Álvaro García Linera: Bolívia: por que a esquerda e o progressismo perdem eleições?
Álvaro García Linera: Bolívia: por que a esquerda e o progressismo perdem eleições?
O progressismo se fortaleceu ao romper com o neoliberalismo, mas hoje fracassa por não renovar seu projeto; sem novas reformas, as conquistas iniciais se tornam insuficientes para avançar
Por Álvaro García Linera, no Diálogos do Sul*
As batalhas políticas nas redes não criam do nada ambientes político-culturais expansivos nas classes populares majoritárias. Elas os radicalizam e os conduzem por caminhos histéricos. Mas sua influência requer, previamente, a existência social de um mal-estar generalizado, de uma disponibilidade coletiva ao desapego e à rejeição das posições progressistas.
Da mesma forma, as extremas direitas, autoritárias, fascistóides e racistas, sempre existiram. Vegetam em espaços marginais de militância enfurecida enclausurada. Mas sua pregação se expande a partir do deterioro das condições de vida da população trabalhadora, da frustração coletiva deixada por progressismos tímidos ou da perda de status de setores médios. E quanto aos que argumentam que a derrota se deve à “ingratidão” daqueles setores anteriormente beneficiados, esquecem que os direitos sociais nunca foram uma obra de caridade governamental: foram conquistas sociais alcançadas nas ruas e nas urnas.
Por tudo isso, sem nenhuma desculpa, um governo progressista ou de esquerda perde eleições por seus próprios erros políticos.
E esses erros podem ser múltiplos. Mas há uma falha que unifica todos os demais: o erro na gestão econômica ao tomar decisões que atingem os bolsos da grande maioria de seus seguidores. No Brasil, o golpe de Estado parlamentar de 2016 contra Dilma Rousseff, impulsionado pelas frações mais antidemocráticas do espectro brasileiro, foi montado sobre o mal-estar econômico que já se arrastava há vários anos e que teve no ajuste fiscal de 2015 uma nova volta de parafuso na contração da renda popular.
Na Argentina, o peronismo perdeu as eleições de 2023 devido ao aumento da inflação durante o governo de Alberto Fernández. Embora a tendência inflacionária seja uma constante da economia argentina há décadas, há uma fronteira histórica que, ao ser ultrapassada, dá lugar a uma liquefação das lealdades políticas populares, que os leva a se agarrar a qualquer proposta, por mais aterradora que seja, que resolva essa asfixiante volatilidade do dinheiro. A anomalia política Milei é a forma distorcida de canalizar a frustração em ódio e punição.
Na Bolívia, o instrumento político dos sindicatos e das organizações comunais camponesas (MAS) deve perder as eleições pela desastrosa gestão econômica de Luis Arce. Com uma inflação de alimentos básicos beirando os 100%, a falta de combustível que obriga a enfrentar filas de dias para consegui-lo e um dólar real que dobrou de valor em relação à moeda boliviana, não é de se estranhar que o processo de transformação democrática mais profundo do continente perca dois terços de sua votação popular para velhos vendilhões da pátria que prometem expulsar os indígenas do poder a pontapés, entregar empresas públicas a estrangeiros e encrustar, com a Bíblia na mão, as oligarquias servis da terra na direção do Estado. Se somarmos a isso o ressentimento das classes médias tradicionais, deslocadas de seus privilégios pelo ascenso social e empoderamento político das maiorias indígenas, está claro o falatório abertamente revanchista e racializada que envolve os discursos das direitas bolivianas.
Em todos os casos, há também outros componentes políticos que reforçam esses erros centrais que conduzem à derrota. No caso do Brasil, as denúncias de corrupção, depois manipuladas politicamente. Na Argentina, o cansaço com o longo confinamento durante a pandemia, que destruiu parte do tecido econômico popular, etc. Na Bolívia, a guerra política interna. De um lado, um economista medíocre que está por acaso na presidência e que acreditou poder deslocar o líder carismático indígena (Evo) proscrevendo-o eleitoralmente. De outro, o líder que, em seu ocaso, já não consegue mais vencer eleições, mas sem cujo apoio tampouco se vence, e que se vinga ajudando a destruir a economia sem compreender que, nessa hecatombe, está também demolindo sua própria obra. O resultado final desse miserável fratricídio é a derrota temporária de um projeto histórico e, como sempre, o sofrimento dos humildes, que jamais foram levados em conta pelos dois irmãos embriagados por estratégias pessoais.
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Em suma, derrotas políticas conduzem a derrotas eleitorais.
Agora, a pergunta que se faz é como governos progressistas e de esquerda puderam fracassar economicamente quando, em seus inícios, essa era a força de legitimidade que lhes permitia vencer, uma e outra vez, as eleições. No caso da Bolívia, com 55%, 64%, 61% e 47% em primeiros turnos. Certamente, o progressismo latino-americano do século 21 emergiu do fracasso das gestões neoliberais imperantes desde os anos 1980. A maioria implementou políticas de redistribuição de riqueza, e ampliação de direitos. Os resultados foram imediatos. Mais de 70 milhões de latino-americanos saíram da pobreza em uma década, as instituições antes reservadas às rançosas aristocracias se democratizaram e, no caso da Bolívia, houve uma recomposição das classes sociais no Estado ao transformar os indígenas-camponeses em classes com poder estatal direto.
Aí residiu a grande força e legitimidade histórica do progressismo. Mas também o início de seus limites, pois, completada essa obra redistributiva inicial, ela começou a se mostrar insuficiente para garantir, ao longo do tempo, a continuidade dos direitos alcançados. Trata-se de um limite por cumprimento de metas, que exigia compreender que os países haviam mudado precisamente pela ação do progressismo e que, portanto, era necessário propor a essa nova sociedade reformas econômicas de segunda geração, capazes de consolidar o que foi conquistado e dar novos saltos de igualdade. A questão é que o progressismo e as esquerdas estão condenados a avançar se quiserem permanecer. Ficar parados é perder. A nova geração de reformas passa, necessariamente, por construir uma base produtiva expansiva de pequena, média e grande escala, tanto na indústria como na agricultura e nos serviços; tanto no setor privado, camponês e popular quanto no estatal; tanto no mercado interno quanto na exportação, que garanta um amplo suporte industrioso e duradouro à redistribuição da riqueza.
Mas, até hoje, os progressismos no governo, especialmente os que já estão em sua segunda ou terceira gestão, ou os que desejam voltar ao poder, estão ancorados em conquistas passadas, em sua defesa melancólica e, ao contrário de quando começaram seu primeiro mandato, por ora carecem de uma nova proposta de transformação capaz de voltar a levantar esperanças coletivas em torno de um mundo a conquistar. Que as direitas tenham se apropriado do paradigma do ímpeto por mudança não é uma casualidade. É resultado do conservadorismo do atual progressismo. E também de suas derrotas eleitorais.
No entanto, o espírito do tempo histórico ainda não se decantou. Nem o continente, nem o mundo, que andam aos trancos e barrancos entre neoliberalismos recarregados, protecionismos soberanistas ou capitalismos de Estado produtivistas, definiram ainda a nova fase longa de acumulação econômica e legitimação política. Por mais algum tempo, continuaremos nesse portal liminar em que derrotas e vitórias são curtas. Mas isso não durará para sempre. Se o progressismo quiser continuar sendo protagonista dessa disputa pelo destino, está obrigado a se lançar sobre um porvir reinventado com audácia, com mais igualdade e democracia econômica.
Álvaro García Linera é ex-vice´presidente da Bolívia.
*Análise escrita antes do resultado das eleições deste domingo (17), na Bolívia.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo