Roberto Amaral: É preciso revisitar a História para não repeti-la
É preciso revisitar a História para não repeti-la
Por Roberto Amaral*
Éramos, naqueles distantes anos, alguns poucos alunos do Ginásio Agapito dos Santos, um centro de ensino impregnado de reacionarismo udenista.
De uma maneira geral filhos da classe dominante que amava o Brigadeiro Eduardo Gomes e odiava Getúlio Vargas, sempre apontado como ditador, e, então, também como corrupto.
Passáramos a semana ombro a ombro com os militantes da União da Juventude Comunista, realizando comícios-relâmpago pelos bairros de Fortaleza, reclamando a renúncia do presidente.
Os comunistas acusavam Getúlio de “agente do imperialismo”; nós, ainda sem definição ideológica, fôramos conquistados pela denúncia do “mar de lama” que correria nos porões do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, sede da Presidência.
Naquela quarta-feira, 24 de agosto de 1954, bem cedinho, iríamos fazer um comício no Abrigo Central, um ajuntamento de filas de ônibus em meio à Praça do Ferreira, onde tudo acontecia.
Foi aí, e só então, que um representante do Comitê estadual nos advertiu de que o Partido mudara de posição e nós deveríamos, doravante, denunciar o imperialismo como responsável pelo suicídio do presidente acuado.
Registro este fato afastado de qualquer intenção memorialista; seu intuito é assinalar o que deve ter ocorrido em todo o país, como consequência da insegurança de um comando político desafeito às lições da história e, por isso, condenado a repetir seus erros. Alguns são registrados a seguir.
Só muitos anos passados daquele agosto de 1954, na pesquisa para a coleção Textos políticos da história do Brasil (que assinei com Paulo Bonavides para as edições do Senado Federal, 2002) deparei-me com a edição do dia 24 de agosto da Imprensa popular, jornal do Comitê Central do PCB, que circulava no Rio de Janeiro.
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Na capa, gritava em letras garrafais: “Abaixo o governo de traição nacional de Vargas!”
No dia seguinte os jornais trariam fotos da explosão popular incendiando as viaturas dos jornais de direita (principalmente O Globo e Tribuna da Imprensa) e, no mesmo embalo, depredando as oficinas do jornal comunista.
No mesmo dia e nos dias seguintes, no Rio de Janeiro e em todo o país, as ruas e as praças foram ocupadas por grandes massas chorando a morte do “pai dos pobres”.
A bandeira de luta, naquele momento, era ditada pela carta-testamento deixada pelo suicida.
Esquecido das lições de Marx, o Comitê Central do PCB revelava-se despreparado para compreender a crise política brasileira, porque nada conseguia ver para além das aparências.
Discutia-se, desde sua fundação, o sentido da “Revolução Brasileira”. Sua trajetória revela ziguezagues doutrinários e práticos. Suas antecipações eram em regra contrariadas. De Prestes a Roberto Freire, o fim triste de uma expiação dolorosa, nossas direções primavam por brigar com o processo histórico.
Assim foi a tentativa de tomada de poder em 1935, reveladora de uma trágica mistura de voluntarismo, idealismo, descaso pela realidade e injustificado desconhecimento da terra e da gente cuja história pretendia conduzir.
Faz parte da história o registro do rotundo fracasso em que se converteu a tentativa de golpe de mão de 1935, levante militar sem apoio nas tropas e na população, cujas nefastas consequências para o movimento comunista são sentidas até hoje.
A repressão que se segue à insurgência fracassada não impediria, porém, o PCB de se associar ao varguismo quando o Brasil, finalmente, isto é, quando as cortinas do conflito já se iam fechando, decide apoiar os Aliados na guerra contra o Eixo.
O passado repressivo do governo tampouco impediria que o PCB voltasse a namorar com o ditador, uma vez mais confundindo as massas.
Refiro-me à sua adesão ao “queremismo”, movimento político que defendia a permanência de Vargas no poder.
O fracasso do continuísmo terminaria por antecipar o fim do Estado Novo, abrindo as portas para a redemocratização, as eleições de 1945 e a convocação da Constituinte de 1946.
Nos anos seguintes ao fim da guerra, o Partidão conhece seu fastígio como organização de massas, embalado pelas vitórias do Exército Vermelho e a ascensão da URSS, onde tinham sede, na burocracia do PCUS, as formulações doutrinárias e táticas que orientavam os comunistas e as esquerdas de um modo geral (de lá teriam vindo, entre outras, as ordens e instruções para o levante de 1935).
Nossa presença no “Paraíso”, porém, foi curta.
Já em 1946 seria desencadeada a campanha internacional contra os comunistas e assemelhados: a senha foi o discurso de Churchill em Fulton (EUA).
Em 1947 a bancada de parlamentares do PCB (Prestes à frente) teve os mandatos cassados, como cassado seria o registro mesmo do Partido, que submerge e adentra a plena clandestinidade. Luz do sol apenas no governo JK.
Os comunistas tentam responder pela esquerda ao avanço da repressão.
Lincoln Penna (em Manifestos políticos do Brasil contemporâneo. Editora E-papers) lembra o “Manifesto de Agosto de 1950”, com a proposta de um exército de libertação nacional, criação de sindicatos e entidades de classe paralelos, dividindo os trabalhadores.
Perseguidos, caçados, os comunistas se auto-excluem da vida política: “o partido entra totalmente no mais completo isolamento das massas”.
Em 1955, numa revisão objetiva de suas posições sectárias, volta a aproximar-se do varguismo e apoia as candidaturas de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, ex-ministro de Getúlio.
O PCB continuava de muda, caminhando de seca à meca como em meio a um labirinto ideológico, e em 1958 volta à política, nos termos permitidos pela lei e a vigilância adversa da caserna.
Passa a defender a democracia como projeto essencial e aposta na “conquista do poder” pela via eleitoral.
Ainda na ilegalidade, recupera sua notória influência na vida político-cultural, se infiltra nos partidos legais (legendas pelas quais seus quadros se candidatam) e seus jornais voltam a circular.
A legalidade formal, porém, só seria recuperada em 1985, no processo de redemocratização. Com o partido já bem mais franzino: grande parte de suas bases haviam sido atraídas pelo PT e pelo PDT de Leonel Brizola e, até, pelo MDB.
O insucesso da candidatura presidencial do Marechal Lott, em 1960, candidato a um tempo dos conservadores do PSD, do PCB e de todas as esquerdas, ensejara, porém, a eleição de João Goulart, seu vice, que quase em meio a uma revolução chegaria à presidência da República, quando da renúncia de Jânio Quadros.
O que se segue é história recente e consabida.
O país é empolgado pela reação civil ao golpe anunciado pelos ministros militares que vetavam a posse do vice-presidente constitucional.
A defesa da legalidade sobe ao altar cívico como princípio, e a ascensão do povo como sujeito histórico transforma-se em axioma.
O governo João Goulart, de onde as esquerdas viam o poder ao contemplar o horizonte, levou o PCB a rever os conceitos e as estratégias da Revolução Brasileira.
A expectativa de chegada ao poder, transforma-se em certeza iminente.
Nossas esquerdas estão em festa e as avaliações anteriores do processo histórico brasileiro são postas em reserva, a começar pelas ilusões revolucionárias tout court.
A opção é co-governar com a “burguesia nacional”, e a confrontação defendida pelos projetos anteriores é substituída pela tática da infiltração no governo, disputando espaços com os donos do poder.
Depois dos trabalhadores, agora eram os comunistas que julgavam “haver chegado ao Paraíso”.
E no “Paraíso” não havia espaço para inquietações estratégicas, e muito menos dúvidas táticas: o caráter da Revolução Brasileira, vista como ente autônomo, era nacional-democrática, e se realizaria por dentro do sistema.
As forças armadas – conhecidas pelo seu reiterado apetite pelo poder civil – eram, então, e para facilitar a arrumação das pedras no tabuleiro, apontadas como arraigadamente democráticas: constituída sua oficialidade por filhos da classe média, eram nacionalistas e legalistas, e a burguesia nacional, nossa inimiga de classe, entrara em contradição com o capital internacional. Seria, pois, nossa aliada.
O inimigo não era o capital como um todo, mas o imperialismo.
O nacionalismo voltaria a ser o ponto de aglutinação das massas, como fôra décadas passadas, na luta d’O petróleo é nosso, que juntara estudantes, militares e empresários.
O processo social, porém, não ouviu os adivinhos, e escreveu seu próprio roteiro, que compreendeu golpes de Estado, ditadura militar e a aliança do grande capital com a caserna.
No PCB, os mais ortodoxos e sectários – valho-me de expressões de Lincoln Pena – perderiam a batalha com os reformistas e conciliadores.
A luta que deveria ser travada na sociedade abrigou-se dentro das organizações, e assim se iniciam as diásporas.
O Partido se esvai gota a gota, até a inexpressividade atual do movimento comunista brasileiro.
Um mundo de certezas idealistas impedira as esquerdas de conhecer a realidade.
Com o golpe de 1964, que tanto surpreendeu as esquerdas de um modo geral e os comunistas orgânicos em particular, o Partidão, que já sofrera a crise de 1956, caminha para final melancólico.
A pá de cal foi o 10º Congresso (1992), com a transição-para a contrafação intitulada PPS.
Não há mais um núcleo produtor de reflexões, que Antônio Houaiss chamava de “centro de pensação”.
Não há a “linha certa” nem a linha guia, não há mais um Partido orientando a militância.
Multiplicam-se as organizações revolucionárias e a luta armada (1968-1974) se apresenta como a opção de setores inquietos com nossa fragilidade coletiva no enfrentamento da ditadura.
As esquerdas se dispersam em inúmeras visões da “revolução brasileira”, até cair em plena inação.
Sem a devida análise crítica do que haviam sido os últimos tempos, o que ainda se podia chamar de esquerda ortodoxa se volta, uma vez mais, para o combate na arena da legalidade.
A militância, porém, permanece sem azimute. Os grandes chamamentos à população são reivindicações políticas: a luta pela Anistia e o movimento pelas Diretas Já.
Com as variáveis que o processo histórico estabelece, são essas, mutatis mutandis, as condições da luta presente, que ensejou a resistência legal e parlamentar e a reconquista democrática, nos termos negociados com os ditadores.
Vencido o eclipse democrático, permanecíamos, porém, distantes das transformações estruturais.
Tentaríamos ser reformistas em governos partilhados com foças reacionárias, para os quais as esquerdas conclamavam o apoio dos trabalhadores, que, todavia, permaneceriam à margem do poder.
Eis a Realpolitik que chega até aqui: voltar aos idos democráticos e sociais anteriores a 1964.
Se nos idos de 1961-1964 o processo social conduzia para as reformas sociais, nas circunstâncias de hoje a defesa da democracia torna-se essencial.
Impotente diante dos problemas do povo, a democracia política permite a organização dos trabalhadores e de seus partidos.
Fez-se necessária a funesta emergência do bolsonarismo para que nos déssemos conta da realidade que temíamos descobrir.
A investida da extrema-direita internacional (o que se assiste no Brasil é uma parte deste todo) é tocada junto às massas, de há muito abandonadas pelo conjunto das esquerdas e das forças progressistas. Que os processos eleitorais de 2018 e 2022 sejam sempre lembrados.
Nossa acertada opção pela via legal, mesmo esta imposta pela ditadura burguesa, levou as esquerdas a se deixarem iludir em face de algumas vitórias eleitorais, significativas, como as eleições de Lula e Dilma, mas que, no entanto, não abriram o caminho das reformas estruturais, como não pode abrir o atual governo, condicionado por uma correlação de forças perigosamente adversa.
Movidos pelo imediatismo eleitoral, expungimos do discurso eleitoral as teses fundamentais do socialismo, que deixamos de defender, tanto quanto nos esquecemos da crítica ao capitalismo.
Fruto de inumeráveis erros, mas no essencial resultado de nossas dificuldades de compreender o significado da Revolução Brasileira, permanece intocado (presentemente ainda mais fortalecido) o controle do poder pelas forças tradicionais do grande capital. Neste sentido não há avanços a comemorar.
Permanece a correlação de forças do conservadorismo dirigindo o sistema, no que ele tem de fundamental para seus interesses.
E, para a frente, na medida em que o presente ajuda a ver o futuro, esse quadro tende a agravar-se, com a exacerbação da crise do trabalho e a iminência, no plano internacional, da crise da hegemonia do imperialismo, cujo desfecho pode ser um conflito militar de assustadoras proporções.
No plano interno os interesses da chamada extrema-direita não se opõem aos interesses da direita “civilizada”, e todos se encontram na defesa do sistema capitalista, pois, para a classe dominante, a questão democrática é, em essência, secundária, quando os negócios do grande capital são respeitados, como são entre nós, hoje e desde sempre.
Revisitar a História não é apenas um método científico à disposição do estrategista: é o melhor caminho para quem não deseja repetir erros.
E pur si muove – Em cenário político no mínimo inquietante, a semana que finda trouxe alento.
Os protestos das mulheres contra a Lei do Estuprador ganharam as ruas e redes, romperam a bolha do progressismo de classe-média e abespinharam o capo da Câmara dos Deputados.
A bancada do atraso (o conluio entre o Talibã tropical, mercenário e falso de fio a pavio, e o velho Centrão de insuperável fisiologismo), por ele regida, encontra hoje dificuldade para fazer avançar a PEC da privatização das praias, bem como a anistia aos partidos políticos que deixaram de cumprir as cotas para indígenas, negros e mulheres.
Ainda forte, o rolo compressor topou, nos últimos dias, com a reação da sociedade, que lhe impôs um recuo tático.
A indignação feminina atualizou importante lição do velho barbudo, segundo a qual, na dúvida entre a teoria e a prática, devemos sempre apostar na segunda. Sem medo.
Luz nas trevas – Enquanto, na Casa do Povo, Sansão reage ao ver podadas suas mechas (ruminado sua vingança), no Planalto o presidente Lula se vê fortalecido – pela primeira vez desde que assumiu o terceiro mandato.
Pesquisas indicam que sua aprovação parou de cair e agora se descola da desaprovação, com a qual vinha empatando. O desemprego recua, e Boulos aparece liderando – com folga – a disputa na capital paulista, o que não é pouco.
Nessas condições, o presidente sobe o tom e desanca o oportunista comandante do BC (para aflição de 9 entre 10 comentaristas da nossa altiva imprensa profissional), e freia o ímpeto de seus próprios auxiliares por exterminar os pisos da Saúde e da Educação – assim fazendo valer a própria razão de ser do Partido dos Trabalhadores.
Há, pois, motivos para um cauteloso otimismo: a semana mostrou às esquerdas, e aos progressistas em geral, que há vida para além do pragmatismo acuado.
Independente de quem? – Porta-vozes da ciranda financeira afirmam que o Copom resolveu manter a Selic como está (decisão aplaudida pelo “mercado”, que o povo não tem razão para comemorar) em resposta às críticas de Lula ao neto de Roberto Campos (que os jornalões, condoídos, batizaram de “ataques”).
Mas as decisões do BC não seriam “técnicas”? É essa a “independência” que as empresas de notícias apregoam?
Frustração – Confiados na sua proverbial habilidade política, contava-se que, com a nomeação do ministro-chefe da SECOM para Secretaria Extraordinária para a Reconstrução do RS, o presidente Lula mataria dois coelhos de uma só cajadada. Não foi o que se viu.
Quo vadis? – Faria bem o inexcedível Dias Toffoli em esclarecer a si mesmo e à sociedade o que pretendeu com seu voto referente à descriminalização do porte de drogas, obscurecido por uma fatigante lengalenga de rábula. O medalhão quis, mesmo, como deu a entender, reafirmar o racismo que denunciou?
Chomsky – Vida longa para o grande filósofo. Alegria tê-lo conosco em franca recuperação.
*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).
*Com a colaboração de Pedro Amaral.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo