Roberto Amaral: Para além do efeito Orloff
Para além do efeito Orloff
Por Roberto Amaral*
Indesejável, o 19 de novembro argentino não surpreendeu àqueles que apreciam os movimentos eleitorais perfurando a superfície das enquetes de opinião.
Para esses, o campo da análise é o processo social, lido a partir das lições históricas, simplesmente porque nenhuma eleição por si só constitui um fato, autônomo do ponto de vista fenomenológico: trata-se mais de um desaguadouro de elementos que, em fusão (que supõe contradições e choques), terminam por construir o fenômeno político a considerar.
A avaliação necessária é, pois, mais complexa, mas é também a que mais nos aproximará da realidade.
A agonia política de nosso vizinho conta uma história de mais de meio século, bem conhecida, mas muito pouco considerada na balança dos elementos.
Se há fato novo a registrar, na interpretação do que revelam os números, é sua congruência com o cenário internacional que, evidentemente, não é obra dos últimas dias.
Tanto quanto a emergência do bolsonarismo em 2018, a eleição de Milei não deve ser considerada um raio em céu azul.
Como sói repetir-se em todos os transes de crise econômica e comoção social, a direita rapidamente traslada para a extrema-direita protofascista, e com o discurso “antissistema” conquista setores crescentes da classe média e do proletariado, principalmente das massas periféricas.
E, como ao fim da República de Weimar (1933), o círculo de apoio se encerra com a aliança com a alta burguesia.
Foi esse consórcio que ensejou o crescimento do partido nazista (eleições de 1932), a alçada de Hitler à chancelaria (1932) e, finalmente, ao golpe de 1933. Depois, o prometido e o esperado: Segunda Guerra Mundial, holocausto…
Se não estamos em face de fenômenos estanques, por outro lado o andamento nacional ou regional não é redutível a reflexo condicionado do cenário internacional (a ordem dirigida pelas grandes potências), embora reflita as feições que o mundo vem tomando nas últimas décadas, com as crises siamesas do capitalismo, incapaz de resolver os problemas sociais por ele mesmo suscitados, e o descenso da hegemonia estadunidense, posta em questão pela emergência de uma Eurásia liderada por uma China que não se cansa de crescer.
Daí a guerra, saltando do plano dos bloqueios comerciais (a “guerra fria” contemporânea) para o confronto bélico direto (ainda quando valendo-se de interpostos exércitos), na Europa e no Oriente Médio, uma provável avant-premiére dos anos vindouros.
O avanço da extrema-direita amante do fascismo está sempre presente em momentos que tais.
A crise social foi o fermento que levou as massas marginalizadas ao nazismo nos anos 1930: os dados objetivos falam da ascensão de Hitler, Mussolini, Franco, Salazar e do império japonês, e nos falam da Segunda Guerra Mundial, redesenhando o mundo geográfico e político.
Mas a história não se repete como um decalque. Naquele então, a infâmia fascista se debateria com a resistência de aliança que juntou o ocidente capitalista à revolução soviética.
A derrota militar também ensejaria a consagração do keynesianismo e de Bretton Woods, da ilusão monetarista, mas também da URSS e dos comunistas, como movimento internacional de ideias com ambições revolucionárias.
É o mundo perdurante até pelo menos a vitória dos EUA ao final da Guerra Fria, e a debacle da URSS, dando fim à polaridade dos sistemas, ensejando a espíritos apressados a suposição de que havíamos chegado ao fim da história.
É preciso lembrar, porém, que o cenário de quase um século havia sido, em contraste com os dias da história presente, de resistência política e revolucionária, de organização progressista das massas e, principalmente, de confronto ideológico. Esse mundo parece em recesso.
Silenciamos a batalha ideológica. Na sequência, os governos de esquerda e centro-esquerda não lograram responder à crise do capitalismo, não acenaram às massas com a alternativa revolucionária e fracassaram no reformismo, isolados pela classe dominante.
Nenhuma reforma estrutural, por exemplo, o Brasil conseguiu, pela esquerda, levar a cabo a partir de 2003.
A esquerda tem-se limitado a administrar o capitalismo, prometendo atenuar os efeitos de seus graves males, e, assim, reformistas e revolucionários, nos tornamos tributários do moinho do establishment, do sistema e da ordem de opressão e repressão – o qual, em vez de derrogar, estamos empenhados em “humanizar”, por meio de políticas compensatórias às terríveis desigualdades impostas pela ditadura do “mercado”.
O movimento sindical, ademais de fragilizado pela revolução tecnológica, que requer cada vez mais capital e menos mão de obra, queda-se sem norte político e o projeto geral da centro-esquerda, no governo ou fora dele, se limita, no Brasil, ao máximo que seu ânimo permite: dar sustentação ao mandato (não exatamente ao governo) de Lula, que ainda não teve condições de apresentar ao povo um projeto alternativo ao que herdou, ditado pela casa-grande e as aspirações fascistas que dominam o pensamento da caserna e o grande capital.
