Entenda o objetivo e alcance das novas restrições dos EUA às exportações de chips para a China
No dia 17 de novembro, entrou em vigor a segunda medida do governo de Joe Biden que tem como objetivo limitar ainda mais as exportações para a China de semicondutores avançados e de máquinas para fabricá-los.
Segundo o governo estadunidense, as novas regras visam eliminar formas de contornar as restrições anteriores e vão impedir, por exemplo, a exportação de chips avançados de inteligência artificial para a China.
Em resposta ao anúncio sobre a medida, feito em outubro, a Associação da Indústria dos Semicondutores dos EUA a questionou, afirmando que “controles unilaterais muito amplos correm o risco de prejudicar o ecossistema de semicondutores dos EUA sem promover a segurança nacional”.
Recentemente, a Secretária de Comércio dos EUA, Gina Raimondo, participou do Fórum Reagan de Defesa Nacional, pela primeira vez, onde afirmou que as receitas de curto prazo não são a prioridade do seu departamento e sim, em suas palavras, a segurança nacional.
No fórum, Raimondo disse: “Não podemos deixar a China obter estes chips. Ponto final”. Ela aproveitou para pedir mais orçamento para seu departamento.
A indústria dos semicondutores chinesa
As empresas de semicondutores estão procurando formas de contornar as “linhas muito duras” que estão sendo adotadas pelo governo dos EUA, disse Charles Liu, membro sênior do Instituto Taihe no programa Global Arena do Global Times.
“Em última análise, não se pode impedir a China de avançar em tecnologia. Se você não vender os chips, os chineses farão por si próprios, eles já demonstraram sua capacidade de fazê-lo. Temos cientistas e engenheiros muito inteligentes, e também muito trabalhadores. E eles vão, como já fizeram em vários setores, ultrapassar os EUA. Você pode tentar bloqueá-lo aqui e ali, mas não pode bloquear todos os setores e todos os campos para sempre”, diz Liu.
A China é um mercado importante para a maioria das grandes empresas do setor de semicondutores. Mesmo com as medidas de restrição às exportações, em 2022, a China representou 27% da receita total da estadunidense Intel, 23, 9% das vendas da Tokyo Electron, e 15% das vendas da ASML.
Em outubro, a Agência de Indústria e Segurança do Departamento de Comércio informou em comunicado que os controles foram elaborados “para enfrentar os esforços da República Popular da China para obter equipamento de fabricação de semicondutores de computação avançada de alta qualidade necessários para permitir o desenvolvimento e produção de tecnologias como inteligência artificial (IA) utilizadas em aplicações militares”.
A agência também afirmou que as capacidades avançadas de IA “podem criar preocupações quando são utilizadas para apoiar sistemas de vigilância de reconhecimento facial para violações e abusos dos direitos humanos”.
Ironicamente, nos EUA organizações defensoras dos direitos civis, como a União Estadunidense pelas Liberdades Civis, vêm denunciando como a tecnologia de reconhecimento facial usada por agências policiais no país vem violando direitos e contribuindo para aumentar a desigualdade racial. Um levantamento publicado na revista de pesquisas Government Information Quarterly, confirma que as prisões injustas e que afetam desproporcionalmente as pessoas negras nos EUA não são uma exceção e sim um problema embutido na tecnologia de reconhecimento facial utilizada pelas forças do Estado.
O governo chinês tem mostrado grande insatisfação com as medidas. O Ministério do Comércio chinês expressou em outubro que os EUA “esticam demais o conceito de segurança nacional”.
Assim como Liu, outros especialistas do gigante asiático, por sua vez, acreditam que as medidas restritivas terão um impacto limitado contra o desenvolvimento da Inteligência Artificial na China no longo prazo.
Por um lado, e apesar de softwares de inteligência artificial como o recentemente lançado Ernie da Baidu (semelhante ao ChatGPT), não terem cumprido com expectativas, a distância entre a tecnologia chinesa e as mais avançadas da IA não é tanta.
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É o que considera Zhou Linwen, editor-chefe de ciência da The China Academy. Ele conta que a maior plataforma de código aberto para modelos de Inteligência Artificial, a Hugging Face, tem o modelo chinês Qwen no topo.
