Carlos Fidelis: O ano em que teremos que escolher entre a barbárie e a civilização
O ano em que teremos que escolher entre a barbárie e a civilização
Por Carlos Fidelis da Ponte*
Embora a decisão pareça fácil, estamos diante de uma situação complexa em que o eleitorado não tem acesso a informações confiáveis e claras sobre o quadro político e econômico do país.
A profusão de mentiras, as cortinas de fumaça, as redes sociais, a grande mídia e o crime organizado, trabalham para promover a desorientação e a mobilização da insatisfação na direção do moinho do fascismo.
Manifestações esdrúxulas e até mesmo doentias de personagens capturados pela extrema direita se misturam a desculpas esfarrapadas de lideranças políticas flagradas em delito.
A eles se juntam especialistas com discursos engomados sobre a economia. Do circo de horrores e da ambiência de programa de auditório de quinta categoria que tomou conta do Congresso, passando pelos telejornais de comentaristas engravatados, entre motoristas de táxi, trogloditas donos da verdade e governadores defendendo o tarifaço de Trump, o país vive uma farsa descomunal.
De difícil acesso à maioria da população, o debate sobre economia, apesar de crucial, falseia a realidade e impõe um quadro totalmente adverso para implementação de políticas de interesse nacional e da maioria da população. Uma armadilha perversa que tem drenado recursos públicos e a energia do trabalho de todos nós para os cofres do rentismo. Aqui se juntam o boçal que vocifera no Congresso ou nas ruas com o acadêmico participante do mercado ou a serviço dele.
São eles os promotores e executores do cerco ao governo federal (qualquer governo).
Um cerco que envolve outros condicionantes: limitações drásticas e desnecessárias ao investimento público; um fundo eleitoral da ordem de R$4,9 bilhões; R$ 61 bilhões para emendas parlamentares e um orçamento discricionário do governo federal entre 3% e 5% do orçamento total, excluindo o refinanciamento da dívida, que concentra a sangria que pode tornar o país anêmico e sem forças para escolher e comandar o próprio destino.
Em tais circunstâncias é de se admirar que o Executivo Federal ainda governe o país. Não fosse a incontestável liderança de Lula e o esforço de Haddad e outros ministros, nós já estaríamos totalmente entregues aos desmandos de um Congresso, que trabalha para interesses muito distantes dos interesses da nação.
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Totalmente nas mãos de figuras como Sóstenes Cavalcante, que recentemente promoveu uma explicação tão confusa quanto patética sobre os quase 470 mil reais encontrados em um imóvel por ele ocupado.
Pessoas empenhadas em anistiar gente como Silvinei Vasques, fugitivo da justiça, capturado pela polícia paraguaia, quando tentava embarcar para El Salvador com documento grosseiramente falsificado e uma declaração cômica por escrito de que não podia falar ou ouvir. Um mico registrado em papel, diria minha neta mais velha.
Isso, para citarmos apenas aquelas que ocuparam o noticiário por esses dias como protagonistas de um espetáculo bufo.
A lista é grande e, segundo o que corre nos meios políticos, congrega perto de uma centena de parlamentares que não dormem por conta de pesadelos com Flávio Dino lhes cobrando transparência na aplicação dos recursos das emendas por eles apresentadas.
Entretanto, a trama é maior. Para além dos recursos das emendas empregados de forma criminosa, o que tudo isso esconde é uma bem montada estrutura extrativista e predatória.
Um dispositivo que se retroalimenta por meio de um mecanismo circular de estagnação econômica: a desaceleração da atividade econômica reduz a arrecadação estatal, impulsiona a emissão de títulos da dívida pública e sustenta a elevação das taxas de juros, sob o argumento de que esses títulos precisam oferecer remuneração crescente para compensar o risco percebido pelos investidores.
A dimensão desse processo torna-se ainda mais evidente quando se observa que, em 2024, o Banco Central do Brasil registrou um dispêndio de R$ 998 bilhões com o pagamento de juros da dívida pública.
