Reforma Sanitária Digital exige soberania tecnológica e Justiça Social
Reforma Sanitária Digital exige soberania tecnológica e Justiça Social
Em entrevista ao Cebes, Luiz Vianna alerta para o “canto da sereia” das novas tecnologias, discute governança, bioética e a Nova Rota da Seda da Saúde Digital
Por Clara Fagundes, no site do Cebes
Soberania tecnológica e Justiça Social são as bases para uma Reforma Sanitária Digital, afirma médico e especialista em Bioética e Saúde Digital, Luiz Vianna Sobrinho.
Em entrevista ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o pesquisador alerta para o “canto da sereia” das novas tecnologias e aponta caminhos para superação da dependência tecnológica das Big Tech, como uma “Nova Rota de Seda” da saúde e os movimentos de redes comunitárias.
“É essa cultura digital que dará caráter de soberania com espírito de nação às ameaças externas, mas também a possíveis reviravoltas políticas internas”, avalia Vianna. “As tecnologias não resolvem iniquidades”, reforça o cardiologista, crítico da visão de que o teleatendimento possa dar conta dos vazios assistenciais.
A Inteligência Artificial chega trazendo muitas promessas, mas podemos estar caminhando para um encantamento que nos deixará ainda mais sobre o controle dos detentores do capital financeiro, avalia Viana. “Querer implantar uma grande transformação através de uma poderosa tecnologia que pode revolucionar a gestão, mas também pode conduzir a uma total objetificação e dataficação do humano”, afirma.
1. Soberania e Saúde Digital
Como o SUS pode incorporar tecnologias digitais sem reproduzir relações de dependência com grandes corporações internacionais, garantindo soberania tecnológica para o Brasil?
Esse é um ponto fundamental, pois penso que hoje, e principalmente na área da saúde, soberania é sinônimo de soberania tecnológica, em todos os níveis que se possa pensar em tecnologia. Pensando nas novas tecnologias de informação, é preciso ter o controle do fluxo e da interoperabilidade dos sistemas que estão atrelados ao SUS, além do domínio pleno do armazenamento dos dados utilizados pelos sistemas. É preciso investir em rede e estruturas com data-lakes que não estejam sob controle das Big-techs. O Plano Nacional de Industrialização (PNI) e o Plano de Ação para o Desenvolvimento Sustentável (PDES), ambos relançados em 2023 pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) criam uma boa expectativa, pois dispõem a área da inovação tecnológica em saúde e as tecnologias digitais como prioridade. É preciso avançar, no entanto, nas parcerias com polos tecnológicos que estejam interessados em investimento com transferência da tecnologia para desenvolvimento conjunto. E, notadamente, a China tem demonstrado esse modelo de cooperação, sem exploração pela dependência, na formulação de metas da Nova Rota da Seda. Venho defendendo a oportunidade de participar pela Rota da Seda da Saúde e já existe a proposta da criação de Fundo de Tecnologia em Saúde Brasil-China[1]. Mas há um segundo componente, tão ou mais importante, que deve ser o nosso trabalho interno de garantir a nossa soberania através da posse e domínio do conhecimento tecnológico pela base, pelos segmentos populares, pelos movimentos de redes comunitárias, pois é essa cultura digital que dará caráter de soberania com espírito de nação às ameaças externas, mas também a possíveis reviravoltas políticas internas.
Apoie o VIOMUNDO
2. Inclusão e Equidade
De que forma a digitalização da saúde pode contribuir para reduzir desigualdades históricas no acesso, especialmente para populações em territórios vulneráveis e com baixa conectividade?
As desigualdades históricas, na minha opinião, são conhecidas e já deveriam ter sido sanadas sem depender das tecnologias digitais. As tecnologias não resolvem iniquidades. É uma questão política; por isso defendo que voltemos às aspirações e metas da Reforma Sanitária. Trazer o digital, nesses termos, é melhorar a instrumentação informacional de forma mais detalhada, tanto a que chega ao governo, quanto a que retorna à população. Mas não vejo como resolutivo utilizar o argumento da distância e isolamento de comunidades, para generalizar o teleatendimento para ser massificado nas periferias dos grandes centros urbanos. O sistema de saúde precisa de investimento e rede preparada para fortalecer a atenção e o cuidado, e isso é tarefa entre humanos. A melhor informação deve chegar A esses sujeitos, que devem saber o que fazer. Por isso uma Reforma Sanitária Digital envolve o Ministério da Saúde, mas também a educação, a gestão das cidades, o combate à pobreza e saneamento. Quando comecei a escrever sobre isso, lá em 2018, no meio do meu doutorado, eu contava que o pensamento coletivo tomasse as rédeas do nosso ingresso na Era Digital, que isso não fosse dominado pela ótica do mercado. Pois é isso que acontecerá se nos empenharmos apenas na estrutura física da rede e dispositivos de IA.
3. Governança de Dados
Quais seriam os mecanismos mais adequados para assegurar que os dados de saúde da população brasileira sejam usados em benefício coletivo e não explorados por interesses privados ou externos?
Muito tem se discutido e de produzido entre regulamentos e tratados, para o estabelecimento de mecanismos de segurança robustos, com métodos seguros de coleta e armazenamento de dados. A área de saúde é sempre mais complexa, pois informações individuais podem ter impactos na coletividade e vice-e-versa. Então temos a importância do consentimento informado, mas as necessidades das emergências sanitárias; vivemos esse dilema na pandemia. O trabalho com dados anonimizados e desidentificação, a política de limitar a coleta de dados com propósitos, o cuidado com certos grupos e comunidades de maior risco, como os de HIV. Nesse ponto, eu penso que as estruturas do governo vêm se desenvolvendo de forma bem robusta; tem muitas instituições envolvidas nisso sob a coordenação direta ou indireta da SEIDIGI (MS), com a integração de estruturas para uma boa governança, como a Rede Nacional de Dados em Saúde e o DATA-SUS.
4. Bioética e Inteligência Artificial
A inteligência artificial vem sendo descrita como o “canto da sereia” da saúde digital. Como o SUS pode adotar essas ferramentas com senso crítico, garantindo ética, transparência e responsabilidade?
Eu escrevi um artigo onde chamava a atenção para essa perspectiva[2]. As ondas de descobertas tecnológicas sempre vêm acompanhadas de um entusiasmo que promete redenção para todos os problemas da humanidade. A Inteligência Artificial chega com a mesma promessa; mas, com todo o poder econômico que criou e domina essa tecnologia, em pleno neoliberalismo, podemos estar caminhando para um encantamento que nos deixará ainda mais sobre o controle dos detentores do capital financeiro. É preciso recuperar a utopia de liberdade da web, explorar e estimular a diversidade das comunidades e territórios culturais, explorar suas potências estimulando a relação e a cooperação na diferença. Não creio em tábuas ou regulamentos éticos; precisamos avançar na regulação da utilização da IA, das plataformas, dos aplicativos, das estruturas de fluxo e armazenamento dos dados e nas estruturas de vigilância; mas o uso de uma tecnologia que avança rapidamente a cada dia necessita que o debate ético esteja vivo na realidade das comunidades de usuários; precisamos desenvolver essa autonomia. Cartilhas ajudam, mas é necessário algo mesmo como uma paidéia – a ética da tecnologia é extremamente política.
5. Reforma Sanitária Digital
Quais as bases para uma “Reforma Sanitária Digital”? Ela seria capaz de transformar não apenas a gestão, mas também a prática clínica e a própria relação médico-paciente?
O tema que realmente mais me interessa é a relação entre os sujeitos na atenção à saúde. Seja o profissional da medicina, da enfermagem, o agente de saúde, o assistente social ou outro. Quando escrevi recentemente sobre o “Paradoxo de Topol”[3], me referia a uma situação que nos apresenta um dilema: querer implantar uma grande transformação através de uma poderosa tecnologia que pode revolucionar a gestão, mas também pode conduzir a uma total objetificação e dataficação do humano. O uso de suporte de IA nas decisões médicas ainda tem muito a demonstrar. Já vi um influente gestor da saúde privada dizer que “o médico que tiver medo da IA será substituído pelo médico que tiver a IA no bolso”. Eu penso que não se trata de medo, mas de visão crítica do conhecimento, do que estamos usando; pois o médico que não prestar atenção a isso poderá ir para o bolso da IA. E alguns estudos bem recentes já estão demonstrando isso: o uso de suporte da IA tem reduzido a visão crítica, o aprendizado e a capacidade de reflexão profissional[4]. Numa outra abordagem, a RSD poderia caminhar no sentido de presevar o que é mais importante do que a produtividade, o desempenho, ou a performandce do sistema – a qualidade da relação e o desenvolvimento da autonomia.