Outra tabela classificativa é a feita pela Universidade de Stanford, que analisa modelos de código fechado. Nesse ranking, o modelo chinês Yi 34B ficou em terceiro lugar, logo atrás do GPT4, versão lançada em março deste ano pela sua proprietária estadunidense OpenAI.
Linwen afirma que, na verdade, entre a comunidade chinesa de Inteligência Artificial, há convicção de que em meados de 2024 o modelo chinês vai atingir o nível do GPT4. “A diferença é de um ano entre os modelos chineses e os modelos estadunidenses. Não estamos tão atrás, realmente”, completa Linwen.
Em relação ao desenvolvimento de chips, após surpreender o mundo, com o lançamento de um telefone com chip de 7 nanômetros, coincidindo com a visita da secretária de Comércio, Gina Raimondo, à China em agosto, a Huawei acaba de lançar um computador com um chip de 5 nanômetros, fabricado pela parcialmente estatal chinesa SMIC.
Fundada no ano 2000, a SMIC é uma empresa nova comparada com as líderes no mercado de chips, como a taiwanesa TSMC de 1987, a ASML de 1984 e a Intel, de 1968.
Em 2008, a SMIC conseguiu fabricar seu primeiro chip 45 nanômetros (nm), com uma licença tecnológica da IBM. A Intel havia começado a produzir em massa chips de 45 nm no ano anterior.
Linwen afirma que no início da indústria dos semicondutores, a China na verdade estava no mesmo nível do Ocidente. A Academia Chinesa de Ciências havia construído a primeira máquina de litografia nacional já em 1965. “Mas durante os anos ‘80 e ‘90, os tomadores de decisões políticas na China consideraram que, à medida que a cadeia de abastecimento global estava se tornando cada vez mais integrada, não precisávamos construir tudo sozinhos. Então, eles decidiram que poderíamos simplesmente comprar todas as máquinas, chips, todas aquelas peças dos mercados internacionais. Foi nesse ponto que todo o investimento em pesquisa e desenvolvimento de semicondutores foi cortado”, explica o editor-chefe de Ciência da The China Academy.
Diante do cenário de medidas contrárias à China, o governo de Xi Jinping tem destacado a necessidade de autossuficiência no setor de semicondutores.
A segunda fase do chamado Fundo Nacional de Investimento da Indústria de Circuitos Integrados da China, iniciada em 2019, investiu mais de 60 bilhões de yuans, cerca de 41 bilhões de reais, em mais de 40 empresas de semicondutores. Segunda a Reuters, uma terceira fase estaria sendo preparada no valor de 300 bilhões de yuans, quase R$ 205 bi.
De 2019 a 2021, o número de engenheiros trabalhando na indústria de microchips passou de 500 mil para 600 mil.
Em 2022, as empresas do setor investiram cerca de 100 bilhões de yuans em Pesquisa e Desenvolvimento. Zhou Linwen afirma que a cifra não é muito alta considerando o nível de investimentos que a indústria requer, mas o crescimento no setor na China é acelerado.
Em 2022, o governo chinês investiu 3 bilhões de yuans em Investimento e Desenvolvimento, e também o investimento cresceu a uma taxa superior a 7%. É muito dinheiro, afirma Linwen. Ele ainda destaca que o país passou a ter o maior número de artigos científicos citados do mundo. “Uma grande editora a Elsevier afirma que ‘esses jornais chineses têm um impacto superior à média’. Então, são artigos de qualidade.”
A proibição de comprar chips avançados e de tentar construí-los
Desde o ano passado, as autoridades estadunidenses vinham pressionando o Japão e os Países Baixos para alinharem à política dos EUA contra a China.
A pressão incluiu a ameaça de proibição das vendas de equipamentos de fabricação de chips que possuem tecnologia estadunidense. Junto a empresas dos Estados Unidos, a japonesa Tokyo Electron e a holandesa ASML, são as principais fabricantes de equipamentos para produção de chips.
A ASML é a principal companhia das máquinas mais avançadas para produção de chips. Em 2019, sob pressão de Trump, o governo dos Países Baixos cancelou as vendas dos sistemas que usam a tecnologia de Litografia Ultravioleta Extrema. Atualmente esse é o sistema necessário para produzir chips de 5 nanômetros ou menores.
O uso do tamanho dos “nanômetros” para classificar os chips tornou-se apenas comercial. Até certo ponto, a redução do tamanho de uma parte específica do chip era o que permitia incluir mais transistores nele. Mas as escalas tornaram-se tão pequenas que deixou de ser possível usar esse critério para o avanço no desenvolvimento dos chips. Assim, chips de 7 nm de diferentes empresas podem ter tecnologias diferentes. Mesmo assim, especialistas afirmam que existe comparabilidade no desempenho de chips que estão nas mesmas categorias de, por exemplo, 7, 5, 3 nm.
Em agosto deste ano, a empresa chinesa Shanghai Micro Electronics Equipment anunciou que entregaria nos próximos meses sua primeira máquina de litografia de 28 nm, feita totalmente com tecnologia e componentes chineses.
“É por isso que ouvimos o CEO da ASML dizer que o povo chinês encontrará uma forma de inventar a máquina. Eu diria que a China vai ter sua própria máquina de Litografia Ultravioleta Extrema. Talvez não igual a dos Países Baixos, mas podemos ter uma tecnologia ligeiramente diferente. Há mais de uma maneira de fazer isso”, afirma Linwen.
A questão de Taiwan
Em meio ao debate, vem tornando-se um lugar comum afirmar que a China poderia acelerar o processo de reunificação com a ilha de Taiwan, para se “apropriar” da TSMC, a empresa que produz cerca de 60% de todos os semicondutores do mundo.
“A mídia ocidental quer reduzir a questão porque é mais fácil para as pessoas no Ocidente compreendê-la, mas para a China e o povo chinês, a questão de Taiwan nunca foi sobre semicondutores, é sobre soberania”, diz Linwen.
Atualmente, 182 países (incluindo EUA e a maioria dos países europeus e latino-americanos) reconhecem o princípio de Uma Só China, pelo qual Taiwan é considerado parte da China. Treze países reconhecem Taiwan como um Estado independente. Dentro mesmo de Taiwan, o Kuomintang (partido derrotado na revolução de 1949), reconhece o princípio, apesar de querer a volta da “República da China”.
A indústria de semicondutores na China continental tem uma relação muito estreita com empresas e talentos taiwaneses, conta Linwen. “Então, estamos juntos, muitos taiwaneses contribuíram enormemente para desenvolver a nossa indústria de semicondutores. Não creio que a alta liderança considere Taiwan como uma questão de semicondutores”.
Por outro lado, afirma que a hipótese também não faz sentido porque a prioridade da China passa a ser agora a construção da tecnologia de Litografia Ultravioleta Extrema (EUV, em inglês). “E os taiwaneses não podem construir EUV. Eles também importam máquinas de EUV dos Países Baixos.”
É possível que os EUA sejam os mais interessados em misturar os assuntos. O Fórum Reagan de Defesa Nacional, onde Gina Raimondo participou, é uma das conferências anuais sobre política militar mais importantes do país e reúne altos funcionários militares, legisladores e executivos das gigantes da indústria armamentista dos EUA, (que também são as maiores do mundo), como a Lockheed Martin, Boeing e Northrop Grumman e RTX, anteriormente Raytheon.
As receitas militares das cinco maiores corporações armamentistas do mundo (todas elas dos EUA) em 2022 foram bilionárias, segundo o site de notícias Eyes on the Ties (De Olho nos Vínculos): Boeing (US$ 30,8 bilhões), General Dynamics (US$ 30,4 bilhões), Lockheed Martin (US$ 63,3 bilhões), Northrop Grumman (US$ 32,4 bilhões) e RTX (US$ 39,6 bilhões).
Dias depois, em 14 de dezembro, o Congresso dos EUA aprovou o maior orçamento militar da história do país, US$ 886,3 bilhões, US$ 28 bi a mais do que no ano anterior.
O pacote aprovado inclui US$ 14,7 bilhões para a Iniciativa de Dissuasão do Pacífico, estratégia lançada em 2021 pelo governo norte-americano. Um relatório publicado do Departamento de Defesa dos EUA de março deste ano, sobre esta iniciativa para orçamento de 2024, afirma que “O Departamento está priorizando a China como o seu principal desafio”, e que “uma grande parte dos investimentos e esforços do Departamento concentra-se nesta ameaça”.
O relatório afirma ainda que o objetivo da iniciativa é “desenvolver capacidades, conceitos operacionais e planejamento para fortalecer a dissuasão contra a República Popular da China no IndoPacífico”.
Publicação de: Brasil de Fato – Blog