Marcelo Zero: Pá de cal na Ucrânia e lança-chamas na América Latina
Pá de cal na Ucrânia e lança-chamas na América Latina
Por Marcelo Zero*
O telefonema de mais de duas horas “muito positivo” entre Putin e Trump e o encontro do “Imperador” ou “King” com Zelensky, que saiu da Casa Branca sem Tomahawks, parece ter colocado uma pá de cal nas pretensões da Ucrânia de ter um apoio mais efetivo para enfrentar a Rússia e atacá-la intensamente em seu território.
Segundo o Financial Times, Trump teria dito a Zelensky para aceitar os termos de paz de Putin ou ser “destruído”.
Em definitivo, Trump não pretende apoiar mais Zelensky. Trump sabe, assim como a maioria dos analistas internacionais realistas, que a guerra na Ucrânia já está perdida e sua continuidade seria inútil, custosa, e sacrificaria ainda mais Kiev.
Trump quer ter uma relação normal e até cooperativa com a Rússia, de modo a ter alguma influência na Ásia Central, o eixo geopolítico que comunica a Europa com o Leste asiático.
Ademais, a geoestratégia de Trump parece apontar nitidamente para dois outros objetivos: conter a China e implantar a nova “Doutrina Monroe”.
O primeiro objetivo já era muito conhecido.
O segundo vem se consolidando mais recentemente, pela influência de Marco Rubio, velho e radical desafeto do progressismo latinoamericano.
O “tarifaço” e as punições contra autoridades brasileiras, o apoio pessoal a Milei e as ameaças contra a oposição da Argentina, o cerco político, econômico e militar à Venezuela e, mais recentemente, a ameaça clara ao governo de Gustavo Petro são todos sinais gritantes de que Trump exige que o “quintal” se alinhe aos seus interesses.
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Para tanto, o “King”, como um bom monarca absolutista, se utiliza de escusas e esquemas de legalidade no mínimo discutível, como considerar narcotráfico como “terrorismo” e invocar uma lei do final do século XVIII para decretar que os EUA estão sob ataque armado, de modo a poder prescindir da autorização do Congresso para fazer uma nova guerra.
Como já assinalei em outro artigo, uma invasão terrestre da Venezuela me parece uma hipótese remota.
Os EUA têm cerca de 10 mil homens estacionados em Puerto Rico e na frota do Comando Sul. Esse número é claramente insuficiente para uma ocupação na Venezuela, um país de 916 mil km² e com forças armadas, razoavelmente equipadas, de 135 mil homens, afora um número indeterminado de milicianos armados.
Mas ações específicas e bombardeios contra infraestruturas críticas, ou mesmo para assassinar Maduro (“um dos maiores traficantes do mundo”, segundo o Departamento de Estado, uma clara peça de ficção) ou membros de seu governo podem estar dentro dos cálculos imperiais para derrubar o regime bolivariano, a um custo reduzido e prazo curto.
O governo Petro, na Colômbia, antes um dos centros do domínio dos EUA na América do Sul, parece ser o próximo da lista. Seu presidente acaba de ser acusado de “narcotraficante” (portanto, de “terrorista”) e os subsídios, muito antigos, foram cortados sumariamente.
O governo do Panamá já tinha sido devidamente “enquadrado” e teve de se desfazer de contratos com companhias chinesas que operavam em seus portos, sob pena, real, de perder o Canal.
Até o Canadá, vizinho e antigo e fiel aliado, foi “convidado” a se tornar o 51º Estado dos EUA. É considerado quintal também, embora não seja “latino”.
A Groenlândia, embora não seja parte do continente americano, ainda sofre com a ameaça de uma anexação, “de uma forma ou de outra”.
Claro, há muitas bravatas nas políticas e ações de Trump, mas as ameaças contidas na nova Doutrina Monroe são reais e representam perigo concreto e iminente à paz e à estabilidade de toda a América Latina.
Ela poderá inserir nossa região toda no jogo geopolítico cru e torpe da nova Guerra Fria, internacionalizando e intensificando conflitos.
Representa também uma ameaça muito presente ao protagonismo do Brasil em sua própria região. O processo de integração regional, particularmente o do Mercosul, está seriamente em perigo.
Parece que voltamos aos tempos da “diplomacia das canhoneiras” de Ted Roosevelt.
O Big Stick está à solta e o common sense (o bom senso), the least common of the senses, sumiu nas brumas escuras do novo império hobbesiano que Trump pretende criar.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo