Alba completa 20 anos mirando defesa do socialismo e novos desafios para articulação regional
A Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio para os Povos (Alba- TCP) completou 20 anos em dezembro. Se o grupo passou por um período de expansão e de articulação do socialismo nos primeiros 10 anos, com o crescimento da extrema direita a aliança entrou em um momento de defesa dos processos revolucionários e tem desafios para o próximo ciclo: denunciar os ataques contra a esquerda e conquistar mais poder não só na região, mas em diferentes espaços políticos.
A Alba foi fundada em Havana em uma iniciativa encabeçada por Fidel e Chávez que, naquele momento, eram as duas referências nas lutas anticapitalistas da América Latina. Os dois conseguiram articular internacionalmente com governos e movimentos a luta por uma nova sociedade e impulsionaram a aliança.
Em duas décadas de atuação, a organização tornou-se uma referência para os grupos de esquerda na América Latina e ganhou mais importância para os governos progressistas do mundo. Com o objetivo de construir uma nova sociedade e apresentar alternativas ao capitalismo, a Alba colocava um contraponto à Alca (Área de Livre Comércio das Américas), proposta do governo dos Estados Unidos para criar uma zona sem barreiras alfandegárias na América Latina.
A Aliança se tornou um agente que derrubou a proposta estadunidense e se apoiou na eleição de diferentes presidentes de esquerda na região para se tornar uma plataforma de articulação política para os governos progressistas. Em 2006, com a entrada da Bolívia, a Alba começou a ter uma orientação econômica baseada na complementaridade, solidariedade e cooperação.
Os principais desafios da Alba, desde a sua fundação, surgiram a partir da eleição de Donald Trump, em 2016. O governo dos Estados Unidos passou a implementar uma série de sanções contra a Venezuela em 2017, o que limitou a venda de petróleo de um dos principais produtores globais do produto.
Esse golpe atingiu a Alba em duas frentes. Primeiro, por impactar a economia e, consequentemente, a política interna de um dos principais países da Aliança. Depois, por limitar o Petrocaribe, programa de fornecimento de petróleo a países caribenhos criado em 2005 pelo ex-presidente venezuelano, Hugo Chávez. O bloqueio contra a Venezuela desmobilizou a iniciativa, que durou 14 anos.
A postura de ataque dos Estados Unidos em relação a governos de esquerda que não se alinham à política da Casa Branca pode ganhar novos contornos para a gestão de Trump a partir de 20 de janeiro de 2025. O republicano já disse que vai aumentar a intolerância e o rigor contra a migração de latino-americanos para os EUA e montou uma equipe de 1º escalão recheada de figuras que colocam o extremismo à frente na relação com os países das Américas do Sul e Central.
Marco Rubio será chefe do Departamento de Estado, a agência responsável pelas relações exteriores dos Estados Unidos. Filho de pais cubanos, Marco Rubio, por meio de sua hostilidade aos governos progressistas e de esquerda na América Latina e no Caribe, fez sua carreira como uma nome de destaque na direita do Partido Republicano.
Para o cubano Joel Suárez, diretor do Centro Martin Luther King, uma das principais dificuldades da Alba é justamente esses “fatores exógenos” que partem de uma pressão das grandes potências contra os países que têm governos revolucionários, com destaque para Cuba e Venezuela. Para ele, isso demanda disciplina e projetos desses países para enfrentar as dificuldades impostas por outros países.
“Há desafios que são da ordem da disciplina, nos quais se anunciam compromissos, caminhos, projetos e um desafio de funcionamento mesmo do que diz ser e pretende ser a Alba. Voltarão a aparecer fatores exógenos que vão limitar a dedicação, a energia e o tempo que exigem as iniciativas e projetos que a Alba anuncia para essa etapa. E entre esses fatores exógenos está, desde um contexto terrível de crise global e climática, como vamos ver a 2ª temporada da novela de Trump com um time que para Cuba e Venezuela vai ser muito forte de acordo com o que vimos na 1ª temporada”, afirmou ao Brasil de Fato.
Desafios para os movimentos
Além dos governos, a Aliança promove uma articulação de movimentos populares chamada Alba Movimentos. A ideia foi gestada em 2007, durante a cúpula de Tintorero, na Venezuela. Na ocasião, os governos criaram o Conselho de Movimentos Sociais dos países signatários. Até aquele ano, além de Venezuela e Cuba, faziam parte da organização Bolívia, Nicarágua, Dominica, Equador, São Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda, Santa Lucía e San Cristóbal e Nieves.
