Paulo Kliass: Juros e austeridade fiscal
Juros e austeridade fiscal
Por Paulo Kliass*
O Banco Central (BC) divulgou no dia 31 de outubro as informações relativas ao desempenho fiscal do governo para o mês de setembro.
O material oferece um conjunto amplo de dados estatísticos a respeito da situação das contas públicas do governo federal, com foco em sua dimensão monetária e financeira.
A identificação do quadro mais geral apresentado pelo documento Estatísticas Fiscais – Nota à Imprensa reafirma a preocupação que devemos ter com as avaliações que os grandes meios de comunicação sempre reproduzem a respeito da tal da “responsabilidade fiscal”.
Os propagandistas da falácia da austeridade fiscal na grande imprensa costumam chamar a atenção para aquilo que qualificam malandramente de “gastança governamental”.
No entanto, o detalhe é que eles se referem tão somente aos gastos primários. Assim ficam de fora desta contabilidade muito peculiar, sempre tão ao agrado do povo do financismo, todas as despesas orçamentárias de natureza financeira.
Esse raciocínio tautológico só fica de pé em razão de uma definição metodológica muito peculiar: os dispêndios classificados como “primários” incluem apenas as rubricas não-financeiras. Neste conjunto, portanto, estão itens como previdência social, educação, saúde, assistência social, salários de servidores, segurança pública etc. Mas ficam de fora deste cálculo todas as despesas realizadas com o pagamento de juros da dívida pública.
Esta distorção vem sendo mantida desde a década de 1980, quando houve um longo processo de crise das dívidas externas dos países do então chamado Terceiro Mundo. Deu-se um longo processo de renegociação das mesmas sob a coordenação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Tesouro dos EUA, em um período já marcado pela vigência dos primeiros traços daquilo que viria a ser chamado de Consenso de Washington.
Assim, nas novas regras para as dívidas que vinham sendo reestruturadas, foi introduzida a cláusula de que os governos assumiriam um compromisso efetivo com a geração de “superávit fiscal primário”. A intenção era assegurar que uma parcela do resultado das contas públicas fosse canalizada diretamente para o pagamento das obrigações com o endividamento público externo.
Juros da dívida: distorção regressiva
No caso brasileiro, em particular, esta diretriz estratégica tornou-se uma orientação generalizada de conduta de política econômica.
Os sucessivos governos passaram a se preocupar com a obtenção de superávit primário e o conceito foi, inclusive, introduzido com uma exigência na Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000 e está presente também no Novo Arcabouço Fiscal (lei complementar 200/23) , o chamado Teto do Haddad que substituiu o Teto de Gastos do Temer.
Apoie o VIOMUNDO
Uma das consequências mais perversas desse tipo de orientação foi o aprofundamento do processo de financeirização de nossa economia, bem como das finanças públicas brasileiras. Pouco a pouco, as despesas primárias foram sendo reduzidas em termos relativos e as despesas financeiras foram crescendo e ganhando importância no conjunto da execução orçamentária.
Esse movimento colocou de ponta cabeça a lógica de priorização das despesas de natureza social e de estímulo aos investimentos públicos. A limitação do gasto em políticas públicas voltadas à maioria da população abriu o caminho para a privatização dos serviços públicos. Por outro lado, a ausência de limites legais para os dispêndios financeiros fez com que as contas de pagamento de juros se convertessem naquelas que apresentam a maior contribuição deficitária para a contabilidade pública de nosso País.
Ao longo de setembro recente, o governo gastou R$ 85 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Apesar de não se caracterizar como o mês de maior valor pago para esta rubrica, o total acumulado dos últimos 12 meses marca, este sim, um recorde e atingiu a marca de R$ 985 bi. O montante equivale a 7,9% do PIB. Uma loucura!
Apesar da evidência de tal regressividade na aplicação dos recursos públicos, a equipe comandada por Fenando Haddad segue com sua injustificável obsessão com as metas de austericídio fiscal. Além de provocar enorme desgaste político para o governo do Presidente Lula, o ministro da Fazenda insiste em sua saga de efetuar cortes e mais cortes exclusivamente nos programas de políticas sociais voltados à maioria da população.
