Aline Blaya: Posso trocar de lugar com esse cachorro?

Te entendo. Entende?

Por Aline Blaya Martins*

Todos os dias eu saio para passear com a minha cachorra, que se chama Shanti. Ironicamente, significa Paz mas de paz ela não tem nada.

Mas, entre trancos e barrancos, vamos e a filhote recebe amor, comida, proteção, cuidado e “educação”.

Habitualmente no passeio treinamos os comandos “junto” para que ande próxima a mim e “deixa” para que largue de mão coisas que lhe tiram a atenção, tais como mexer no lixo, crianças brincando ou uma briga entre pessoas ou outros animais.

Certo dia, estava ela ao meu lado, linda e alegremente abanando o rabo, quando um rapaz passa por nós e a cachorra faceira vai ao seu encontro, como faz com todos que cruzam nosso caminho.

Nisso ele olha para ela e me fala:

— Por que eu não posso trocar de lugar com esse cachorro???

O foco na cachorra e no treinamento foram para o espaço e no espaço meu olhar buscou o dono da pergunta.

Mandei a cachorra sentar, olhei nos olhos dele e respondi:

— Eu te entendo, ela realmente teve sorte.

Quando eu era criança, uma vez um peão disse para o meu pai quando um animal nasceu com uma deficiência:

— Sabe, doutor, até para se nascer bicho, nesta vida, é preciso ter sorte…

Quando escutei a pergunta do rapaz, a única coisa que me ocorreu foi o rosto marcado daquele homem que eu observava cuidando pacientemente do campo e dos animais.

Parei no espaço e no tempo e o encontrei na minha memória, envelhecido pelo sol, pela pobreza e pela bebida, sofrido pela lida do campo.

Aquele homem que tanta sabedoria tinha para ensinar com lições que não se ensina nos livros, porque se aprende com corpo e na alma.

O rapaz seguiu:

— Moro na rua, dona, e na rua os caras robam tudo que é da gente. Faz 20 dias que não durmo porque os cara tão robando direto… hoje peguei um cara e briguei… dei uma facada nele e outra no cachorro dele, que me atacou defendendo o dono… mas eu gosto de cachorro, moça, de verdade… o bicho não tinha nada a ver, só que eu não tinha o que fazer naquela hora…

Eu, entre a sensação humana de alerta gerada pelo relato e de respeito diante da gravidade do que o homem me dizia, me mantive com olhos, ouvidos, coração e mente bem abertos.

Acho que, na confusão dos pensamentos, algo em mim se deixou atravessar pela vida e com calma apenas me fiz ouvinte.

Ele seguiu:

— Agora olhei para a tua cachorra, moça, e me deu vontade de chorar, porque isso não devia ser assim! Os cara não deviam robar, eu não devia brigar e as pessoas como tu não deviam ter medo de mim. Tu parou e tá me escutando. Outras pessoas, quando eu dei “bom dia”, saíram da parada de ônibus. Só uma moça ficou, e agora tu.

Eu, a cachorra e ele, parados na esquina.

— É triste. Sabe? Eu queria trocar de lugar com teu cachorro.

Naquela hora viajei lá para o início do nosso quase monólogo e pensei no que eu havia dito para ele.

Eu entendo.

Eu entendo?

E, sem a menor possibilidade de eu antecipar a situação, ele me mostrou as facas que tinha nos bolsos.

Duas facas de serrinha, uma suja de sangue.

Cérebro em alerta. Coração apertado.

“Eu te entendo????”

Não entendo nada e acho que nunca vou entender.

Senti medo. Senti pena. Senti uma profunda tristeza.

Como diz Falero: Mas em que mundo tu vive!?

Por que um cachorro merece mais oportunidade e cuidado que um ser humano?

E não estou glamourizando a situação, porque eu poderia estar tranquilamente conversando com um assassino e realmente senti medo…

Porém, vivemos em um lugar tipo selva, ou bem pior que a selva, onde se mata por quase nada, onde a vida vale nada. Haja visto que meu interlocutor, pessoa tão humana quanto eu, me contou e mostrou uma cicatriz que “ganhou” ao dormir na rua e ao acordar tomando uma facada, no peito…

Ele, as facas e as cicatrizes me deram bom dia neste dia e eu tive certeza de que o peão estava certo: Até para se ser bicho, tem que se ter sorte nesta vida.

Que mundo.

Bom dia para quem?

Tudo me lembra Marcelo Yuka, mais uma vítima disso tudo. E já não sei qual das frases gera mais eco em mim, se “também morre quem atira” ou se “Paz sem voz, não é paz. É medo.”

Ele não tem voz, eu não tenho voz.

Eles nos roubam tudo, mas o pior roubo é o da esperança.

Que sigamos nossos caminhos desafiando tudo. Teimando em esperançar, em olhar nos olhos, em escutar… 

E que jamais aceitemos o inaceitável: depender da sorte de ter nascido em um lugar que se pode chamar de lar. Um lugar onde não se precise sonhar em trocar de lugar com um cachorro.

Aline Blaya Martins: Mulher, mãe, militante social do Coletivo Célia Sánchez, professora, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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