Gustavo Guerreiro: A Doutrina Monroe 2.0 — petróleo, China e o pretexto do ‘narcoterrorismo’

Por Gustavo Guerreiro*, especial para o Viomundo

Cheira a naftalina. Um odor amargo, que nos remete ao século XIX, mas que reaparece, teimosamente, através do Departamento de Estado em Washington.

É o cheiro da Doutrina Monroe, aquele velho dogma de 1823 que diz “A América para os americanos” (do Norte, bem entendido) que, julgávamos, estivesse superado pela globalização, pelo multilateralismo, ou, vá lá, pelo simples bom senso. Engano nosso.

A retórica da intervenção, do “quintal” que precisa ser policiado, está de volta. E, como sempre, ela precisa de um verniz de legalidade, uma justificativa moral para consumo externo e interno.

Acompanhando o noticiário, me deparei com uma análise precisa, direto de Caracas, feita ontem (21 de outubro) pelo jornalista Breno Altman, do Opera Mundi.

Altman, com a vantagem de quem pisa no terreno, dissecava a nova (velha) estratégia de Donald Trump contra a Venezuela e, por tabela, contra a Colômbia. A palavra-chave, o abracadabra que justifica tudo, é “narcoterrorismo”.

Ouvimos isso antes. Mas o mecanismo, como Altman bem aponta, foi refinado. Não se trata mais de uma simples “guerra às drogas”, como aquela declarada por Nixon e inflada por Reagan, que serviu para encarcerar massas nos EUA e financiar Contras na Nicarágua. Estamos falando de algo mais cirúrgico e, paradoxalmente, mais expansivo.

O dispositivo legal evocado é o “Patriot Act”. Sim, aquele mesmo, parido nos escombros do World Trade Center. Ao fundir os conceitos de “narcotráfico” com “terrorismo”, Washington cria uma categoria jurídica elástica. Uma categoria que permite ao executivo estadunidense designar adversários políticos, sejam eles Estados, grupos ou indivíduos, como ameaças existenciais.

A consequência imediata, e deliciosa para os falcões, é que essa classificação permite contornar o Congresso estadunidense. Não é preciso pedir autorização para uma guerra formal. Basta uma ordem executiva para “caçar” o “narcoterrorista” onde quer que ele esteja. É a transformação da política externa em uma operação policial global, com os EUA como xerife, júri e executor.

É preciso ter honestidade intelectual para perguntar: Mas a Venezuela é, de fato, um “narcoestado”? A tese do “narcoterrorismo” como motor da política venezuelana é uma ficção, mas é conveniente. É conversa para boi dormir.

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Qualquer analista sério de geopolítica, qualquer leitor atento dos relatórios do próprio DEA (a agência antidrogas americana) ou mesmo um assinante calejado do The New York Times, sabe que as rotas primárias do narcotráfico sul-americano não têm Caracas como epicentro.

O maior produtor de cocaína do mundo, historicamente, é a Colômbia. Onde, aliás, os Estados Unidos mantêm sete bases militares e investiram bilhões (com “B”) no Plan Colombia.

A maior parte da droga tem como rota o Oceano Pacífico ou, ironicamente, por países aliados dos EUA na América Central. A participação venezuelana nessa logística, como pontuou Breno Altman, é irrisória.

Mas a Colômbia é (ou era, até a eleição de Petro) o aliado preferencial. A Venezuela, sob Chávez e agora Maduro, é o adversário.

A droga, portanto, só é um problema moral e legal quando passa pelo território do inimigo. Quando passa pelo território do aliado, é, presumivelmente, um problema logístico a ser “gerenciado” com mais verbas de Washington.

Trump acusou Gustavo Petro de ser “líder do tráfico de drogas” e ameaçou que os EUA fechariam campos de cultivo colombianos, dizendo que “não será feito de forma agradável”. O Ministro do Interior colombiano, Armando Benedetti, interpretou isso como “ameaça de invasão”.

A Colômbia recebeu US$ 14 bilhões em ajuda dos EUA desde 2000, evidenciando a contradição. A hipocrisia é tão flagrante que insulta a nossa inteligência. Mas se não é sobre drogas, é sobre o quê?

Aqui, saímos da crônica policial e entramos na alta política, no campo do poder. O que estamos assistindo é o espasmo de um império.

O século XXI revela a decadência do vencedor da Guerra Fria. O atoleiro dos EUA no Iraque e Afeganistão, a ascensão meteórica da China, o reposicionamento da Rússia e a emergência de potências médias (como o Brasil, aliás) redesenharam o mapa. Aquele momento unipolar dos anos 90 acabou.