Seis anos depois, foi realizada a Assembleia Fundacional da Alba Movimentos no Brasil, chamada Hugo Chávez Frias. A instalação da frente de atuação de movimentos populares abriu espaço para um tipo de organização que passava a ter uma capilaridade ainda maior dentro dos países da Alba, mas que tinha outro objetivo: criar um programa político que tivesse unidade mesmo com contextos muito diferentes.
Para a secretária-geral da Alba Movimentos, Laura Capote, tanto a Alba-TCP quanto a Alba Movimentos têm o mesmo horizonte: a construção do socialismo nos países latinoamericanos. Mas, para ela, há diferenças claras entre a organização que reúne militantes daquela que agrupa governos.
“Seguimos caminhando por dois caminhos paralelos, mas com o mesmo horizonte: os movimentos e os governos. Um com ferramentas institucionais, com todas as limitações que há com os bloqueios, sanções. O outro bebendo dessa fonte da solidariedade, das brigadas internacionalistas, da formação política, mas sem muito ponto de contato. Tentamos algumas vezes bater na porta dos governos e, esse ano, com a Venezuela delegando Jorge Arreaza como secretário, que é um companheiro que é muito próximo dos movimentos, nos dá essa oportunidade de aproximar mais as duas frentes”, afirma ao Brasil de Fato.
A reunião de movimentos de diferentes naturezas e pautas também coloca um obstáculo para a organização. Por agregar grupos que lutam pela reforma agrária, com outras agremiações que tem o feminismo e o racismo como pautas principais, uma das principais questões a ser resolvida pela Alba Movimentos é como incorporar todos esses debates dentro da construção do socialismo, mas sem deixar essas pautas de lado.
“Um dos principais desafios que temos é trabalhar dentro da máxima de unidade na diversidade. É uma consigna muito bonita, mas é muito difícil de fazer. Porque você tem uma articulação não só de políticas diferentes, porque as organizações têm naturezas diferentes (mulheres, camponeses e grupos urbanos), como de culturas e de países diferentes. Essas são as principais dificuldades: ter militantes e dirigentes que pensem no continental antes de um espaço para catapultar os interesses nacionais”, disse Capote.
Para isso, a Aliança dos Movimentos trabalha sobre seis eixos: Unidade e Internacionalismo; Batalha Ideológica e Cultural; uma nova Economia; defesa do Meio Ambiente; Democratização e Construção do Poder Popular; e Feminismos Populares.
Para organizar e deliberar as decisões coletivas, a Alba Movimentos tem como instrumento a Assembleia Continental, realizada a cada três anos. Nela, não só são definidas as linhas de atuação e as ações como também a coordenação política e os secretários-gerais que serão responsáveis por encaminhar essas decisões.
Mudança de cenário
Para construir uma nova sociedade e fortalecer o socialismo no continente, a Alba tem que se equilibrar entre um trabalho de articulação com governo e movimentos para ser propositivo, mas, ao mesmo tempo, enfrentar uma linha política oposta que se expressa na imposição das ideias e da economia dos Estados Unidos.
Há 20 anos, o contexto era outro e a Alba se expandiu em uma América Latina que via um aumento no número de presidentes de esquerda. Lula no Brasil, Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Tabaré Vasquez no Uruguai são alguns dos exemplos de uma onda que dava início a uma nova linha política no continente. O crescimento da extrema direita impôs à Alba uma nova forma de atuar e reconfigurar a estratégia.
A Alba teve que emitir mais comunicados para denunciar ataques contra lideranças e criou uma nova forma de atuação com o Grupo de Lima, de 2017, para promover ações contra o governo venezuelano na Organização dos Estados Americanos (OEA). Para Suárez, isso afeta a autoestima dos povos e mostra uma grande diferença entre o clima político de 2004 para a fundação da Alba e a atual conjuntura.
“A Alba nasce em um contexto radicalmente diferente. Temos mecanismos de integração, projetos bilaterais, multilaterais, nacionais, em outras circunstâncias. Há uma mudança no mapa político da região e a situação da Venezuela chega a níveis dramáticos pela ação dos EUA e Europa para derrubar a revolução com o interesse nos recursos da Venezuela. Isso impactou muito nos projetos internacionais que eram feitos pela Alba, ainda que os mecanismos de integração governamentais se mantivessem”, afirmou.