6. Impactos no Trabalho em Saúde
Com a expansão da telemedicina, da automação e do uso de IA, quais serão os impactos mais prováveis sobre o trabalho de profissionais de saúde no SUS? Como preparar a força de trabalho para essa transição?
A resposta da primeira pergunta depende do resultado da segunda. Eu tenho visto que esse trabalho já começou, e a qualidade dessa atenção é que vai demonstrar o que será o SUS na era digital. Toda a estrutura do sistema tem que chegar aos profissionais, para que conheçam a tecnologia que utilizam voltados para a atenção que desejamos manter. Já há vários cursos de especialização em saúde digital, como mestrados profissionais também em áreas técnicas ligadas a ciência de dados. Atualmente participo da orientação de uma disciplina de Bioética de Inteligência Artificial na área de concentração de Saúde Digital da especialização do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, em parceria com a SEIDIGI/MS.
7. Cooperação Internacional
Você cita experiências como a da China na erradicação da pobreza com uso intensivo de big data e IA. O que o Brasil poderia aprender dessas iniciativas para fortalecer o SUS?
A China usou Big-Data e IA para conhecer o problema das comunidades de forma granular, ter uma precisa dimensão da magnitude da pobreza e das necessidades e peculiaridades de cada vilarejo, e planejar as ações e os prazos para mensurar os resultados. Mas tomou uma forte decisão política de resolver o problema com aporte continuado de recursos financeiros e estímulo ao financiamento de milhares de pequenos produtores e empreendedores[5]. O Brasil pode utilizar programas como o da coleta censitária do IBGE e similares, para ir além da busca de informação, mas também como um caminho de mão dupla; teríamos um exército com grande capilaridade. E precisamos impulsionar a economia solidária e agricultura familiar, as formas de empreendedorismo social e ampliar o financiamento para diminuir as assimetrias de recursos de tecnologia digital e infraestrutura para conectividade, tanto para além dos grandes centros urbanos, quanto nos estados fora do núcleo Sul-Sudeste. O ganho maior, sob o meu ponto de vista, será o contato e absorção dos fundamentos da ética do leste asiático, que está voltando a se afirmar com muita potência na China. É estimulante entender como eles ajustam o socialismo, que é fruto do pensamento político ocidental aos antigos conceitos comuns ao confucionismo, ao taoísmo e ao budismo, que defendem a convivência harmoniosa na diversidade, e o equilíbrio simbiótico entre a humanidade e o ambiente natural. Isso é fundamental para o momento geopolítico de multilateralidade, onde apostamos na força política da tecnodiversidade.
Referências:
[1] Santos, WP et cols (2025 no prelo). Brazil-China Relations in Health: Historical Context, Industrial Challenges, and Future Opportunities. The BRICS Health Journal (no prelo)
[2]Vianna Sobrinho, L (2023). O canto da sereIA. Aurora: revista de arte, mídia e política, São Paulo, v.16, n.47, p. 7-18, maio-agosto 2023. Disponível em https://doi.org/10.23925/1982-6672.2023v16i47p7-18
[3]Vianna Sobrinho, L (2025). A transformação digital do SUS e o “Paradoxo de Topol”. https://outraspalavras.net/outrasaude/transformacao-digital-do-sus-e-o-paradoxo-de-topol/
[4] Abdulnour, RE; Gin, B (2025). Educational Strategies for Clinical Supervision of Artificial Intelligence Use. N Engl J Med 2025;393:786-97. DOI: 10.1056/NEJMra2503232
[5]Chinese Poverty Alleviation Studies: A Political Economy Perspective. 2021. New China Research. Xinhua News Agency. Disponível em http://www.xinhuanet.com/english/special/2021jpxbg.pdfLeia
Leia também
AO VIVO: Centro de Estudos da Fiocruz debate tecnologias digitais, desafios e estratégias para o SUS
Frente no Congresso da Alames: Por uma Reforma Sanitária que resgate saúde, democracia e socialismo
Carlos Ocké: Sanitaristas e sociedade civil juntos pelas reformas estruturais na saúde
Publicação de: Viomundo