Diante dessa decadência, que não é abrupta, mas através de um lento esvaziamento de sua autoridade global, os EUA reagem de duas formas. Globalmente, elegem um adversário sistêmico (a China).

Regionalmente, tentam restaurar o controle absoluto sobre o que sempre consideraram sua zona de influência primária: a América Latina. É a Doutrina Monroe 2.0.

O “quintal”, que ousou ter vontades próprias nos anos 2000 com o Mercosul fortalecido e a Unasul, precisa ser chamado de volta à ordem. E o que ofende Washington não é o “déficit democrático” em Caracas. Fosse esse o caso, a Arábia Saudita, uma teocracia medieval que fatia jornalistas, não seria tratada com tapete vermelho. O que ofende é a autonomia. O que ofende é a geopolítica.

E aqui chegamos ao verdadeiro X da questão. A verdadeira obsessão de Washington. O que está em jogo na América do Sul não é uma cruzada moral contra o “narcoterrorismo”.

O que está em jogo é uma Nova Guerra Fria, muito mais pragmática e menos ideológica que a primeira. É uma disputa por recursos e mercados.

Os Estados Unidos observam, com crescente pavor, o avanço do soft power e, principalmente, do crescimento econômico chinês. Enquanto os EUA oferecem ultimatos, sanções e certificações de “boa conduta”, Pequim oferece investimentos maciços em infraestrutura, compra commodities sem fazer perguntas sobre política interna e não dá lições de moral sobre democracia liberal.

Marco Rubio declarou que o Panamá deveria “eliminar a influência chinesa sobre o Canal ou enfrentar ação dos Estados Unidos”. Trump ameaçou “tomar de volta”. O governo panamenho anunciou que não renovará seu acordo com a iniciativa Belt and Road chinesa.

Para a China, a América Latina não é um “quintal”; é um fornecedor estratégico de petróleo (Venezuela), soja (Brasil, Argentina), cobre (Chile) e, acima de tudo, lítio, o mineral do futuro, essencial para as baterias da transição energética, abundante no “Triângulo” (Argentina, Bolívia, Chile).

A estratégia dos EUA, incapaz de competir economicamente com a avalanche de yuans resume-se ao velho hard power. Mas como competir, se o establishment de Washington ainda prega um neoliberalismo, que a própria China nunca adotou para poder se industrializar?

A saída encontrada foi: se não podemos vencer no comércio, usaremos o cassetete. A classificação de “narcoterrorismo” é o cassetete legal. É a ferramenta para sancionar não apenas a Venezuela, mas qualquer um que negocie com ela. É uma ameaça velada a Gustavo Petro, na Colômbia, que ousa reabrir relações com o vizinho. É, no limite, uma ameaça ao Brasil.

O que impede que, amanhã, o mesmo “Patriot Act” seja usado para classificar, digamos, o MST como um “grupo terrorista” que ameaça o agronegócio (onde há capital estadunidense)?

O que impede que a pressão sobre o lítio boliviano ou a gestão da Amazônia brasileira também resulte em sanções sob pretextos fabricados?

O Brasil, neste exato momento (outubro de 2025), ocupa uma cadeira (rotativa, infelizmente, mas ainda assim uma cadeira) no Conselho de Segurança da ONU. Temos, portanto, um palco.

O Itamaraty, que já foi uma das chancelarias mais respeitadas do mundo por sua defesa do direito internacional e da não-intervenção, tem o dever moral e estratégico de se pronunciar. Não se trata de defender o governo de Maduro. Isso é com os venezuelanos.

Uma coisa é a crítica diplomática e a defesa dos direitos humanos. Outra, muito diferente, é a aceitação passiva de uma escalada retórica belicista, baseada em pretextos falsos (“narcoterrorismo”), que viola a Carta das Nações Unidas (que proíbe a ameaça de uso da força) e que visa transformar nosso continente num tabuleiro de xadrez para potências extrarregionais.

O Brasil deve usar seu assento no Conselho de Segurança para denunciar formalmente essa escalada.

Deve propor uma resolução (que certamente será vetada pelos EUA, mas o gesto político é o que importa) reafirmando a América Latina como uma zona de paz, livre da instrumentalização de conceitos como “terrorismo” para fins de intervenção hegemônica.

O silêncio do Itamaraty, neste momento, não é prudência. É covardia. É a aceitação tácita de que, sim, ainda somos o “quintal”.

A Doutrina Monroe, afinal, só existe se nós, ao sul do Equador, concordarmos em continuar usando a coleira. A história nos absolverá pela defesa do direito internacional, mas nos condenará pela omissão diante da farsa.

*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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