Aline Blaya: Olha o mundo, rapaz! Olha o mundo!
Olha o mundo, rapaz! Olha o mundo!
Por Aline Blaya Martins*, especial para o Viomundo
Estou de férias. Tipo férias. Férias de professor, sabe o que é isso?
Pois, como amanhã viajo com as crianças e semana que vem recomeçam as aulas, tenho tentado me organizar o máximo que posso para poder sair sem que aconteça nenhum infortúnio maior.
Então, hoje tirei o dia para organizar os ambientes virtuais das disciplinas e para ir até a reitoria para assinar alguns certificados de conclusão de curso de pós-graduação.
Acordei cedo, fiz as minhas tarefas e me fui à rua a passos largos. Os colegas da reitoria haviam marcado um horário para eu assinar os diplomas.
Em tempos de pandemia, de praticamente dois anos de invasão domiciliar (home office não existe, porque como disse a sábia Eliane Brum, onde tem home não tem office e onde tem office não tem home), e de universidade de portas praticamente fechadas, é preciso marcar hora para qualquer coisa.
Contudo, ao chegar ao Campus Central tive a impressão de fazer uma viagem no tempo e de me transladar.
Não sei bem se foram 17 anos ou 78. Me senti dentro da cabeça da pequena Ofélia adentrando no Labirinto do Fauno, filme do mexicano Guilhermo Del Toro de 2006, ambientado em 1944.
Para ser a menina Ofélia era preciso apenas fechar os olhos, ouvir as vozes da floresta, sentir a brisa invadir o ambiente, o perfume do orvalho e o farfalhar que as folhas possuem ao tocarem-se.
Depois seria necessário lembrar que o mundo está em colapso, que o seu país é governado por um líder fascista, que acaba de passar por uma grande guerra civil e que sua figura paterna é um dos fiéis desse governo antidemocrático e que você e sua mãe dependem dele pra sobreviver.
Este era basicamente o cenário da vida da pequena que foi levada por sua mãe para viver no moinho onde o fascista capitão Vidal fazia frente contra os rebeldes ao governo de Franco.
A vida diante de um regime fascista, em estado de exceção capitaneado por um machista sádico não era nada fácil para uma menina e simbolicamente a criança precisou encontrar em um universo surreal, cheio de criaturas horripilantes e em um ambiente sombrio, um jeito de dar forma ao mal. Ela se vale de um reino de fantasia nada principesco. Seus protetores, fadas e o próprio fauno em seu labirinto, são feios como a realidade imposta a menina.
Hoje me senti perto dela.
Um grande parque se coloca entre a minha casa e a reitoria da universidade. No caminho, ouvi os sons do parque, senti a brisa tocar meu corpo, o perfume das flores e o farfalhar que as folhas ao tocarem-se. Lembrei que meu país está em colapso e que é governado por um fascista e que o mandatário maior da reitoria é… Deixa para lá…
Voltemos a mim e a Ofélia. O caso é que, nesta semana, em plena disseminação descontrolada da variante Ômicron da Covid-19 e de influenza e sem testes, em pleno debate da mudança constitucional chilena para a criação de um sistema de saúde universal como o nosso, em pleno colapso da natureza com enchentes na Bahia, secas no Rio Grande do Sul e desabamentos em Minas Gerais…
Uma das maiores e mais qualificadas universidades da região sul do país amanheceu cheia de grades e com barreiras dignas de um labirinto muito bem projetado.
Caminhei mais de uma hora até sair da floresta/parque e conseguir encontrar a sala da reitoria em que deveria assinar o diploma de uma profissional de saúde que está no front como um dos rebeldes que resistia à ditadura de Franco no Labirinto do Fauno.
Devo ter sido barrada por pelo menos meia-dúzia de portões trancados com cadeado. Contudo, após contornar o mundo e desbravar o campus inteiro, consegui, como a pequena Ofélia, fazer a tarefa que me esperava.
Mas, o Fauno que abriu para mim, era terrível também e os rebeldes que habitavam o prédio estavam ali trancados a chave. Só entrei e saí porque eu tinha o giz que abria as portas do submundo.
Saí dali assim que consegui e pensei no tamanho das dificuldades que estarão nas próximas tarefas. Fiz todos os caminhos até chegar de volta a floresta. Caminhando, caminhante, como Eduardo Galeano, só pensava que os monstros mais assustadores são aqueles que habitam o lado de fora e que determinam o que é feito lá dentro.
Pensei em como podiam ter colocado tantas e tantas grades, tantos cadeados em um lugar que deveria estar muito mais cheio que o shopping, muito mais aberto do que as praias justamente por ser este um dos momento onde o país mais precisou de conhecimento, da ciência e de todos lutando uns pelos outros. Daí lembrei da Ofélia, do labirinto, do sadismo do Capitão Vidal, e das tarefas da menina.
O filme ora parece lento, ora frenético, sempre nebuloso e soturno. Saí da universidade nesta perspectiva. Quando cheguei ao prédio das Biociências, antigo prédio da Medicina, li um pequeno cartaz todo estropeado com as seguintes palavras “NO ERAN DELINQUENTES Y SÍ ESTUDIANTES” e pensei no regime de exceção que vivemos e na ironia que é ter tal dizer na porta deste prédio e do labirinto de onde acabei de sair justo neste momento histórico.
Segui meu caminho. Sou apenas uma pequena Ofélia caminhante criando e vencendo meus labirintos em busca de dias melhores onde viveremos sem labirintos, sem barreiras, sem fascismos e sem o negacionismo que coloca uma universidade cada vez mais distante do povo que justifica sua existência e que precisa entender que ela é dele e não do 1% que detém o dinheiro e as chaves dos cadeados.
Na floresta, de volta a minha casa, viajando, longe, escuto um homem gritar para o outro:
— Olha o mundo, rapaz! Olha o mundo!
Volto como quem acorda de um longo pesadelo. Mas, não. Não era um pesadelo, é só o nosso mundo e eu sigo absorta nos meus pensamentos… Queria tanto que nos déssemos conta do que há por trás deste labirinto. Queria tanto que Ofélia soubesse que há tantas dela neste mundo aqui fora.
Aline Blaya Martins: Mulher, mãe, militante social do Coletivo Célia Sánchez, professora, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS.
Publicação de: Viomundo