As mortes de Chávez em 2013 e de Fidel em 2016 foram pontos de inflexão para a organização. A imagem de duas figuras que não só eram lideranças internacionais mas eram os grandes mentores da Alba abalaram não só a organização, como também tiraram dois escudos importantes para a militância de todo o mundo. Para Capote, a perda de Fidel Castro e Hugo Chávez também tem um impacto na subjetividade dos militantes. Sem esses alicerces, as novas gerações precisam buscar outras inspirações e bases para seguir na luta organizada.
“Há uma geração que quer lutar, que ama sua pátria, que ama esse continente, mas que não cresceu com esses exemplos próximos. E é algo muito difícil, porque nos movemos a partir dessa subjetividade e dos afetos. Então como podemos nos vincular, fazer uma ponte político-ideológica e emotiva entre essa grande tradição de líderes da qual viemos e uma nova geração que tem outras preocupações. Esse é um desafio que Alba encontrou, de ter que falar de outros temas que não tínhamos ideia que teríamos que tocar. E aí nos cabe sentar e estudar” afirmou Capote.
Limitações no caminho
Para avançar a retórica da construção de uma nova sociedade, a Alba assumiu, desde o começo, protagonismo em ações de impacto direto para a sociedade. Além do Petrocaribe e da Alba Movimentos, a organização começou em 2004 sendo articuladora da Operação Milagre, projeto de saúde encabeçado por Cuba e Venezuela que tinha o objetivo de oferecer cirurgias oculares para pessoas que não tinham recursos para custear essas operações.
Mesmo com diferentes ações, a organização enfrentou também questões internas aos movimentos de diferenças políticas e organizativas. As instabilidades de cada governo integrante da Aliança também impactou diretamente a Alba. Grande parte das crises econômicas e políticas dos países são resultado das sanções impostas por Estados Unidos e União Europeia.
De acordo com Suárez, há uma relação direta entre a Alba e a manutenção dos governos de esquerda. Para ele, se essas crises levem ao fim dos processos revolucionários principalmente de Cuba e Venezuela, a Aliança passa a ser um dos alvos principais de governos de direita.
“As limitações da Alba são as que qualquer processo dessa natureza podem ter e que voltam a se exacerbar ante fatores exógenos. A Alba não é um mecanismo de integração neutro. Se um dia essas revoluções naufraguem, o próximo governo de direita liquida a Alba. A Aliança tem uma série de princípios que, sem se transformar em uma cerca que limita a diversidade de países, tem uma opção explícita anti colonial, da centralidade da justiça social, da inclusão, do reconhecimento do desenvolvimento igual dos povos. O mecanismo é suscetível à situação geopolítica e dos países que o integram”, afirmou Suárez.
Os países da região que também fazem a disputa à direita se tornaram, com o tempo, rivais da Alba. Além do Grupo de Lima, presidentes da extrema direita como Milei e Nayib Bukele, de El Salvador, criticaram a eleição de Nicolás Maduro na Venezuela e iniciaram uma pressão contra o governo chavista.
Com experiência na articulação da Alba, Joel Suárez entende que essa rivalidade regional coloca barreiras na própria atuação da Aliança no continente.
“Ainda que o bloco atue com muita eficiência e eficácia, se a obediência do grupo da direita aos EUA é maior, o contrapeso da Alba é menor. Mas a Alba chegou para ficar como um ator na disputa de projetos da região. Em alguma medida consegue conter, colocar um contrapeso frente a situação que se está dando”, disse.
Para a direção da Alba, a construção de uma nova perspectiva política e econômica para os povos é, por si só, um desafio. Mas, para isso, é preciso sustentar e manter os processos revolucionários em curso e dar um salto para outros movimentos que podem surgir em outros lugares.
“A defesa da revolução é um critério, defender a nossa raiz histórica e política é fundamental e a Alba e os movimentos estarão na linha de frente. Mas não é o único. Não somos um comitê de aplauso dos governos da Alba. Somos defensores desses processos, entendendo que são processos revolucionários com contradições, com tensões, com coisas que gostamos e coisas que não gostamos, mas que são nossas conquistas como povos. Isso é uma coisa. Mas também vamos construir as bases para desenvolver e ter poder. Queremos ter poder. Queremos o socialismo na nossa região”, concluiu Laura Capote.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog