Luis Felipe Miguel: O que fazer com o Congresso?

O que fazer com o Congresso?

Câmara recuou na PEC da Blindagem depois das manifestações. Mas, de forma geral, a balança é mais favorável aos representantes do que aos representados

Luis Felipe Miguel*, em seu blog

A Câmara dos Deputados aprovou a PEC da Blindagem após tramitação relâmpago. Ela havia sido uma das concessões que Hugo Motta, o fraco, tinha feito para reconquistar sua cadeira de presidente, depois do motim bolsonarista. Uma expressiva maioria dos nossos representantes, incluindo muitos filiados a partidos convencionalmente classificados como de esquerda ou centro-esquerda, decidiu que queria que a impunidade absoluta para seus atos fosse parte do enxoval que acompanha o mandato.

Foi mais rápida ainda a derrocada da PEC no Senado. A Comissão de Constituição Justiça não precisou nem de um minuto, em votação unânime, para enterrar a proposta.

Entre uma coisa e outra, o que ocorreu foi a mobilização da sociedade civil contra a blindagem parlamentar, culminando nos atos de 21 de setembro. Logo depois das manifestações, deputados já tinham vindo a público para apresentar desculpas patéticas, esfarrapadíssimas: tinham votado por engano, tinham sido enganados. Outros reclamaram da tramitação rápida demais (uma exigência deles mesmos), que não teria dado tempo para “medir o pulso” do eleitorado.

A derrota da PEC significativa. É uma derrota maiúscula da união, cada vez mais carnal, entre o Centrão e a extrema-direita.

Como consequência direta das manifestações e da já esperada derrota da blindagem no Senado, Hugo Motta, o pusilânime, recusou o pedido afrontoso de fazer do fujão Eduardo Bolsonaro líder da minoria, abrindo as portas para a cassação do seu mandato. A mesa da Câmara decidiu pelas punições aos deputados que assaltaram o plenário (ainda que brandas, insuficientes e para apenas uma parte dos envolvidos).

Mais importante ainda, o projeto de anistia para aqueles que atentaram contra a democracia – a seco ou lambuzada na conversa fiada de “dosimetria das penas” – perdeu tração. Não só terá sua tramitação menos acelerada como entrou água no acordão que Paulinho da Força estava querendo fazer para reduzir as penas de Jair e seus capangas. Eles insistem, claro, com a conversa mole de “pacificar o país”, mas já perdeu o caráter de favas contadas.

Em suma, a derrota da PEC deu um gás para o governo (junto com outras boas notícias, como o surpreendente resultado da participação de Lula na assembleia geral das Nações Unidas), no momento em que o União Brasil aperta a chantagem e tenta colocá-lo nas cordas.

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Mas o episódio também nos ajuda a refletir sobre a dinâmica da representação política hoje.

É um lugar comum da análise da política brasileira a previsão de que, a cada nova legislatura, o nível médio dos parlamentares será pior do que o dos eleitos antes. É difícil imaginar algo pior do que a atual Câmara dos Deputados, mas é o que nos arriscamos a ter depois da eleição do ano que vem.

A aprovação inicial da PEC da Blindagem mostrou que os deputados não têm pudor e estão prontos para tornar público o seu desejo de impunidade. Estamos falando de corrupção, prevaricação, peculato, tráfico de influências, crimes que estamos acostumados a ver na nossa elite política. Mas também, em muitos casos, crimes como violência doméstica, violência sexual, assassinato.

Arthur Lira serve de exemplo. O ex-presidente da Câmara é certamente ainda hoje o deputado mais influente dos 513, patrono, mentor e, quando necessário, salvador de Hugo Motta, o trapalhão. Não se conhece nenhuma contribuição que tenha dado ao país. Não se sabe de nenhuma ideia que lhe tenha passado pela cabeça para resolver qualquer problema da sociedade brasileira, alagoana ou maceioense. Cria de Eduardo Cunha, é a fina flor do Centrão. Seu talento se manifestou ao chantagear o Executivo, fosse com Bolsonaro, fosse com Lula, para arrancar maiores vantagens para si e para seus colegas. Ao mesmo tempo, vive enredado em esquemas robóticos muito mal explicados e em acusações bastante verossímeis de agressões contra sua ex-mulher.

Era de se imaginar que um sujeito com essa ficha corrida fosse tratado como pária por quem tem que conviver com ele. Mas Lira, muito ao contrário, é festejado e adulado por todos. Quando os escândalos contra ele ameaçaram encrespar, o governo Lula e o Supremo entraram em campo para salvá-lo.

Simples pragmatismo: sabiam que era melhor negociar com alguém que de fato comandava o Congresso do que com um borra-botas como Hugo Motta, o minúsculo. Mas é um pragmatismo que revela também a consciência de que a maior parte dos nossos parlamentares é feita da mesma matéria-prima moral que Lira.

Bons tempos em que Luiz Inácio falava dos 300 picaretas com anel do doutor. Hoje certamente são mais do que 300, picareta é quase um elogio para o que muitos são e, no lugar dos anéis de doutor, estão os distintivos de delegado e os crucifixos de pastor.

Mas a PEC da Blindagem foi derrotada – uma derrota que, muito mais que de Hugo Motta, o olvidável, foi de Lira. Desde que chegou à presidência da Câmara pela primeira vez, em 2021, garantir a impunidade para detentores de mandato é sua prioridade. Mesmo com todo o seu poder, fracassou mais de uma vez na tarefa.

No final das contas, existe capacidade de pressão sobre os parlamentares. Este é, afinal, o grande mérito do processo eleitoral: eles sabem que precisarão dos votos populares para manter suas posições de poder.

A pressão revelou sua eficácia na questão da impunidade, que costuma ter bastante apelo diante do público. Certamente seria necessária uma pressão maior, uma mobilização mais organizada, para fazer com que a nossa elite parlamentar abrisse mão de algo que ela considera ainda mais fundamental, como seu controle crescente sobre o orçamento público – que lhe dá não apenas oportunidades gigantescas de corrupção, mas também alimenta o clientelismo miúdo pavimenta as reeleições.

Ou o fim da escala 6×1 e o aumento da progressividade da tributação, questões em que pesam os interesses dos seus financiadores privados, da burguesia à qual servem – ou seja, em que há pressões poderosas do outro lado.

Em suma, ainda que seja possível obter avanços por meio da pressão sobre os detentores de mandatos, este não é um jogo equilibrado. A divisão do trabalho político que a representação impõe faz com que, do lado dos simples eleitores, os estímulos apontem para a desinformação e a passividade. É necessário um esforço organizado e constante para garantir algum grau de supervisão efetiva sobre a ação dos representantes.

O que é paradoxal, no momento que vivemos, é que, por um lado, permanecem de pé todas as patologias clássicas da representação política, que se ligam à independentização dos representantes em relação às suas bases, mas, por outro, ocorre o fenômeno do chamado “populismo”, em que eles se comportam como meros porta-vozes do senso comum mais rebaixado, com isso degradando o nível do debate público.

Embora a gente tenha se acostumado com a expressão “democracia representativa”, o fato é que ela contém uma contradição em termos. Ela seria o governo do povo (a democracia) em que o povo não governa, porque delega o poder para um conjunto de representantes. É a volta dos que não foram. A exigência de representação coloca uma série de desafios para o exercício da democracia, incluindo a vulnerabilidade à expressão dos interesses de grupos poderosos, a concentração dos representantes em determinados grupos da população e sua autonomia em relação às bases, a partir do momento que são colocados em um lugar especial nas instituições políticas.

Como é inviável pensar em uma organização das sociedades contemporâneas que elimine completamente os mecanismos representativos, a questão que se coloca para a imaginação política é como garantir que os representantes sejam capazes de responder melhor aos interesses dos representados. Não existe fórmula mágica para isso. É claro que é possível e necessário pensar em instituições aperfeiçoadas, em formas aprimoradas de prestação de contas e diálogo compulsório entre representantes e representados. Mas qualquer solução passa pela educação política popular ampliada.

*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da Universidade de Brasília e coodenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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