Ação cobra reparação dos danos causados a indígenas durante ditadura no RS; entidades querem ser ouvidas
“As violências praticadas contra os povos indígenas pela ditadura militar foram cruéis e não há valor monetário que amenize os crimes. O que se busca com a ação é revelar essas atrocidades e estabelecer que o Estado Brasileiro é responsável, e como tal tem a obrigação de responder pelos crimes que seus agentes praticaram”. A afirmação é do coordenador do Conselho Indigenista Missionário na Região Sul (CIMI Sul), Roberto Liebgott.
A ação a qual ele se refere é a 5013584-03.2024.4.04.7100, ajuizada pelo Ministério Público Federal (MPF), no dia 26 de março deste ano.
No documento, o MPF requer que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado do Rio Grande do Sul sejam condenados a reparar os danos coletivos de natureza material e moral sofridos pelas comunidades indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani, localizadas no Rio Grande do Sul.
Na sexta-feira (9), dia Internacional dos Povos Indígenas, o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) entraram com um pedido de amicus curiae (amigo da corte) à 9ª Vara Federal de Porto Alegre, para serem ouvidas na ação.
Os colegiados foram assessorados pela Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap) e pelo Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU da UFRGS). O documento aponta que a desagregação social causada pela cultura colonizadora, intensificada durante a ditadura, teve consequências nefastas e ainda hoje sentidas pelos povos originários.
“O país enfrenta consequências significativas por não lidar adequadamente com injustiças passadas. Em que pese não se tratarem especificamente da questão indígena, tratam sobre violações ocorridas na ditadura civil-militar, e evidenciam ser necessário que o Brasil implemente reparações. Dessa forma, corrigindo as violações passadas e garantindo justiça para as vítimas, é possível evitar novas sanções e promover uma reparação mais rápida e eficaz”, ressalta a peça.
Também foram ressaltadas as violações sofridas pelos povos Kaingang e Guarani, bem como os abusos sofridos pelas mulheres indígenas. A petição traz documentos, inclusive oficiais, além de julgados internacionais. Veja neste link o documento na íntegra.
Reparação e violações
“Muitas das atuais violações têm origem no passado, se desdobram no tempo e mantém um contexto de vulnerabilização dos povos indígenas. Pode-se destacar a não priorização dos povos indígenas de acesso a políticas públicas de qualidade, como na educação. Central é a questão da demarcação das terras indígenas e a recuperação da degradação ambiental”, pontua o presidente do CEDH-RS, Júlio Alt.
Autor do livro “Os Indígenas do Rio Grande do Sul e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985): um período de intensificação de um habitus colonial violador”, Rodrigo de Medeiros pontua que as CPIs de 1967, da Assembleia Legislativa e 1968, da Câmara dos Deputados, apontaram diversas denúncias de violações. “A primeira, inclusive, trazendo recomendações que não foram observadas, pois veio, logo em seguida, o recrudescimento da ditadura, os chamados ‘anos de chumbo’.”
Ouvidor da Defensoria Pública do RS e integrante do Fórum Justiça, entidade conselheira do CEDH-RS, Medeiros pontua que neste período tentaram retirar a língua dos Kaingang, implantaram o projeto soja, com arrendamentos de terras indígenas, que causam conflitos e desagregação até o presente momento. “A CPI de 1977 do Congresso Nacional então reconheceu diversos casos de trabalho análogo à escravidão, problema que ainda atinge os indígenas”.
Para Júlio e Rodrigo, fazer este resgate, perceber que problemas são reflexo do passado, poderá trazer justiça a estes povos. “Políticas efetivas de educação e saúde, demarcação de terras, respeito aos modos de vida, da cultura, recuperação de áreas degradadas são questões que podem a tutela jurisdicional”, exemplificam.
Assim como prever também indenizações coletivas, específicas, como dar oportunidade que se busquem reparações individuais, de quem sofreu ou dos familiares de quem sofreu abusos sexuais, torturas, prisões ilegais, remoções forçadas, trabalho análogo à escravidão é de suma importância.
“Queremos destacar que uma boa alternativa de se prever recursos para esta reparação seria para a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI. Esta visa garantir e promover a proteção, a recuperação, a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais das terras e territórios indígenas, assegurando a integridade do patrimônio indígena, a melhoria da qualidade de vida e as condições plenas de reprodução física e cultural das atuais e futuras gerações dos povos indígenas, respeitando sua autonomia sociocultural (artigo 1º, do Decreto nº 7.747, de 05 de junho de 2012).”
Em relação ao povo brasileiro, prosseguem os conselheiros, significará que estaremos caminhando de forma mais contundente para uma democracia efetiva, prevista pela Constituição Federal de 1988. “A democracia requer uma inclusão que respeite a pluralidade no país, que significa o respeito aos povos indígenas e seus modos de vida.”
Além da reparação
Para Roberto, a reparação é simbólica, uma vez que visa estabelecer a obrigação de reparar por danos irreparáveis à vida, às culturas e aos modos de ser dos povos brutalizados. “Há ainda a dívida demarcatória das terras que deve ser paga, respeitando as memórias, os ancestrais e o sangue derramado, bem como dando garantias de que os povos poderão viver em paz nos seus territórios”, frisa.
Em 2019, o Rio Grande do Sul era o estado com mais áreas em estudo de demarcação de terras indígenas. “A realidade não deve estar muito diferente, já que se seguiu, até 2022, um governo federal que se colocava contra os direitos desta população. Neste sentido, lembra-se da Terra Indígena Borboleta, em Salto do Jacuí, perdida pelos indígenas na década de 70, e, agora, os Kaingang do local sofrem reintegração de posse, por esta situação criada a época dos governos militares”, pontua Júlio
Atualmente, constam 784 terras indígenas nos registros da Funai nas fases especificadas. Essas áreas representam aproximadamente 13,82% do território brasileiro, estando localizadas em todos os biomas, sobretudo na Amazônia Legal.
Atuação dos Conselhos
Conforme ressalta Roberto, o CIMI, desde a ditadura, denuncia as práticas violentas e tortuosas. De acordo com ele, missionárias e missionários foram perseguidos e censurados pela defesa da vida, das culturas e das liberdades.
“Nossa contribuição tem sido na manutenção das ações que buscam, de forma incessante, a responsabilização dos que governaram o país e que atuavam como torturadores, oprimindo e matando. Mas também o Estado, que tem culpa, porque dava o aval e acobertava os crimes. Portanto, precisa reparar os povos indígenas.”
Já em relação ao CEDH-RS, de acordo com Júlio, várias denúncias são trazidas ao colegiado, que busca sempre trabalhar em conjunto com o Conselho Estadual dos Povos Indígenas. “A questão da educação indígena, de falta de terras demarcadas, do trabalho análogo à escravidão são alguns deles. Não só o Conselho contribui em reverberar as denúncias, em busca da solução de conflitos, da efetivação da política pública, como formula sobre política pública, faz recomendações, etc. Um bom exemplo, é o Parecer CEDH-RS nº 02/2022, que demonstrou a inconstitucionalidade, a ilegalidade dos arrendamentos das terras indígenas para a soja”, expõe.
Expectativa
Indagado se a ação irá seguir feito inédito da reparação histórica coletiva às comunidades indígenas de Minas Gerais, Rodrigo diz que a expectativa é que sim. Conforme afirma o ouvidor, o Judiciário brasileiro vem contribuindo com a consecução da Justiça na questão de memória e verdade, sempre com as contribuições do Ministério Público, da Defensoria Pública e da sociedade civil. “São fatos públicos, reconhecidos por documentos oficiais da época e do presente. Há questões irreparáveis, mas mitigáveis. Contudo, um importante passo é o reconhecimento e se apontar caminhos para as reparações”, afirma.
No caso do Rio Grande do Sul, pontua Rodrigo, há uma complexidade maior, pois está se falando de dois povos: Kaingang e Guarani, dos quatro existentes no estado (os outros dois são os Charrua e Xokleng). São diversas aldeias, terras e reservas indígenas. Além de retomadas e acampamentos que existem, justamente, porque a justiça ainda não foi feita. Mas há muitos estudos e um conjunto probatório robusto, que contribuirá com o trabalho da Justiça Federal”, conclui.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog