Marcelo Zero: Cetáceo-Chefe

Cetacean-in-Chief

Por Marcelo Zero*

O show de horrores da transformação da democracia americana em uma autocracia segue impávido e célere.

Há dois dias, em uma ação patética e extremamente ofensiva para as forças armadas estadunidenses, Pete Hegseth, atual secretário da Guerra dos EUA, convocou todos os chefes militares estadunidenses, muitos deles distribuídos pelo mundo inteiro, em cerca de 800 instalações militares internacionais, para dar recados políticos caricatos e inauditos.

Ressalte-se que as “novas instruções” poderiam ter sido feitas perfeitamente por e-mail, mas Hegseth, um secretário de Guerra que nunca passou de escalões militares intermediários, preferiu gastar milhões de dólares para promover um grande show político-partidário.

As manifestações “anti-woke” do secretário, que era jornalista da FOX News, como não querer militares “usando vestidos”, militares com barbas, militares transsexuais, militares gordos etc. chegam a causar riso e escárnio, pois não passam de preocupações ideológicas e comportamentais que não atingem a função precípua de militares em uma democracia, que é, como se sabe, defender a nação de ameaças externas.

Contudo, o recado político-ideológico foi bem além dessas ridículas preocupações “anti-woke” e machistas de Hegseth, as quais, obviamente, ofenderam os chefes militares dos EUA, que estão preocupados com questões estratégicas muito mais relevantes para a defesa nacional, do que barbas, vestidos e as circunferências de suas cinturas.

Em seu longo e ainda mais divagante discurso para o peculiar grupo de oficiais militares, o presidente Donald Trump também falou sobre muitas coisas irrelevantes, como noticiou o New York Times.

Não pareceu haver um ponto ou propósito claro no discurso do presidente Trump aos generais militares. Foi um queixume confuso. Ele falou sobre tarifas, Joe Biden, a fronteira sul, a CNN, seus sentimentos pessoais em relação ao presidente russo Vladimir V. Putin e sua ansiedade de não receber o Prêmio Nobel da Paz, que ele acha que merece.

Essas são coisas sobre as quais ele fala quase todos os dias, independentemente do público ou do cenário. De vez em quando, ele acrescenta uma estatística ou observação que tem sobre as Forças Armadas.

Apoie o VIOMUNDO

“A propósito, disse ele na ocasião, acho que talvez devêssemos começar a pensar em navios de guerra”, interrompendo um comentário sobre tarifas para mencionar uma série de documentários dos anos 1950 sobre guerra naval. “Eu costumava assistir ‘Victory at Sea’. Adoro ‘Victory at Sea’. Se fosse Biden, teriam falado em “demência”.

Não obstante, o que preocupa, essencialmente, nessa mixórdia “anti-woke” e de lamúrias imperiais desconexas e pessoais, é algo muito mais relevante e atemorizante.

Preocupa, e muito, a manifestação de Hegseth, secundado por Trump, de que as forças armadas dos EUA têm de estar preparadas para combater os “inimigos internos” e de intervir em cidades estadunidenses, especialmente as governadas por Democratas.

Isso é inacreditável.

Trump falou com grande clareza sobre certas classes de americanos que ele vê como uma grave ameaça.

As partes mais importantes do discurso do comandante-em-chefe foram as seções em que ele tentou preparar oficiais de alto escalão para o aumento da intervenção militar nas cidades americanas. Ele chamou as “conurbações de subúrbios de baixa renda” de “uma grande parte da guerra a ser enfrentada”. Ele afirmou, categoricamente, que os Estados Unidos estão “sob invasão interna”.
Trump também disse inequivocamente que cidades “governadas por democratas de esquerda radical” são lugares perigosos e que “vamos corrigi-las uma de cada vez”, e que “as pessoas nesta sala vão ajudar com isso”.

“Eles precisam desesperadamente dos militares”, disse Trump sobre cidades com prefeitos democratas.

Trump falou dessas cidades ocupadas “pelo inimigo” como um “campo de treinamento” para combatentes americanos, alegando que outros grandes presidentes usaram os militares para manter a paz e a ordem, no front doméstico, o que é uma grande mentira,

Creio que nunca houve um presidente dos EUA que tenha usado tão desavergonhadamente a ameaça da força militar para combater “inimigos internos”, isto é, populações que se identificam com os Democratas ou que não compartilham com os desvarios ideológicos do MAGA.

Isso não é, definitivamente, algo normal numa democracia.

Nesta profissão, disse Hegseth, você se sente confortável em meio à violência para que nossos cidadãos possam viver em paz. A letalidade é nosso cartão de visita e a vitória, nosso único estado final aceitável.

E se “o inimigo” viver entre “nossos cidadãos” ou, pior ainda, se “nossos cidadãos” trabalharem traiçoeiramente para “o inimigo interno”, os danos colaterais serão apenas um subproduto infeliz, mas inevitável, de toda essa letalidade justa.

Ora, isso é uma ameaça clara, direta e atemorizante à democracia.

Hegseth e Trump, para além das bobagens sobre peso, barbas e de outras bobagens sobre os militares, estão tentando atrair as forças para o campo indevido das disputas políticas internas, com a escusa do combate à criminalidade e aos “inimigos internos”.

Isso é discurso típico de candidato a ditador. Típico de uma republiqueta de bananas.

O ponto-chave a ser observado aqui é que Trump está buscando tornar o uso de militares no plano doméstico uma rotina. Historicamente, George Washington lidou com uma revolta militar, quando enviou tropas durante a “Rebelião do Uísque”. Abraham Lincoln travou uma enorme guerra civil.

Ocasionalmente, outros presidentes convocaram unidades da Guarda Nacional para lidar com emergências esporádicas, desde tumultos até o desrespeito estadual às leis federais.

Mas essas foram raras exceções a um princípio americano fundamental e muito importante de que uma sociedade livre não usa força militar contra sua própria população. É uma exceção que Trump quer transformar em regra, rotulando seus oponentes políticos como “inimigo interno” e as cidades americanas como “território inimigo.”

Acho que os generais entenderam que Trump vê seus compatriotas americanos como seus inimigos. E, agora, eles devem ter percebido que, em algum momento, provavelmente serão forçados a escolher entre Trump e seus juramentos de defenderem a Constituição.

O Cetacean-in-Chief, com seu grosseiro sobrepeso físico e suas toneladas de autoritarismo político, não pode comandar os militares do EUA e o que restou (pouco) da democracia estadunidense. Definitivamente, não está em boa forma.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

Este texto não representa obrigatoriamente a posição do Viomundo.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *