Pedro Amaral: E o Brasil se move

E o Brasil se move

Por Pedro Amaral*, na Linha Vermelha

“Que século, meu Deus! – exclamaram os ratos
E começaram a roer o edifício”.
(“Edifício Esplendor”, Carlos Drummond de Andrade)

Os filmes de Francis Ford Coppola batizados no Brasil com o simpático título O poderoso chefão gravaram cenas memoráveis na história do cinema.

Uma sequência delas retrata um rito de passagem sangrento e genial: Michael Corleone (Al Pacino) comparece à missa de batismo de seu sobrinho, filho de Connie (Talia Shire); enquanto o rito católico se desenrola dentro da igreja, com Michael renunciando ao demônio para sagrar-se padrino, do lado de fora, nas ruas, outro rito tem lugar: o assassinato dos capi das famílias mafiosas rivais, um a um, pelos capangas de Michael.

No entrelaçamento de cenas do batismo e da matança, ao som tenso e hipnótico da música litúrgica, o sagrado e o profano se mesclam de modo impactante (a história da igreja de Pedro não é, ela mesma, marcada por ascese espiritual e brutalidade sem freios?).

Ao fim, Michael alcança uma dupla consagração, como padrinho de seu sobrinho e como padrinho da máfia, assumindo o posto deixado pelo pai, Don Vito Corleone, e tomando um rumo sem volta.

A mescla de sagrado e profano que alcança seu ápice nessa sequência, em que a água batismal corre dentro da igreja e o sangue jorra lado de fora, não é, contudo, um ponto fora da curva na trilogia de Coppola: ao longo de toda a trama, a prática de crimes – contrabando, suborno, assassinato – convive harmoniosamente com o cultivo de valores e práticas tradicionais, como a centralidade da família, a lealdade, a hierarquia e o machismo.

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Isto traz à lembrança uma outra sequência, menos brilhante e mais real, embora farsesca: na parlamentada de 17 de abril de 2016, ou votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, uma gama de deputadas e deputados, ao anunciar seu voto para todo o país, houve por bem fazer menções a Deus e a sua própria família; quase nenhum deles tocou no fundamental – os motivos que haveria para a cassação do mandato popular –, enquanto alguns falaram em corrupção.

Santos do pau oco, mais da metade deles estava às voltas com complicadas pendências judiciais, e o próprio presidente do colegiado, o notório Eduardo Cunha, teria sua cassação aprovada em setembro daquele mesmo ano, por 450 votos a 10.

Entre os guardiões da moralidade, viam-se figuras como Paulo Salim Maluf e um militar do baixo clero que aproveitou a ocasião para homenagear um facínora que se notabilizou por inserir ratos na vagina das mulheres que torturava – sem causar sequer um eriçar de sobrancelhas entre os autoproclamados defensores da família brasileira presentes no plenário.

No último 17/09, mais um encontro rebaixado entre a fé, ou um simulacro dela, e a prática delituosa: eufóricos, deputados e deputadas do conglomerado (hoje majoritário na Câmara) que reúne Centrão e extrema-direita rezaram um Pai Nosso para comemorar a aprovação do regime de urgência para apreciação do chamado “PL da Anistia”.

O Projeto de Lei nº 2162/2023, da cepa do bispo Marcelo Crivella e outras peças raras (dentre elas o pastor Sóstenes Cavalcante, líder do PL e cupincha de Silas Malafaia), abençoa os envolvidos no putsch de 8 de janeiro de 2023, podendo estender a graça a outros mais, com esta magnânima proposição: “Art. 1º – Ficam anistiados todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações, apoio logístico ou prestação de serviços e publicações em mídias sociais e plataformas, entre o dia 30 de outubro de 2022 e o dia de entrada em vigor desta Lei”.

Não é preciso esforço para entrever o risco embutido nessa pérola da desfaçatez: nossa história republicana ensina, e o faz com toda clareza, que a impunidade é a semente do golpismo.

Como se mais fosse preciso para evidenciar o quanto a proposta é espúria, sua relatoria ficou a cargo do deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), que traz no currículo, entre outros feitos, uma condenação no STF por crime contra o sistema financeiro nacional, lavagem de dinheiro e associação criminosa.

A “trinca da dosimetria”, que entra em campo para, tratando aqui e ali, “pacificar o país” ao arrepio da lei, completa-se com dois elementos que contribuíram decisivamente para o quadro de instabilidade política que o Brasil vem atravessando: Aécio Neves, que ao perder a eleição presidencial para Dilma em 2014 resolveu questionar o resultado na justiça “só pra encher o saco do PT”, e Michel Temer, o perjuro, artífice do golpe de 2016.

(“Que Deus tenha misericórdia desta nação”, declarou Don Cunha, suposto mentor de Liras e Mottas que aí estão, em súbito enlevo bíblico – outro exemplo da mescla de religiosidade e delito, nesta terra onde mercadores da fé fazem fortunas incalculáveis.)

A dura semana de 15-19 de setembro nos legou, também, a aprovação a toque de caixa da PEC 3/2021, ou “PEC da Blindagem”, que exige a autorização, pelo plenário da Casa legislativa (por voto secreto e maioria absoluta), para a abertura de ação penal pelo STF contra deputado ou senador, e cria novas regras a dificultar a manutenção da prisão e a adoção de medidas cautelares contra parlamentares, no caso de flagrante de crime inafiançável.

Coincidentemente ou não, a proposta de 2021 vem a lume poucos dias após a PF e a Receita Federal haverem deflagrado a megaoperação Carbono Oculto, para desbaratar uma sofisticada cadeia de lavagem de dinheiro do crime organizado, em especial o PCC, que inclui o setor de combustíveis e diversas fintechs instaladas na Faria Lima. No bojo da investigação, acharam-se fortes indícios de ligação entre o PCC e ninguém menos que o presidente do União Brasil, legenda que, junto com o PP, forma a federação com maior bancada do Congresso, além de mais de mil prefeitos.

Claro que as medidas autoprotetivas, se aprovadas, tendem a tornar impunidade o que hoje é imunidade; tão claro que a reação da sociedade e dos conglomerados da comunicação foi imediata e, ao que parece, a proposta irá morrer no Senado. Fica, de todo modo, o alerta em relação ao avanço do crime organizado na política institucional, e o incômodo com o fato de uma gama de parlamentares do campo dito progressista, inclusive uma dúzia do PT, haverem votado a favor da Emenda, o que sugere ter havido ao menos um ensaio de acordo com Centrão e fascistas para aprovar a “anistia mitigada”.

Num olhar mais panorâmico, a PEC da Blindagem pode ser vista como a volta do pêndulo, uma resposta – sem dúvida, excessiva, e mesmo descarada – da maioria congressual à tendência crescente, e que vem de longe, de judiacilização da política. Tendência para a qual a centro-esquerda terá dado sua parcela de contribuição, ao longo dos anos, ao recorrer insistentemente ao Judiciário e ao Ministério Público para conter adversários que se via incapaz de enfrentar na política.

Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Não bastante tudo o mais, numa manhã de quinta-feira de plenário esvaziado a Câmara dos Deputados aprovou a urgência para a apreciação do PL nº 2780/2024, que cuida de desonerar as grandes mineradoras em atuação no país, e além disso incentiva e subsidia ativamente a pilhagem de recursos estratégicos nossos, como são os elementos conhecidos como terras-raras.

Os horrores do Congresso (onde, vale lembrar, a bancada ruralista se articula para resgatar o PL da Devastação, que destrói o licenciamento ambiental no país), contudo, não têm passado despercebidos pela sociedade, que começa a se mobilizar.

Os atos do último domingo, 21/09, que tomaram as ruas em todo o Brasil para rechaçar a PEC da Blindagem e o PL da Anistia (também foram içadas bandeiras como a do fim da escala 6×1), mostraram que a centro-esquerda mantém sua capacidade de mobilização, e pode ir além de conquistar corações e mentes da classe média, voltando a disputar as favelas e periferias, hoje sob forte influência do neopentecostalismo reacionário e da virulência da extrema-direita.

No mínimo, no mínimo, as manifestações – vibrantes e massivas – deixaram uma imagem para a história: a imensa bandeira brasileira cobrindo um mar de gente na Av. Paulista, com o dístico positivista substituído pela exigência: “Sem anistia”.

Uma resposta à altura para a infâmia do neofascismo entreguista.

*Pedro Amaral é escritor, mestre em Relações Internacionais e doutor em Letras (PUC-Rio). É autor do livro ”Meninas más, mulheres nuas – As máquinas literárias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios” (Papéis Selvagens).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Publicação de: Viomundo

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