Aline Blaya: Nos 58 anos do golpe militar, precisávamos de mais um café com Nilce
Por mais um café com Nilce
— Ela é tão livre que um dia será presa.
— Presa por quê?
— Por excesso de liberdade.
— Mas essa liberdade é inocente?
— É, até mesmo ingênua.
— Então por que a prisão?
— Porque a liberdade ofende.
Clarice Lispector
A vida não anda fácil para quem acredita em um mundo melhor e, às vezes, para sobreviver, é preciso manter distância das mídias e aplicativos para não ser engolido por eles.
No início do mês de março, passados vários dias, fiquei sabendo que, em 21 de fevereiro, perdemos a mais bela donzela da torre e eu nem sequer me despedi. Coração apertadinho.
Hoje, 31 de março de 2022, meu coração apertou novamente só de pensar que chegamos ao quinquagésimo oitavo ano do fatídico dia em que o Golpe Militar, que instaurou 20 anos de ditadura civil-militar e que feriu tanto a nossa pequena donzela, aos seus camaradas e ao nosso Brasil, aconteceu e que vemos essa memória ser apagada.
Ainda bem que ainda tem gente que teima em lembrar. Em 2019, outubro, mês do meu aniversário, fui alertada por alguns amigos de que havia um filme ótimo em cartaz, chamava-se Torre das Donzelas.
Descobri que a Casa de Cultura Mario Quintana, que por si só é um espetáculo, iria passar o filme em um festival de cinema feminista, só com produções feitas por diretoras e que Suzanna Lira, a diretora do Torre, viria a Porto Alegre para o debate.
Embora, por razões óbvias, meu corpo e meu espírito não acolham bem as dores da ditadura militar, fiz questão de ir a essa sessão porque estou entre os teimosos e acredito que uma nação que não elabora suas dores tende a repeti-las.
Haja vista que jamais tratamos as feridas abertas na ditadura e que estas seguem sangrando em cada um de nós que não aceita a negação da barbárie.
Enfim, engoli meu medo de sair da sessão revirada, me juntei a uma amiga, e, num sábado à noite, fomos.
Pensa em um filme necessário, aquele que tu achas que TODO mundo precisava ver. É o Torre das Donzelas, um filme que ensina sobre luta, resistência, amor, lealdade e, principalmente, sobre como a sororidade brota do feminino que há em nós mesmo que as sementes sejam plantadas sobre inóspitas pedras.
Voltei revirada, mas revirada de mais e mais vontade de cerrar os pulsos.
Mexida pelo filme, liguei para um dos amigos que havia feito a indicação. Falei:
— Sabe… Me preocupa porque estou criando mulheres que provavelmente andarão com os punhos cerrados, como as “donzelas” andavam… Seja na sala de aula, seja na sala da minha casa. Será que eu estaria pronta para encarar o que viesse? A mãe, a professora, que existe em mim, estaria pronta para ver as próprias crias na luta?
Ele riu e me perguntou:
— Quer tomar um café com uma das donzelas?
Óbvio. Era um domingo e o café, urgente para minha existência, foi marcado para segunda-feira.
Levei minhas melhores amigas, aquelas que eu escolho todos os dias para estarem comigo nas trincheiras da vida, combatentes que fui ganhando pelas trincheiras dos serviços de saúde do nosso SUS.
Precisava partilhar com elas, afinal, não é todo dia que se toma um café com uma mulher que lutou contra a ditadura, foi presa e torturada para que hoje vivêssemos um regime “democrático”, que sobreviveu para contar a história e ainda dedicou sua vida a cuidar de suas próprias dores e das dores dos outros.
Fomos faceiras que só e tiramos a tarde para saborear o café e muito mais, com ela, Nilce Azevedo Cardoso.
Ela chegou com a filha. Era uma pessoa gigante em um corpo pequeno e charmosamente vestido.
Sorrindo, ela sentou e agradeceu o convite.
Logo pediu que nos apresentássemos e, mesmo ávida de curiosidade para saber mais sobre aquelas jovens que fascinadas olhavam para ela, me disse: Então, me diga querida, o que você quer saber?
Me senti uma escolar ridícula que chama o professor e depois não tem coragem de fazer perguntas. Eu não tinha perguntas, eu queria saber tuuuuudo.
Mas, aos poucos, toda a inquietação brotou e floresceu:
— Como uma menina universitária de uma família com privilégios começa sua luta política? Como foi viver na clandestinidade? Como aconteceu a prisão? Como resistiu aos martírios da tortura? As perdas de amores e camaradas? Como seguiu a vida? Como encarou uma anistia ao invés de uma sentença que responsabilizasse os torturadores (como se lutar por justiça fosse tão crime quanto torturar, matar, desaparecer como homens, mulheres e crianças)? Como, depois de tudo isso, lidou com a ascensão de um fascista que celebrou Brilhante Ustra em um golpe que justamente usurpou a presidência da primeira presidenta eleita democraticamente neste país?
Nilce paciente e alegremente respondeu TODAS as minhas perguntas e contou várias outras coisas, que meu corpo e meus olhos devem ter pedido, e que as meninas perguntaram também.
E quer saber o mais incrível? Apesar das sequelas das seções de tortura que quase a impediram de ter filhos, a debilitaram e deixaram sequelas por toda a vida, ela era realmente uma das bravas donzelas que haviam habitado aquela “Torre”!
E, ao invés de nos levar às lágrimas, nos fez sorrir e nos fez acreditar ainda mais na necessidade de seguirmos os seus passos como uma obrigação que estava posta para cada uma de nós. Urgente e imprescindível.
Saímos de lá com os números de whatsapp umas das outras, uma agenda de outros e outros cafés, uma combinação dela nos visitar na universidade, de nós visitarmos ela na UBS [Unidade Básica de Saúde] onde trabalhava em um projeto como psicopedagoga, e como militante, por supuesto, já que nunca deixou de ser.
Dias depois ganhei da minha melhor amiga o livro Mulheres ditaduras e memórias: não imagine que é preciso ser triste para ser militante, onde Nilce e outras companheiras narram suas histórias para Susel da Rosa.
Amei, porque eu precisava ter um pouquinho daquela memória eternizada na minha casa. Um dos presentes mais lindos que já ganhei.
Na mesma época, fizemos na universidade um Seminário Internacional Rotas Críticas para discutirmos a questão dos feminicídios racializados no Brasil e na América Latina. Nilce foi.
Passamos um dia juntas escutando os relatos mais tristes, as lutas mais belas.
Saímos de lá com a certeza de uma ligação e de uma admiração mútuas que só aumentou com o tempo.
Meses depois, estou eu com outra amiga chegando na Terreira da Tribo, espaço de teatro popular do grupo Oi nóis aqui Traveiz, para assistir a uma peça em homenagem a Violeta Parra e quem chega lá? Ela, sozinha, caminhar lento, corpo já um tanto frágil, mas com uma alegria e altivez gigantescas.
Uma aula viva de feminismo, de autonomia, de tudo.
Obviamente sentamos juntas e eu, novamente feito criança, a vi cumprimentar a Terreira inteira, como aquela mãe que leva os filhos por anos à escola e conhece pelo nome do porteiro à diretora, do manobrista à estrela da peça.
E ela, mesmo naquela mesma semana, tendo estado hospitalizada por dois dias, cantou e vibrou com Violeta.
Apontou entusiasmadamente a bandeira do MST e no ouvido me pediu, tu tiras fotos minhas com ela e com a bandeira?
Como não, por supuesto. Naquele dia a levei em casa e abracei bem abraçada na despedida.
Pedi que descansasse e me aviasse quando poderia tomar nosso próximo café, já que janta e cerveja eram impraticáveis para a saúde dela…
Apenas Violeta e a Terreira alimentavam aquela senhora revolucionária, insurgente.
Nem eu nem ela sabíamos, mas Oxalá mandou Violeta para podermos dar mais muitas risadas e um bom abraço demorado. Seria o último.
A pandemia, o isolamento e as múltiplas comorbidades geradas por algozes da ditadura e pela vida, fragilizaram a vida da minha amiga.
Nesses dois anos nos falamos muitas vezes por mensagens, ela mandava fotos, doces figurinhas e palavras sempre generosas e esperançosas.
Haveria de chegar o tempo dos abraços de novo.
Mês passado mandei para ela um livro que escrevemos sobre a Pandemia e a Saúde Coletiva. O retorno foi uma mensagem tão querida que me faltam palavras.
A condição de saúde havia piorado, mas a esperança seguia arrastando a existência dela e mais uma vez combinamos que apenas adiaríamos um pouco mais nosso café.
Mas, como disse no comecinho, em 21 de fevereiro, uma segunda-feira, ela se foi.
Descobri por jornais e blogs, que entidades e partidos fizeram deferências e homenagens a essa pequena gigante, que de frágil donzela não tinha nada, e eu não me despedi.
Passei o dia triste, desasada, e fui pegar o celular para matar saudade das nossas conversas e ainda neste mês ela me fez morrer de vergonha com seus doces elogios… E encerrou nossa conversa assim:
Cafezinho!!!! Saudade de um papo como aquele que tivemos!
Nosso adiado cafezinho vai ficar para outro plano, mas tenho certeza, o cafezinho neste plano foi um presente e o reencontro a cada luta também será.
Te vejo e te escuto, para sempre. Me perdoa por não estar lá rendendo todas as homenagens a ti, minha doce camarada. Mas um dia, amiga, vai sair nosso café, em alguma trincheira de outras vidas.
Por enquanto, aproveito os livros que me deixastes como herança através dos teus filhos.
Comecei por Mujica. Nele grifastes uma frase onde nosso querido tupamaro fala que o que ele mais desejava ao povo uruguaio era educação, legado que torturador nenhum seria capaz de tirar e que constitui a base da práxis que Marx nos clamava necessária para transformarmos o mundo.
Ademais, olho a janela do mundo um pouco através dos teus olhos e vejo o quanto ainda precisamos nos envergonhar pelas feridas que fizeram em teu corpo, pelos mortos e pelos desaparecidos, e para que esta data não seja apenas mais uma data para alguns dos filhos deste solo, desta mãe gentil, pátria amada, Brasil, que segue censurando e perseguindo aos seus e que poderá fazer pior se não houver pessoas como tu, como eu, como nossos camaradas, que estudem, que pensem, que amem irremediavelmente, e que teimem em ensinar que não é preciso ser triste para ser militante.
Publicação de: Viomundo