Trata-se de um montante próximo a um trilhão de reais, que poderia ter sido direcionado a áreas estratégicas como saúde, educação, geração de empregos, ciência e tecnologia, entre outras igualmente fundamentais para o combate à desigualdade e a promoção de uma dinâmica econômica sustentável e inclusiva.
A esse arranjo soma-se o regime de flutuação cambial instituído em 1999, que completa e aprofunda essa dinâmica. Ao permitir que o valor do real oscile livremente em função dos fluxos financeiros internacionais, o câmbio flutuante torna a economia mais exposta a ataques especulativos. Em momentos de instabilidade política ou econômica, grandes agentes financeiros deslocam recursos para o dólar, pressionando a desvalorização da moeda nacional.
Diante dessa pressão cambial, o Banco Central dispõe de poucos instrumentos de resposta imediata. Além da venda de dólares, o principal deles tem sido a elevação da taxa de juros, utilizada como mecanismo de defesa do câmbio. Ao aumentar os juros, o governo valoriza os títulos da dívida pública, tornando-os mais atraentes para os investidores e estimulando o retorno dos capitais que haviam migrado para a compra de dólares. Trata-se de uma tentativa de conter a desvalorização do real e evitar que ela se transforme em uma espiral inflacionária, com repasses rápidos para os preços internos.
O problema é que esse procedimento transforma os juros elevados em uma característica estrutural da economia. Como o mercado antecipa que qualquer instabilidade cambial será enfrentada com aumento da taxa de juros, os investidores passam a exigir prêmios elevados de forma permanente.
Assim, o câmbio flutuante, longe de funcionar como amortecedor de choques, acaba por atrelar a política monetária à lógica da defesa financeira da moeda, subordinando o crescimento econômico, o investimento produtivo e o financiamento de políticas públicas ao objetivo de garantir rentabilidade ao capital financeiro.
Consolida-se, desse modo, um círculo vicioso: a flutuação cambial facilita ataques especulativos; os ataques pressionam o câmbio; a resposta é a elevação dos juros; juros altos ampliam a dívida pública e drenam recursos do orçamento; a economia cresce menos, tornando-se novamente vulnerável a novos ataques.
Trata-se de uma engrenagem que perpetua a dependência financeira, aprofunda o conflito distributivo e impõe limites estruturais ao desenvolvimento e à soberania econômica do país.
Configura-se, assim, uma dinâmica baseada na apropriação recorrente de recursos públicos pelo capital financeiro, cujas consequências incluem o aprofundamento dos constrangimentos ao financiamento de políticas públicas essenciais, a compressão do investimento estatal e a fragilização das bases materiais do bem-estar social e da soberania do país.
Em 2008, Lula teve que enfrentar uma grave crise global. Com o objetivo de evitar a recessão e conter o avanço do desemprego, o governo contou com a atuação estratégica dos bancos públicos — como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal —, que desempenharam papel central na manutenção da oferta de crédito, sobretudo no momento em que as instituições financeiras privadas restringiram severamente os empréstimos.
Paralelamente, foram implementadas desonerações tributárias sobre produtos industrializados, com o objetivo de sustentar a atividade industrial e preservar o consumo desses bens.
Esse conjunto de medidas foi complementado pela Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), que estabeleceu ações voltadas ao fortalecimento de cadeias produtivas estratégicas, como as de fármacos e bens de capital, por meio de incentivos fiscais, ampliação do crédito e apoio à pesquisa e ao desenvolvimento (P&D). Tal orientação reforçou a articulação entre política econômica, política industrial e capacidade produtiva nacional, em contraste com abordagens centradas exclusivamente no ajuste fiscal.
Inspirado por uma orientação claramente keynesiana, o governo federal apostou, naquela época, de forma ousada, em investimentos públicos de grande escala em infraestrutura e na ampliação de programas sociais — a exemplo do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — como instrumentos centrais para a geração de empregos, o estímulo à demanda interna e a sustentação do crescimento econômico.
Essa estratégia não apenas contribuiu para amortecer os impactos da crise internacional, como também reafirmou o papel do Estado como agente indutor do desenvolvimento e como elemento de estabilização diante das oscilações do mercado.
A política adotada foi acompanhada pelo fortalecimento da posição externa do país. Após liquidar integralmente a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), em dezembro de 2005, ainda em seu primeiro mandato, o governo Lula chegou a emprestar US$ 10 bilhões ao organismo internacional, no contexto da crise financeira global. Ao final de seu mandato, em 2010, o país registrava um patamar historicamente elevado de reservas internacionais — US$288,5 bilhões, frente aos US$ 37,7 bilhões existentes em 2003.
Esse acúmulo de reservas ampliou de forma significativa a autonomia da política econômica nacional, reduziu a vulnerabilidade externa e funcionou como importante amortecedor contra choques financeiros internacionais, reforçando a capacidade do Estado brasileiro de sustentar políticas anticíclicas sem submissão imediata às pressões dos mercados financeiros — elemento central para compreender a diferença entre respostas orientadas pelo ajuste recessivo e aquelas baseadas na intervenção pública ativa e no fortalecimento do desenvolvimento interno.
Eleita em 2010, Dilma Rousseff buscou inicialmente manter essa orientação, defendendo um desenvolvimento orientado às pessoas e criticando as elevadas taxas de juros. A reação do setor financeiro e o consequente isolamento político resultaram, contudo, em uma inflexão rumo ao ajuste fiscal em 2015, a nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda.
A alteração de rumos acabou por fragilizar sua base de apoio e contribuindo para o processo que culminou em seu afastamento, em 2016.
Com Michel Temer, consolidou-se uma guinada estrutural em direção à austeridade, institucionalizada pela Emenda Constitucional nº 95, que congelou por duas décadas as despesas primárias do Estado, preservando o pagamento dos juros da dívida. Essa orientação foi aprofundada por reformas que precarizaram o trabalho e reduziram a proteção previdenciária (governo Bolsonaro), ampliando enormemente a insegurança social.
Os efeitos desse ciclo foram expressivos: aumento do desemprego, retorno da fome, enfraquecimento das políticas sociais e subfinanciamento do Sistema Único de Saúde, agravado por uma condução negacionista durante a pandemia de Covid-19, com graves consequências humanas.
Paradoxalmente muitos alegam que, não obstante a tragédia humanitária provocada por uma gestão criminosa da pandemia de Covid-19, foi a emergência sanitária que nos livrou da implementação de um programa ainda mais radical e agressivo em relação aos direitos sociais, a preservação ambiental e a entrega do patrimônio público como observado no caso da venda de oleodutos por valor equivalente a três anos de aluguel do mesmo, a serem pagos pela antiga proprietária.
Apesar das críticas, a lógica da austeridade permaneceu hegemônica. Mesmo após a vitória eleitoral de Lula em 2022, o teto de gastos não foi integralmente revogado. O Arcabouço Fiscal introduziu maior flexibilidade ao permitir crescimento real das despesas vinculado à arrecadação, mas manteve restrições relevantes à capacidade do Estado de liderar um projeto robusto de desenvolvimento com justiça social.
Em 2026 teremos que escolher que caminho seguir: radicalizar um programa recessivo representado pelo fiscalismo e pelas forças da extrema direita ou abandonar, sob a condução de Lula, as limitações do Arcabouço Fiscal. Permanecer presos a um dispositivo que suga e corrói os recursos públicos resultantes do trabalho coletivo ou abrir as possibilidades de construir o país que sonhamos e merecemos.
Saúde é democracia. Democracia é saúde. Um bom ano para todos nós
*Carlos Fidelis da Ponte é pesquisador da Fiocruz, Conselheiro do Conselho Nacional de Saúde e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).
Publicação de: Viomundo
