Ubiratan de Paula Santos: Assim descaminha a humanidade
Assim descaminha a humanidade
Por Ubiratan de Paula Santos*
Não, não se trata de comentário contraposto ao filme Giant, estrelado em 1956 por Elizabeth Taylor, Rocky Hudson, James Dean e Dennis Hopper, e no Brasil recebeu o título de Assim Caminha a Humanidade.
Desde a revolução industrial, com o emergir e a dominação do modo de produção capitalista, fomos assistindo a um tipo de desenvolvimento onde havia uma combinação de apropriação privada e soluções coletivas.
O direito ao trabalho e sua melhoria progressiva, o trabalho coletivo na grande fábrica, melhoria das habitações, transporte coletivo, saneamento, iluminação pública, abolição do trabalho escravo, desenvolvimento da vacina, saúde e a escola públicas contribuíram para aumentar a expectativa de vida e esperanças das gerações subsequentes.
Desse processo, nasceram o sindicalismo, os partidos operários e as revoluções mexicana, russa, chinesa, cubana, vietnamita, argelina, nicaraguense, independentemente dos rumos no curto período da história.
A trajetória de avanços, claro, não foi linear.
Ao longo do caminho, ”acidentes de percurso” interferiram nessa evolução.
Refiro-me às guerras mundiais (dilaceraram populações e países), às localizadas (como a da Coréia e do Vietnã) e às dezenas de golpes apoiados pelos Estados Unidos.
No Irã, por exemplo, foi deposto em 1953 o nacionalista Mohammed Mossadegh.
Na América Latina, governos legitimamente eleitos foram derrubados no Brasil, República Dominicana, Uruguai, Chile, Argentina, Bolívia e Peru.
De meados do século 19 até dois terços do século 20, a trilha predominante era de melhoria geral na vida das populações, expressa em vários indicadores, como:
— Redução de mortalidade e analfabetismo
— Implantação de políticas de proteção social, direitos sociais e políticos, direito do voto, direitos da mulher
— Redução progressiva do escravismo e do colonialismo
Mas, a partir do final da década de 1970, esse processo de melhorias sofreu uma inflexão.
Foi como se um trem tivesse que desacelerar a viagem por conta de desvios no caminho.
De um lado, devido a hegemonia do financismo, a aceleração exponencial das novas tecnologias, que aumentaram a apropriação da mais valia, e a desregulamentação do fluxo de capitais. Todos concentradores do lucro em grupos restritos — o chamado neoliberalismo.
Do outro lado, o fim da URSS e com ela a perda progressiva de tração do movimento operário e dos partidos anticapitalistas, passamos a assistir de forma extrema o primado do individual sobre o coletivo, como o modo de acumulação capitalista dominante.
Em 2021, informa o jornal El País de 7 de dezembro daquele ano, os 10% mais ricos do mundo detinham 76% do patrimônio global.
Juntas as 25 pessoas mais ricas, segundo a Revista Forbes 2023, possuem patrimônio superior ao PIB do Brasil: US$ 2,1 trilhões.
Ou seja, uma concentração de renda descomunal nas mãos de uns poucos à custa da miséria da maioria esmagadora maioria da população, em especial da fração mais pobre que aumenta.
Para manter a hegemonia, esse processo veio acompanhado de guerras e invasões realizadas pelo Império e seus aliados, como assistimos no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Iugoslávia e em nações africanas.
Agora, isso se dá contra a Rússia no teatro ucraniano, no apoio integral a Israel para destruir os palestinos e na tensão com a China, que Donald Trump começou e Joe Biden dobrou a aposta.
Processos belicosos que a vontade expressa pela maioria dos países, em fóruns globais, não consegue conter, a exemplo da devastação e catástrofe humanitária em Gaza pelo Estado de Israel.
Faz parte dessa operação global a sanha pela captura do público pelo privado, levando ao enriquecimento sem freios, sem as resistências necessária, como assistimos no Brasil.
Aqui, infelizmente, esse processo foi inaugurado na redemocratização. O fato de a transição da ditatura militar para o governo civil, em 1985, ter sido feita pelo alto facilitou.
O que é a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2000, senão a captura do público pelo privado.
