André Oliveira: A distância entre o discurso marqueteiro de Doria e a realidade dos cientistas do Butantan
Por Carlos Oliveira*, especial para o Viomundo
No início de 2020, um vírus desconhecido, relacionado aos coronavírus e registrado pela primeira vez na China, começa a se espalhar pelo mundo. A população é isolada dentro de suas casas. Empresas fecham as portas, o prejuízo econômico e a perda de vidas são enormes.
Acuadas, as pessoas se voltam a ouvir explicações de médicos e pesquisadores em busca de soluções. pesquisadores.
Há um repentino sentimento de valorização da vida, da medicina e, sobretudo, da ciência.
Com milhares e milhares de mortes, esperava-se que toda destruição causada pelo vírus levasse à valorização da ciência e da saúde, principalmente da pública, representada no Brasil pelo SUS.
Esperava-se também que a proteção ao meio ambiente seria valorizada, assim como nossa relação com o planeta e com nossos próprios semelhantes.
As vacinas — trazidas primeiro da China, pelo Instituto Butantan, e da Índia, pela Fiocruz — controlaram a pandemia, trazendo de volta certo ar de normalidade ao país.
Em São Paulo, em dezenas de coletivas de imprensa, o então governador João Doria (PSDB) exaltava as vacinas, a ciência e o Instituto Butantan.
Pena a distância gigantesca entre o discurso marqueteiro e a prática de Doria.
Isso ficou evidente numa manifestação realizada em 23 de março de 2022, portanto, dois anos após o início da pandemia, em frente ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.
Algumas centenas de pesquisadores científicos de 17 institutos de pesquisa de várias áreas da saúde, agricultura e meio ambiente, tentavam um contato com o governo.
O cabelo branco de alguns deles contrastava com a jovialidade de dezenas de policiais reunidos em barreira para impedir a aproximação do Palácio dos Bandeirantes.
Lá dentro, Doria apresentava uma de suas últimas coletivas de imprensa. Agora, ao ar livre, sem máscaras, demonstrando vitória sobre a pandemia.
A cena se repetiu dois dias depois na entrada do Instituto Butantan, que fica junto ao campus da USP, na Cidade Universitária.
Dezenas de pesquisadores do Butantan erguiam faixas, cobrando de Doria o cumprimento da Lei Complementar (LC) 859/99, que equipara os salários dos pesquisadores aos das universidades estaduais.
No estado de São Paulo, a carreira de pesquisador científico foi criada pela lei Complementar nº 125, de 18 de novembro de 1975, governo Paulo Egydio Martins.
Em 21 de setembro de 1999, o governador Mário Covas promulgou a LC 859/99, que teve como efeito imediato o restabelecimento de valores iguais para as referências de vencimentos dos cargos de cada uma das classes da Serie de Classes de Pesquisador Científico.
Na mensagem encaminhada à Assembleia Legislativa junto com o projeto (na íntegra, abaixo), Covas disse:
“A propositura ora encaminhada, decorrente de estudos realizados no âmbito da Secretaria de Governo e Gestão Estratégica, tem como objetivo essencial conferir aos vencimentos da série de classes em apreço valores idênticos aos dos vencimentos percebidos pelos docentes das Universidades Estaduais”
Covas elevou o salário dos pesquisadores igualando-o ao dos docentes das universidades.
Mas as correções não foram mantidas nos governos tucanos posteriores — Doria, inclusive — e o salário atual de um pesquisador corresponde a 40% do que recebe um docente de universidade estadual.
Voltando à manifestação de pesquisadores do Butantan no dia em que Doria foi ao Instituto.
Enquanto lá fora, pesquisadores pediam a equiparação salarial, lá dentro, Doria entregava a nova fábrica multipropósito, construída com dinheiro de dezenas de empresas que doaram para que ocorresse a produção nacional da Coronavac.
A nova fábrica não era a única novidade.
Segundo a revista Veja, o Butantan foi totalmente reformulado e contará com um “Parque da Ciência”.
O eixo central do instituto aparece com cara nova, as ruas foram eliminadas e o pavimento trocado por pedras de granito.
Dois espelhos d’água ornam as duas extremidades da nova área de lazer dos paulistanos.
A direção do Instituto espera um incremento no número de visitantes, dos atuais 300 mil para cerca de 1 milhão anualmente.
Vários prédios, muitos históricos, estão sofrendo reformas e/ou restauro ao mesmo tempo, em um frenesi de empresas saindo e entrando que chega a tumultuar a entrada do Instituto.
Na sua quase totalidade, as obras estão sendo tocadas com financiamento da Fundação Butantan, uma fundação de apoio que administra as verbas recebidas pela venda das vacinas e soros ao Governo Federal. Dinheiro do SUS.
Segundo a Veja, a Fundação Butantan teve um faturamento de R$ 8 bilhões em 2021.
A contratação de pessoal pela Fundação Butantan deu um enorme salto durante a pandemia. A princípio, pela necessidade de ampliação de pessoal por causa da coronavac, o número de empregados passou de cerca de 2 mil para 3 mil pessoas.
Do lado de fora, além da defasagem salarial, os pesquisadores reclamam da falta de concursos.
O último concurso ocorreu há mais de 10 anos.
Atualmente há pouco mais de 400 funcionários públicos trabalhando no Instituto. E metade já pode se aposentar. Pouco mais de uma centena são pesquisadores.
São eles que coordenam pesquisas, orientam alunos de iniciação cientifica, especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado.
São eles também os responsáveis pelas publicações científicas e por apresentar ao mundo as novidades e possíveis soluções para os mais diversos problemas. Como para a covid, dengue, febre amarela, chikungunya, esquistossomose, zika, tratamento de acidentados por cobras e escorpiões.
A Fundação é como o corpo que apoia a cabeça, que é a pesquisa. O corpo cresceu rapidamente, a cabeça está atrofiando.
Doria deixou o cargo de governador no dia 31 de março, em um grande evento no Palácio dos Bandeirantes. Mais uma vez, o governador exaltou a ciência e o Instituto Butantan.
Mas a ciência não foi convidada. Nem ouvida.
“Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni”
Chico Buarque – Geni e o Zepelim
No Brasil não havia dengue. Não havia zika nem chikungunya. E no mundo não tinha covid. Essas doenças chegaram ao Brasil recentemente, e outras certamente virão.
Enquanto existir Genis para enfrentar os zepelins prateados a sociedade poderá dormir sossegada.
Mas sem Genis, não haverá mãos a serem beijadas. O prefeito não terá a quem se ajoelhar. Os olhos vermelhos do bispo a ninguém comoverá. E o banqueiro finalmente entenderá que em algumas situações de nada adianta ter um milhão.
Publicação de: Viomundo