Antonio de Azevedo: Não foi apenas uma briga de rua

Antonio Sérgio Neves de Azevedo

O episódio envolvendo o deputado paranaense Renato Freitas, registrado em vídeo no centro de Curitiba, ultrapassa a esfera de um confronto físico isolado.

A repercussão nacional não se deve apenas aos socos e chutes captados pelas câmeras, mas ao conjunto de significados políticos, sociais e raciais que emergem justamente às vésperas do Dia da Consciência Negra.

Segundo Freitas, em publicação no próprio X (antigo Twitter), a confusão começou quando ele, um assessor e uma amiga atravessavam a rua e um motorista teria avançado com o veículo em direção ao grupo.

Após troca de olhares e insultos, o condutor desceu do carro e iniciou a agressão, primeiro verbal e depois física. Os vídeos amplamente divulgados mostram o embate e a presença de outros dois homens filmando a cena, o que, segundo o parlamentar, indicaria perseguição e tentativa de construir uma narrativa direcionada contra ele.

Embora a caracterização completa dependa das investigações, as imagens mostram um confronto direto em via pública.

O embate resultou em lesões visíveis, incluindo fratura no nariz do deputado, confirmada após atendimento médico.

As gravações também revelam que apenas depois de Freitas imobilizar o agressor algumas pessoas se aproximaram para intervir.

Essa dinâmica, interpretada pelo parlamentar como expressão de uma reação social desigual, reacende o debate sobre os limites sociais impostos a pessoas negras que ocupam posições de poder e a forma como suas emoções e atos de autodefesa são avaliados com rigor desproporcional, em contraste com a tolerância observada quando os envolvidos são brancos.

A assimetria aparece tanto no campo moral quanto no simbólico.

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A possibilidade de o carro ter sido usado como instrumento de intimidação, a atitude dos que filmavam a cena e a tentativa de transformar o vídeo em arma política revelam dinâmicas de poder que atravessam o episódio.

Embora as investigações, iniciadas após o registro do boletim policial, ainda estejam em curso, o caso expõe estruturas amplas em que corpos negros são constantemente provocados, observados e julgados sob lentes mais rígidas.

A interpretação pública do ocorrido evidencia os filtros sociais e raciais que moldam o olhar brasileiro.

Quando agressor e agredido ocupam posições sociais distintas, sobretudo quando a vítima representa a ainda insuficiente presença negra nas instituições, o debate tende a reproduzir padrões históricos de criminalização e deslegitimação.

Nesse contexto, reduzir o caso a uma simples briga de rua é ignorar sua dimensão simbólica.

O episódio funciona como espelho das desigualdades raciais persistentes no país, indicando como a violência pode ser relativizada quando atinge grupos historicamente marginalizados, e como a vítima pode rapidamente ser transformada em suspeita.

Esse mecanismo se intensifica quando a pessoa agredida é um homem negro que alcançou espaço político tradicionalmente ocupado por brancos, rompendo hierarquias que resistem à diversidade.

A proximidade do episódio com o Dia da Consciência Negra torna o contraste ainda mais evidente, em um país que celebra a data, mas questiona a legitimidade da reação de um homem negro agredido, revela-se a distância entre discursos oficiais e práticas sociais.

O caso também reforça a centralidade dos direitos humanos e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, fundamento estruturante do Estado brasileiro.

Esse princípio exige que todo indivíduo seja tratado como fim em si mesmo, o que implica proteção contra violência, discriminação e qualquer forma de desumanização.

Quando um cidadão, especialmente um representante eleito, é alvo de agressões físicas ou simbólicas acompanhadas de insultos possivelmente raciais, o que está em jogo não é apenas sua integridade pessoal, mas o núcleo ético do Estado Democrático de Direito. A investigação e eventual responsabilização são condições essenciais para que a dignidade seja um valor universal, e não privilégio de determinados grupos.

No campo jurídico-penal, o caso exige apuração rigorosa sobre eventuais delitos.

As lesões relatadas podem configurar crime de lesão corporal. A insistência em seguir e filmar o deputado pode caracterizar perseguição ou constrangimento ilegal. E eventuais insultos relacionados à origem racial, se comprovados, podem configurar injúria racial ou crime de racismo.

Caso surjam elementos que indiquem coordenação prévia, provocação ou intenção de emboscada, hipótese levantada pelo parlamentar, outros tipos penais poderão ser considerados, incluindo assédio ou incitação ao crime. As conclusões dependerão da apuração policial, das imagens, dos depoimentos e das perícias técnicas.

Por fim, o caso envolvendo Renato Freitas não se encerra no vídeo amplamente divulgado nas redes sociais, nem nas versões iniciais.

Ele convoca a sociedade a refletir sobre quem merece proteção, quem é punido e quais corpos são autorizados a reagir diante da violência.

No Brasil, essa ainda é uma fronteira aberta, que precisa ser superada para que a Consciência Negra deixe de ser apenas uma data no calendário e se torne um princípio vivo de justiça, igualdade e humanidade.

*Antonio Sérgio Neves de Azevedo é engenheiro, mestre e doutorando em Direito, em Curitiba, no Paraná.

Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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