movimento golpista, Guaidó tentou tomar a base aérea militar de La Carlota, na zona oeste de Caracas. Nas primeiras horas da intentona, enquanto forças legalistas e golpistas entravam em confronto, o dirigente opositor Leopoldo López fugiu da prisão domiciliar e foi às ruas ao lado de Guaidó para liderar a tentativa de golpe.
Fracassado o movimento, López se escondeu na embaixada da Espanha com anuência do então embaixador Jesús Silva. Mais de um ano depois, em outubro de 2020, o opositor deixou a Venezuela de maneira irregular tendo como destino final a cidade de Madri.
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À época, o governo venezuelano acusou a Espanha e seu embaixador como “cúmplices ativos” da fuga de López. “O Reino da Espanha participa ativamente da fuga ilegal de um perigoso delinquente e decide recebê-lo em seu território, sem observar as leis internacionais, inclusive as leis migratórias espanholas e os acordos bilaterais em matéria de Justiça”, denunciou a chancelaria da Venezuela naquele ano.
Já em abril de 2021, o Ministério Público da Venezuela pediu à Suprema Corte do país iniciar o processo para a extradição do opositor junto ao governo da Espanha. Em maio do mesmo ano, a Justiça venezuelana pediu formalmente ao governo espanhol que tomasse medidas para extraditar López ao país. O processo está paralisado desde então.
Na Venezuela, Leopoldo López é considerado foragido pela Justiça após cumprir apenas cinco dos 14 anos de prisão aos quais foi condenado por sua participação e organização das chamadas “guarimbas” de 2014, atos violentos de apoiadores da direita que tinham como objetivo derrubar o governo. Os atos deixaram cerca de 40 mortos e algumas táticas utilizadas foram invasões e incêndios a prédios públicos e sedes de partidos de esquerda.
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Para William Serafino, é improvável que a recente reaproximação entre Venezuela e Espanha termine facilitando o andamento do processo de extradição de López, principalmente pelos custos políticos que uma medida como essa traria ao governo espanhol. A Espanha deve realizar ainda neste ano eleições regionais e nacionais, e o premiê Pedro Sánchez está pressionado pela possibilidade de que partidos de direita e extrema direita costurem uma aliança para derrotá-lo nas urnas.
“Eu não acho que Sánchez, que no final é quem deve tomar uma decisão nesse sentido, se arrisque frente aos verdadeiros interessados em manter a figura de Leopoldo, que seriam o Partido Popular [de direita], o Vox [de extrema direita], [a governadora de Madri] Isabel Diaz Ayuso. As projeções eleitorais na Espanha não são boas, então Sánchez não tem muita margem de manobra política para cooperar judicialmente e entregar Leopoldo López, acho que seria um incêndio político, ao menos midiático, e faria muito mal a ele nesse contexto pré-eleitoral”, afirma.
Interesses energéticos
Se por um lado a normalização de relações entre Venezuela e Espanha pode ser encarada como uma vitória da diplomacia do país sul-americano, por outro os interesses econômicos também podem explicar a retomada dos laços, principalmente em um momento de crise energética na Europa ocidental devido à guerra na Ucrânia.
Desde o início do conflito, o Ocidente vem dando sinais positivos no sentido de reintegrar a Venezuela aos espaços de diálogo e comércio globais, citando inclusive a possibilidade de suspender sanções para reinserir o petróleo venezuelano no mercado europeu.
Um dos primeiros acenos partiu justamente dos EUA, quando permitiu, através de uma licença, que a estatal venezuelana PDVSA voltasse a fornecer petróleo à espanhola Repsol, mas apenas como parte do pagamento da dívida que ela tem com a empresa europeia. Os negócios duraram pouco, pois a PDVSA insiste que seria mais vantajosa a troca de petróleo pesado por combustíveis e derivados.
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Para Miguel Jaimes, doutor em geopolítica petroleira, as condições para que a produção energética venezuelana seja reintegrada aos mercados ocidentais são cada vez mais favoráveis, especialmente pela urgência vivida pela Europa. “Em política não há bons e maus, há interesses, que podem ser econômicos e, neste caso, petroleiros. É interessante para a Venezuela abrir um leque de opções com outros países e vice-versa, por isso acredito que é certo que os países europeus querem estar mais próximos dos países fornecedores de petróleo”, diz ao Brasil de Fato.
O retorno das operações da Chevron em território venezuelano, proporcionado pelos EUA por meio de uma nova licença dentro de sua política de sanções, marca a primeira volta de uma grande companhia ocidental ao país. Em entrevista à Bloomberg, Pierre Breber, diretor financeiro da gigante energética, afirmou que desde novembro, quando a empresa recebeu a permissão, as plantas mistas nas quais ela opera em conjunto com a PDVSA ampliaram a produção de petróleo pesado em 80%, atingindo os 90 mil barris diários.
Com o precedente da Chevron, o governo venezuelano tem esperanças de que possa conseguir acordos parecidos para atrair outras companhias estrangeiras, como a espanhola Repsol. Para Jaimes, Madri tem potencial para ser um aliado nessa onda de retorno de empresas estrangeiras à Venezuela.
“No meu entender, a Espanha é um dos países que está levando adiante as relações mais profundas e os movimentos mais estratégicos com a Venezuela. Por isso podemos supor, de uma maneira muito clara e precisa, que a Espanha vai desempenhar um papel importante em nosso país e, inserida nisso, sua empresa petroleira, que é o que, no fundo, interessa ao governo da Espanha amarrar neste momento”, afirma.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog