Pedro Carvalhaes: O lançamento de uma flor de lótus, “O Lodo”, de Helvécio Ratton

Por Pedro Carvalhaes*, especial para o Viomundo

Diz-se, na mítica budista, que a flor de lótus, símbolo maior da pureza e da mente que alcançou o Nirvana, nasce do lodo, matéria curiosamente impura.

É a metáfora para ilustrar a moral do credo oriental, segundo o qual a iluminação que conduz a um estado de paz mental necessariamente decorre dos sofrimentos, qual a flor de lótus nasce do lodaçal.

“O Lodo”, o mais recente filme do cineasta mineiro Helvécio Ratton, que estreou dia 13 de abril nos cinemas brasileiros, não trata de filosofia ou religião, mas sim de psicanálise — incluindo aí as zonas de congruência entre a mesma e essas suas primas mais velhas.

Psicólogo de formação, e estreante como diretor, nos anos 70, em “Em Nome da Razão” (documentário-denúncia sobre as atrocidades da cultural manicomial, no Hospício de Barbacena), Ratton pisa num terreno que não lhe é estranho, utilizando como mapa o estranhíssimo universo fantástico do escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991), autor do conto do qual o longa é magistralmente adaptado.

Na trama, Manfredo, funcionário de uma companhia de seguros vivente de uma vida mediana e neurótica, em Belo Horizonte, decide procurar pelo psiquiatra Doutor Pink.

Instado pelo pitoresco médico a revisitar seu passado, que desperta instantaneamente no paciente a culpa católica tão tradicionalmente mineira, Manfredo resolve abandonar o tratamento, ignorando o alerta de Pink: a presença, dentro de si, de um enorme lodaçal, responsável por sua depressão.

Talvez numa metáfora sobre a impossibilidade de se fugir de si mesmo e das mazelas que afligem a mente, Pink e sua secretária passam a perseguir Manfredo de diversas formas.

Desde insistentes ligações telefônicas, emboscadas ao paciente na rua e até mesmo nos seus sonhos, quando a fronteira que divide a realidade e o delírio, ou a neurose e a psicose, são rompidas, tornando a trama um intrigante e cômico thriller, que faz jus não apenas à literatura fantástica de Rubião, como também à ficção de mestres como Edgar Allan Poe e Kafka.

Em sua surreal fuga do psiquiatra e do enfrentamento de seus recalques, Manfredo chega inclusive a ser processado para pagar pelo tratamento que dispensou — numa cena de julgamento que só não soa ainda mais deliciosamente absurda em função da realidade ter “brindado” o Brasil com a Lava Jato e suas condenações sem provas e sem jurisdição.

Do ponto de vista técnico, a produção é impecável. Tudo contribui para que a obra proporcione uma experiência cinematográfica da melhor qualidade — e para que, desde já, figure entre os melhores filmes do seu realizador.

Absolutamente tudo encanta: do roteiro (preciso, rico e envolvente) assinado por Ratton e L.G. Bayão às interpretações (espirituosas e minimalistas) dos atores do consagrado Grupo Galpão, passando pela fotografia soturna e a montagem afiada, até a direção experiente e segura do diretor mineiro.

Não obstante, por ironia do destino, para chegar aos cinemas a produção passou por percalços tão surreais quanto os enfrentados por seu protagonista.

Da pandemia (que coincidentemente fez explodir a busca por saúde mental entre a população, e acabou levando a uma demora de quase 3 anos para o lançamento da obra) ao desmonte da Cultura por Temer e a perseguição do governo Bolsonaro ao audiovisual nacional — num enredo que nem Murilo Rubião poderia imaginar, e tampouco Freud explicar.

De todo modo, ao fim e ao cabo, o lançamento de uma flor de lótus como “O Lodo”, após o verdadeiro lodaçal que tomou conta do setor cultural brasileiro nos últimos anos, não deixa de soar como um prenúncio de que um caminho mais iluminado está se apresentando para a nossa economia criativa.

Como na ficção, talvez Bolsonaro e o bolsonarismo tenham sido o lodo que o Brasil e os brasileiros precisaram revisitar na vida real para extirpar suas subjetividades mais recônditas e imorais, rumo à cura de uma antiga e aflitiva neurose, qual o protagonista do novo filme de Helvécio Ratton.

*Pedro Carvalhaes, graduado em Direito pela UFMG, é roteirista.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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