Como sempre, a resposta das massas desempregadas e desesperançadas, dos trabalhadores a caminho do lumpesinato, divorciadas da esperança, faz cessar a capacidade de luta tanto dos trabalhadores sindicalizados quanto principalmente das massas desorganizadas, um dos grandes produtos do capitalismo up-to-date, o governo do grande capital.
Esta é a base do fascismo e da direita em geral. Ganha a ordem, base de sustentação do sistema de exploração do trabalho pelo capital.
Abrindo o caminho, a marcha dos revolucionários para o reformismo, e destes para a socialdemocracia; a direita se volta para a extrema-direita e logo salta o trampolim que leva ao fascismo.
Foi assim no século passado, caminho que de novo se palminha desde o final do século passado, desde que a Rússia revolucionária deixou de ser uma ideia, e as forças revolucionárias renunciaram à revolução.
A organização cede espaço à anomia. O combate ideológico cessa.
O mundo que emerge correndo para a terceira década do século XXI é o da insolvência dos grandes partidos populares, da recessão no combate ao capitalismo e, principalmente, é o mundo em que a esquerda renuncia à defesa do socialismo.
Mesmo o reformismo parece ensarilhar as armas diante do império da ordem conservadora, que de fato é a persistência do passado impedindo o parto do futuro sonhado.
O quadro internacional, por seu lado, não é fruto da vontade dos astros.
A aliança da direita com o protofascismo é a resposta necessária do sistema: não nos podem parecer estranhos os EUA de Trump e Biden, Israel da direita sionista, a Europa dominada pela direita e pela extrema-direita — apoiadas em manifestações populares — transformada em protetorado dos EUA.
Hoje, o continente foi reduzido ao papel de perigoso porta-aviões olhando para a China, destino que foi dado ao Japão, e pode ser imposto à Índia, pelos senhores da guerra.
A Argentina chega a Milei depois de o Brasil, em grave crise social, conhecer o protofascismo de Bolsonaro, de base popular e religiosa e gravíssimos vínculos militares.
Quanto mais me debruço sobre a tragédia argentina, mais reflito sobre o Brasil de hoje, reacionário pela sua formação, mas cujo caráter – a um tempo óbvio e sempre tentativamente ignorado – só veio a despertar as preocupações da esquerda orgânica, mesmo assim tateante, após os idos de junho de 2013, mais exatamente após o golpe de 2016 e seus desdobramentos, que chegam ao último 8 de janeiro.
Esses são os rumos que os tempos de hoje sopram, dando rumo às velas da nave em busca de rumo, como em busca de rumo persiste nosso mundo particular e poroso, porque dependente da tragédia geográfica, que nos faz, Brasil, Argentina e a América do Sul como um todo, reféns do grande império e sua política expansionista.
Argentina e Brasil (como Peru e Equador, como a América Latina de um modo geral) não constituem uma especificidade e na cola do impasse do capitalismo, em nosso país, o ponto mais assustador é o desfalecimento da esquerda, como pensamento, como ação, como resposta política ao descalabro capitalista, e assim deixamos de ser uma saída; permanece o beco fechado, sem sugerir alternativa.
Se esta jamais foi pensada no curto prazo, agora se queda desenganada mesmo no longo prazo. É a crise da utopia.
É uma pena que o PT, o melhor de nossa socialdemocracia, não tenha ainda compreendido o processo histórico em que navegamos, e que Lula (o melhor que pudemos produzir) se contente na ilusão de que a história terminou com sua vitória em 2022, e que sua missão, dele e do Partido, se encerra neste inédito 3º governo.
Arrebatado pelo prestígio popular de Lula, o povo, nas urnas, impediu a consolidação do projeto protofascista. Foi muito importante como conditio sine qua non para a recuperação da política, sem a qual não há política ou o que seja.
Há o que comemorar, pois, mas é fundamental não perder de vista que se trata de um ponto de partida.
A tarefa que se segue não é mais de fazer gorar o ovo da serpente, mas de esmagar a peçonha que sobrevive, forte e crescentemente perigosa. E, lembremos sempre, não só aqui.
Fala-se em “stress da democracia”, quando o mais apropriado seria (após a falência rotunda da socialdemocracia) discutir o relativo fracasso dos governos de centro e de centro-esquerda, incapazes de reverter as expectativas da crise social em nossos países – contaminados que se revelam, no governo, pelo discurso neoliberal que nos domina ideologicamente desde pelo menos o “consenso de Washington” e que se revivifica entre nós com a dobradinha BC-Fazenda.
A que se alia, pelo silêncio, o principal partido do governo e de nosso campo, embora se conheçam dissensos em Brasília e em São Paulo.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle)
Com a colaboração de Pedro Amaral
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Publicação de: Viomundo