A LRF impôs o limite máximo de gastos com pessoal em 49% da receita corrente líquida, independente da demanda por mais e melhores serviços para a população, em sua maioria pobre, carente e que crescia.
O objetivo da LRF era estimular a terceirização com a entrada de novos atores.
Foi criado, então, o chamado terceiro setor.
Pode-se contratar empresas privadas ou maquiadas na forma de Organizações Sociais (OS) para prestar serviços com uso intensivo de pessoal na limpeza, segurança, saúde e educação.
Atualmente, a terceirização abrange todo e qualquer setor/serviço, pois os limites da LRF para os gastos com pessoal não se aplicam às OS.
A limitação dos gastos com pessoal determinada pela LRF não visou apenas favorecer o lucro privado.
Teve outro objetivo muito perverso: evitar políticas permanentes, perenes, do poder público, pois as terceirizações permitem com facilidade e rapidez o encurtamento dos serviços prestados à população, conforme as prioridades dos governantes de plantão.
Em situações de crise, os primeiros cortes são feitos nos serviços de atenção coletiva: menos saúde, menos educação, restrições à previdência, aos salários, para não afetar o patrimônio e rentabilidade presente e acumulada pelo baronato (via juros, isenções fiscais, não taxação de riquezas, impostos regressivos, etc).
A defesa dos interesses privados — via pressão política, hegemonia cultural na sociedade, parlamentos, mídia corporativa, judiciário — vem esvaziando progressivamente a capacidade de operação do Estado e a redução de direitos, particularmente de quem trabalha.
A máquina hegemônica liberal busca ainda carimbar no Estado a imagem de ineficiente, perdulário, caro, corrupto.
Os vários atores dessa máquina liberal só não dizem que a capacidade de ação do Estado vem sendo deliberadamente desconstruída pelos apologistas da maior eficiência do privado.
Há evidências de toda sorte sobre os malfeitos do setor privado. Só que não são percebidas porque ficam escondidas ou por quem não quer ver.
Vale o mesmo para o teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional (EC) 95/2016, ainda mais perversa que a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Tramada pelo governo Michel Temer que assumiu a presidência da República em decorrência do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, a EC 95 congelou gastos do governo federal por 20 anos, exceto para o pagamento de juros da dívida pública.
A partir da década de 1990, ganha centralidade no arcabouço do torniquete neoliberal a transferência de empresas públicas e estatais para o setor privado, financiado em muitos casos com dinheiro público.
Iniciaram com os bancos estaduais, siderúrgicas, telefônicas, ferrovias, seguindo com fatias da Petrobrás, companhias de saneamento, metrôs, Eletrobrás.
Mais recentemente evoluíram para parques e espaços públicos, sem limites, para atender a sanha do ganho particular em detrimento do coletivo.
Nesse ritmo vão atender finalmente ao vaticínio do escritor José Saramago, nos seus Cadernos de Lanzarote (1996) onde, no poema Privatize-se tudo, escreve, entre os vários versos:
“Privatize-se Machu Picchu
Privatize-se a Capela Sistina,
Privatize-se o Pártenon,
Privatize-se a Catedral de Chartres
Privatize-se a Cordilheira dos Andes
Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu
Privatize-se a nuvem que passa,
Privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos
E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos”
O esvaziamento do Estado e de sua capacidade de ação — seja via terceirização dos serviços, redução dos trabalhadores públicos e seus salários, seja por privatizações — tornam cada vez mais limitadas as possibilidades das eleições expressarem a vontade popular por mudanças de orientação.
O Estado deve funcionar como regulador, defendem à exaustão os arautos liberais.
Mas, para regular, o Estado precisa ter força, capacidade de operação, de mediação que não se limite à parvoíce, a exemplo de uma ONU sem divisões.
Esse processo tem como coroamento o cerco neoliberal com as mudanças nas leis de proteção do trabalho e de proteção social, reduzindo direitos, seja para enxugar o gasto público como para favorecer o lucro-privado.
Em agosto de 2023, segundo o IBGE, o número de trabalhadores informais foi estimado em 38,8 milhões, contra 37,2 milhões de pessoas com CLT (Pedro Cafardo, Valor Econômico de 24/10/2023).
Quanto menor o número de contribuintes formais, menores as condições das políticas de proteção, como aposentadorias e pensões serem adequadas.
Apesar de as pesquisas conhecidas mostrarem que a maioria dos trabalhadores precários prefere o informal à possibilidade de algum ganho presente maior, eles expressam a consciência adormecida sobre o que os esperam no futuro, no envelhecer e a dura necessidade de viver o presente como conseguem.
O trabalho informal é o estímulo à competição e o desestímulo à organização coletiva, aos sindicatos.
O papo do empreendedorismo — o vire-se cada um pra si nos trinta — é a falácia a tentar encantar serpentes, à associação dos cidadãos.
Enquanto os donos do dinheiro gozam de isenções e apoios de toda sorte, o indivíduo empreendedor não tem plano safra.
Mudanças em curso na geopolítica global — com esforços, principalmente, de China, BRICS e vários países da América Latina — trazem esperança de que se possa estabelecer um dique de contenção e recuperar alento para o desenvolvimento dos povos.
Para tal êxito é necessária uma luta sem tréguas contra o modo de dominação que o capitalismo imperialista vem impondo ao mundo.
É preciso confrontar em todos os espaços para mobilizar energias na construção de um outro futuro, sem guerras, pobreza, fome e um melhor viver.
Com acordos de cavalheiros, não sairemos do poço, cada vez mais profundo e sem água à vista.
Novas gerações não serão mobilizadas sem uma perspectiva que lhes permita sonhar com um futuro melhor.
Por essas razões também não deve causar espanto a atual exacerbação religiosa, refúgio dos sem esperança, ao lado do enriquecimento dos aproveitadores, entre eles, bispos e pregadores charlatães de novo tipo.
Persiste atual a análise, escrita que pode ser lida como prosa, do então jovem K. Marx na sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de 1843:
“…A religião não cria o ser humano, mas, ao contrário, o ser humano cria a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e a autoestima do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo.
O homem é o mundo dos homens, o Estado, a Sociedade. Este Estado, esta Sociedade engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.
A religião é a teoria geral deste mundo, seu compendio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação.
É a realização fantástica da essência humana porque a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião o seu aroma espiritual.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela.
A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.
A verdadeira felicidade do povo exige que a religião seja superada, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões.
Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade…
A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol.
A religião é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo”.
Os partidos políticos e movimentos sociais que foram a espinha dorsal da eleição de Lula em 2022 devem aumentar as manifestações por mudanças.
Além de pressionarem o governo, ajudam a esclarecer a população e contribuem para melhores condições de governança para mais bem atender as demandas populares e as expectativas motivadoras da vitória contra as forças de ultradireita.
Pelo lado do governo, é fundamental explicar ao povo suas propostas, seus objetivos, dificuldades, entraves para suas aprovações no Congresso, como ocorre na presente situação.
Restringir-se a negociações entre as quatro paredes dos edifícios da Esplanada, já com pauta reduzida para atender o aceitável pelas forças oponentes, torna mais incerto e difícil o governar, apesar de toda capacidade de articulação política pessoal do Presidente.
Assim como a mulher de Cesar, é preciso que o Governo dê demonstração de fazer o necessário e desejado pelos que nele depositaram suas esperanças e participaram para derrotar o projeto que vinha abatendo o país desde 2016.
E isso não se faz sem luta, sem esclarecer o povo das razões de tensões e confrontos; que eles visam mudança de rumos para atender os que precisam.
Sem deixarmos isso claro, será difícil ganhar cérebros e músculos capazes de exercerem o protagonismo pela ampliação da democracia política, social, econômica e cultural.
Toda tensão se resumirá a noites de insônia à espera de que as conversas com o bloco conservador no legislativo permitam ao governo alguns mililitros de oxigênio e que o “Mercadão” não fique brabo quando se pretenda o aumento do salário mínimo, a melhora dos serviços de saúde e da escola, a preservação da Amazônia, mais ciência e tecnologia.
Sem a redução de ganhos de acionistas em benefício do trabalho e da maioria da população, não haverá solução possível para atender os necessitados.
Isso implica explicitar e lutar por uma outra política.
*Ubiratan Paula Santos é médico em São Paulo.
Publicação de: Viomundo