Austeridade no social e liberou geral pro financismo
Para além dos condicionantes derivados do Novo Arcabouço Fiscal (NAF) que ele mesmo elaborou e apresentou ao seu chefe logo no início do terceiro mandato, Haddad confere um toque de sofisticação de maldades.
Não satisfeito em ter de cumprir as regras do NAF, ele mesmo se propõe a atingir uma meta suicida em termos de resultado fiscal primário. Ao se propor a buscar o equilíbrio entre receitas e despesas orçamentárias para 2025, ele mesmo obriga o próprio governo a efetuar cortes e mais cortes em todas as despesas que não sejam os juros.
O elemento trágico nesse processo é que o déficit fiscal permanece em níveis trilionários, uma vez que o cálculo que interessa em termos macroeconômicos é o “déficit nominal”, que engloba o conjunto das despesas – incluindo o montante relativo aos juros. Segundo o relatório do BC, esse número atingiu em setembro R$ 1,02 trilhão para os últimos 12 meses. Isso representa 8,2% do PIB.
Apesar da evidente desproporção entre os valores de despesa primária e as financeiras, Haddad permanece obstinado em cortar na área social. Os exemplos mais recentes são as reduções no Benefício de Prestação Continuada (BPC), as dificuldades impostas para o recebimento das prestações vinculadas ao auxílio-doença do INSS, o ataque ao seguro defeso dos trabalhadores que vivem da pesca, entre tantos outros.
Além disso, permanecem os malabarismos contábeis para reduzir os pisos constitucionais de saúde e educação, a exemplo do que ocorreu com a recente inclusão das despesas do Programa Pé de Meia na rubrica da educação, quando sempre foi tratado como sendo da esfera da assistência social. Até a própria União Nacional dos Estudantes (UNE) denunciou a manobra.
O fato é que desde novembro de 2024 até agora o volume acumulado de 12 meses das despesas com juros da dívida superou o patamar dos R$ 900 bi e se aproxima perigosamente da marca de um trilhão de reais.
Com a manutenção da taxa SELIC em 15% desde junho de 2025 e o crescimento permanente do estoque da dívida pública, a tendência é de que permaneça esse aumento contínuo nas despesas com juros.
Brasil – Despesas com Juros em 12 meses.
(em R$ bilhões- jan/24 a set/25)

Assim, o que se percebe é uma espécie de “normalização” do novo patamar anual de gastos orçamentários com o pagamento de juros da dívida pública. Trata-se de mais um fenômeno de acomodação a fenômenos trágicos e portadores de elevado grau de desigualdade social e econômica em nosso País.
Assim como ocorria com a permanência por longos períodos com elevadas taxas de crescimento dos preços, observa-se mais recentemente o comprometimento de fatias enormes do fundo público com dispêndios destinados aos setores do topo da pirâmide da concentração de renda e patrimônio.
A “normalização” da tragédia
Tudo se passava antes do Plano Real em 1994 como se a sociedade brasileira estivesse viciada e dependente da convivência com taxas muito elevadas ou mesmo com a hiperinflação.
Já nos tempos atuais, a “naturalização” de desvio dos valores do Orçamento para esse tipo de dispêndio regressivo é algo que se assemelha a uma patologia desfuncional.
Enfim, uma distorção que atende muito bem aos interesses de uma minoria privilegiada e que obriga a grande maioria da sociedade a oferecer a sua “contribuição” para esse mecanismo perverso de apropriação privada dos recursos públicos.
Brasil – Despesas anuais com juros – % do PIB
(1997 a 2025 e linha de tendência)

É urgente a mudança nas definições legais e institucionais que permitem este absurdo. Afinal, os números são realmente alarmantes.
Desde que a série elaborada pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) começou a coletar as informações estatísticas a esse respeito, o comprometimento do orçamento para pagamento de juros só fez crescer. De janeiro de 1997 a setembro de 2025 esse montante chegou a R$ 11,5 trilhões, a valores atualizados.
*Paulo Kliass é doutor em Economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Leia também
Paulo Kliass: Juros e cada vez mais juros
Paulo Kliass: Juros do trilhão
Publicação de: Viomundo
