‘O jornalista sindical é um megafone, um instrumento de quem tem a voz silenciada’

Âncora do programa Democracia no Ar, na rádio Atitude Popular, de Fortaleza, durante 5 anos, a carioca Marina Valente virou uma espécie de celebridade das causas populares no Ceará. Encerrando um ciclo em junho deste ano, decidiu encarar novos desafios, como a realização de um podcast. Neta de militantes comunistas, transformou-se em ativista em muitas frentes. No seu programa, ela rompia com o figurino da sisudez e deixava fluir o seu humor para tratar de temas da política nacional. Não é algo exatamente comum e lhe rendeu críticas que, bem humoradamente, tirou de letra.

A jornalista e radialista também ousou ao fundar uma agência especializada no atendimento dos sindicatos de trabalhadores e que acabou virando uma experiência muito interessante de comunicação sindical. Dona Megafone, apelido que carrega desde os tempos da faculdade de Jornalismo e que batizou o seu blog, conversou com o Brasil de Fato sobre um pouco de tudo. Contou desde as atribulações de sua vida, os percalços da militância estudantil, a necessidade de usar a alegria para se comunicar com o povo e suas ideias sobre os rumos do jornalismo do campo democrático-popular. Confira:

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Brasil de Fato RS: Conta pra gente um pouco da tua história e como que foi a chegada na comunicação sindical?

Marina Valente: A vida da minha família sempre foi muito ligada à questão política, uma consciência trabalhista e de classe muito forte. Uma das memórias da minha infância é a gente jantando e meu avô comentando política no horário do Jornal Nacional. Meus dois avôs foram militantes, um foi liderança sindical, o outro lutou contra a ditadura Vargas. Foi preso duas vezes na era Vargas, no Rio de Janeiro, inclusive era muito novo. Na primeira vez, foi detido porque estava sem documento, quando saiu da cadeia foi se manifestar contra ter sido preso sem documento e foi preso de novo. O pai do meu padrasto era amigo pessoal de [Luiz Carlos] Prestes. Foi liderança bancária no Rio. Trazia gente das ditaduras da América Latina, escondia no sótão, enviava essas pessoas pra Rússia. Essa vivência familiar me fez ter uma visão política. Também a escolha por um colégio montessoriano, o Centro Educacional Anísio Teixeira, no Rio.

Meu avô materno era filho de pescador da região de Maricá, já na parte do meu pai tem uma questão indígena muito forte, eu tenho tia-avó índia mesmo. É uma misturada muito grande que sempre me fez ter uma visão social muito forte.

Na época do Fora Collor eu era tipo um mascotezinha do grêmio secundarista. Meu colégio ficava no alto de Santa Tereza, que é um morro no Rio, e descia arrastando os outros colégios. Eu fazia os cartazes e, quando terminava, passava de sala em sala batendo nas portas. Aí o grêmio assumia a manifestação. Ficava vendo aquilo agoniada porque era a única que não tinha liberação pra ir na passeata. Era muito pequena.

Que idade tinhas?

Uns 12 ou 13 anos. Ficava indignada. Depois que o [presidente Fernando] Collor caiu, continuei ajudando o grêmio. Aí já eram os caras pintada junto com os caras enrugadas contra os caras de pau. Era uma manifestação em favor da Previdência e, nessa, minha mãe deu a liberação pra eu ir. Era da equipe de segurança, muito baixinha, fazendo cordão de isolamento.

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A gente ia a pé pro Centro, pulando catraca no metrô e arrastando os colégios todos. Na avenida Rio Branco, a gente chegou com atraso e o carro de som começou a berrar ‘são os estudantes do Brasil, eles vieram, eles não nos abandonaram, eles chegaram’. Achavam que o movimento estudantil não ia chegar a tempo e chegamos com aquela quantidade enorme de colégios. No que a gente correu em direção às pessoas, os aposentados correram em direção da gente. E, no que eles correram, um senhor de idade botou a mão no meu rosto e falou assim: ‘Muito obrigado, minha filha, vocês vieram’. Quando me soltou, ele me soltou com um peso de um país nas costas.

Começou a cair a ficha do que aquilo representava. Bateram uma foto minha pro jornal enxugando o suor da cara com a bandeira e na legenda ‘Estudante chora na bandeira’. Eu não tinha chorado na bandeira. Não tinha palavra ou conjunto delas que, em determinado momento, consiga pegar o coração de uma pessoa e fazer com que a outra sinta exatamente aquilo que ela está sentindo. Além do mais, as pessoas usam as palavras para qualquer coisa. Inclusive no movimento sindical, as vezes você vê um jornal escrito ‘Greve da categoria para’, como se tivesse sido uma coisa gigante, mas aquilo não foi a realidade…


A jornalista e radialista criou a agência Metamorfose, especializada no atendimento dos sindicatos de trabalhadores e que virou referência / Foto: Esdras Gomes

Acaba trazendo um descrédito…

Total, as pessoas não acreditam. A gente vive num mundo hoje em que as pessoas não acreditam no ‘eu te amo’. Não acreditam quando alguém diz pro outro ‘eu estou com você’. O que sinto quando estou na luta pelo meu povo, o que é empenhar a nossa vida, nossa credibilidade, nossa fé, nossa existência para ajudar pessoas que, às vezes, não conseguem nem expressar minimamente a dor que sofrem.

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Dizem que ‘tem que ensinar a pescar’… Cara, quem tem fome não levanta a cabeça do chão, como vai pescar alguma coisa? Me fazer de vetor para dar voz para essas pessoas, ser instrumento mesmo, é isso que acho que é um jornalista sindical. Ele é como se fosse um megafone, um amplificador, um instrumento de quem tem a voz silenciada, quem tem dificuldade de verbalizar suas dores, e potencializar isso de forma que a sociedade escute. Aí é que a comunicação se misturou com a minha vida política. E isso depois se aprofundou. Fui dirigente da UNE, fui casar com um comunista que conheci num Congresso da UNE, e a gente fundou a (agência de notícias sindicais) Metamorfose Comunicação.

Conta sobre o trabalho de vocês no Ceará.

Eu tinha um marido, que é o pai da minha filha. Tivemos uma história difícil. Ele era uma pessoa difícil, mas sempre fui uma carpinteira do universo. Achava que eu ia salvar. A gente se separou. Saí de casa pra viver com ele quando ainda era menor de idade, 17 anos, e fui morar nas favelas do Rio. Foi um período em que vivi muita coisa. Descobri que, às vezes, a gente romantiza coisas. Romantiza o movimento, romantiza a luta dos trabalhadores. A favela é brutal. A academia tem uma visão muito romântica da luta dos trabalhadores. A luta por sobrevivência é uma luta instintiva. É como a natureza e a natureza é bruta. E aí me separo e venho pro Ceará.

Minha mãe veio morar aqui com a minha irmã e meu padrasto. Entrei pra primeira faculdade que abriu curso naquele momento e comecei a estudar Jornalismo. Logo, já estava fazendo movimento estudantil, estava fazendo parte do diretório acadêmico, daí já estava indo pra um Congresso da UNE. Levava minha filha pra faculdade pra ter aula comigo. Conheci o Esdras [Gomes], que é meu marido naquele período, já organizando uma calourada. Foi muito difícil ser diretora da UNE e mãe.

As pessoas diziam ‘Você é mãe’. Também diziam que eu ria muito. Tem até hoje a ideia de que o movimento tem que ser uma coisa séria. Uma vez um dirigente falou pra mim ‘Marina, eu gosto muito de você, adoro sua risada, mas você ri muito, você tem que ter uma postura mais de vice-presidente’. Olhei pra cara dele e falei assim: ‘Lascou, cara. É justamente por eu ter alegria de vida que sou comunista’. E aí outra dirigente já do partido virou para ele e falou: ‘Eu e o deputado Chico Lopes vamos ser expulsos porque ele fica na reunião inteira rindo o tempo todo’.

Quando fui apresentar o programa de rádio onde eu brinco, trago o humor na política, muita gente criticou. Fez queixa de que tinha que ser uma coisa mais séria como uma rádio AM. Eu sempre disse: ‘Não, a gente sempre usou do humor, desde que chegou a família imperial já se fazia piada com a política. Vem da relação política no Brasil, política é afetividade, luta é afetividade, luta é alegria’. Temos que parar com essa mania de achar que trabalho é sofrer.

Primeiro de Maio no Ceará antes era show. Agora, o povo bota, na periferia mais sofrida, um carro de som na porta do cara às 7 horas da manhã com dirigente sindical discursando. Começa a discursar aqui e acaba acolá porque o carro vai andando e as pessoas nem acompanham o que está sendo dito. Temos que aprender. Faz um carnaval, um sambão, vamos celebrar o Primeiro de Maio. Vamos discutir as coisas sérias, mas fazer isso com alegria.

Quando me formei, falei assim: ‘Não quero trabalhar numa grande agência, eu quero fazer comunicação de trabalhadores’. Fiz a minha monografia sobre a comunicação sindical metalúrgica na distensão militar no estado do Ceará.


“A gente sempre usou do humor, desde que chegou a família imperial já se fazia piada com a política”, defende Marina / Foto: Esdras Gomes

Tem uns documentos muito legais que o (sindicalista Francisco) Lira, que faleceu recentemente, me arrumou. Tem histórias fantásticas desse dirigente sindical indo buscar o Lula no aeroporto de bicicleta. Foram amigos pessoais por toda a vida. A greve aqui era o Lira e o Guerreiro, este um dirigente comunista, enquanto o Lira era ligado ao Partido dos Trabalhadores. Eles seguraram a greve dos metalúrgicos no Ceará.

O Esdras parou a faculdade de Filosofia que fazia e foi fazer Jornalismo pra me ajudar. A gente forma a Metamorfose. Primeiro, ela tem uma agência no centro de Fortaleza. Os primeiros clientes que tive foram o Sindicato da Alimentação que cuidava das castanheiras, e depois o sindicato do pessoal da limpeza pública. E aí veio a Fetrace, Federação dos Trabalhadores do Setor de Comércio e Serviço. Por aqui também passou o Sindicato dos Gráficos. Passou muito do movimento sindical cearense na história da Metamorfose. Gerações de estudantes, hoje trabalhando em grandes jornais, passaram pela Meta.

Como o rádio entra na tua vida?

Nunca pensei em trabalhar em rádio. Começou na época em um programa na TV pública, era repórter do programa. Passou esse tempo e foi fundado um movimento de rádio já para a luta contra o golpe, já vendo a questão da movimentação da derrubada da Dilma. Foi criado um movimento pluripartidário para criar essa rádio. Entrevistamos muitas personalidades, tipo José Dirceu, Gleisi Hoffmann, José Genoíno, João Pedro Stedile.

Esse programa acabou sendo transmitido pelas rádios do MST aqui no estado. Durante um período, eu não apresentava apenas na rádio Atitude Popular, mas também na rádio da Fetrace, a Classista. Apresentava um programa semanal de caráter feminista. Era uma experiência em que a gente trazia música, trazia mulheres para conversar de vivência de lutas e tal.

As pessoas foram reconhecendo esse trabalho ao ponto de vincular muito fortemente a imagem da Marina como apresentadora de um programa do movimento popular. Tenho um apelido que vem da época de blog ainda, de faculdade, que é Dona Megafone. As pessoas brincam com isso. Aí me encontram na rua e tem uma coisa meio celebridade do campo progressista em pequena escala, local. É muito legal esse carinho também.

Qual é a importância da comunicação sindical hoje? Porque a comunicação sindical já teve um papel fundamental em vários momentos da história do Brasil desde lá do século 19, a comunicação anarquista, com jornais diários. Tivemos jornais diários também no movimento sindical em São Paulo, bancários, metalúrgicos inclusive, mas com os vários problemas que os sindicatos tiveram, principalmente depois da reforma trabalhista, a comunicação meio que também sofreu um baque…

Sofreu um baque, mas também sofre de uma falta de prioridade, porque muito dirigente sindical não abre mão de sua ajuda de custo. Continua recebendo ajuda de custo mesmo com a reforma trabalhista. E houve entidades que nem esperaram a reforma trabalhista para demitir ou pejotizar os seus jornalistas.

São umas prioridades tortas. Você vê entidades que não têm uma câmera, mas o dirigente sindical tem um celular de última geração, enquanto o jornalista dele não tem pra fazer a cobertura. Do que você precisa? Precisa de um projeto de comunicação.

Tem muitas coisas erradas como, por exemplo, querer fazer 20 meios de comunicação, criar uma TV, criar uma rádio, fazer um jornal, se não vou contratar profissionais para dar conta. Temos que ter noção do nosso tamanho para depois pensar em outra coisa. Existe um erro muito grande de estratégia.

A comunicação é a base fundante da luta dos trabalhadores. Quando você fala dos jornais anarquistas, que eram muitos, cada pequena fazenda desse país que tinha agricultores vindos da Europa, da Itália, tinha um jornal, e os caras faziam era na mão. E por que isso? Porque o jornal, para nós do campo progressista, é o organizador do partido, é o órgão central da luta. O jornal sindical é história viva. Vai ficar.

O Brasil de Fato vai ficar porque ali está a história viva da classe trabalhadora. Então, ou a gente entende isso como fundação organizativa da classe trabalhadora ou vai ser puxadinho. E o que a gente vê é isso: uma quantidade enorme de puxadinhos. Tem que investir, tem que acreditar, tem que teorizar, porque prática sem teoria não existe. Entender que a nossa teoria própria é muito boa.

Tanto que a extrema direita está copiando.

Copia, aprende, fazem curso sobre nós. Inclusive eu brinco: se a gente fizesse tudo o que eles acham que a gente faz, a gente estava bem demais. Mas a gente não estuda, não teoriza e fica repetindo coisa que vem de uma academia do capital. Sou defensora do diploma, mas a nossa academia não precisa só pautar as teorias do capital.

Uma das coisas que acho absurda é a ideia dos apocalípticos integrados. Que poder de controle remoto tem uma dona de casa com três meninos, doméstica, tendo que cuidar do trabalho de que saiu, fazer a janta, com um marido machistão sentado no sofá vendo na TV a porcaria que quer ver? Descabelada, cansada, exausta? Ela quer a babá eletrônica. É a única opção que tem. Mesmo que fosse uma mulher muito consciente, que tivesse tempo pra pensar…

No Ceará, se você trocar na hora do almoço de um canal de TV pra outro, o que vai ver é programa policial, programa policial, programa policial. Ela não tem opção. Às vezes, pode botar numa TV Cultura da vida. O formato é chato pra caramba que ninguém aguenta. A gente tem que aprender a fazer as coisas para atrair as pessoas.

Sabe quem faz isso muito bem e tá pegando uma juventude enorme? Dorama, as séries chinesas baseadas nas ideias comunistas. Você não diz que o cara está falando de comunismo ali no meio, mas, de repente, num belo episódio daquele love romântico, água com açúcar igual a novela mexicana, um cara vira pra uma mulher e diz assim: ‘Mas você está tratando mal essa mulher. Isso não é revolucionário da sua parte’. Dá uma lição de moral na mulher que está se estapeando com outra por causa do namorado e traz a consciência de classe.

Num episódio de menino na faculdade – nada a ver com marxismo – lá no quadro-negro o cara tá ensinando Marx na universidade, entendeu? Eles fazem isso. Vi série coreana com miss questionando o FMI. Temos que aprender como que faz a coisa pra ser atraente. Sem isso, ficamos repetindo o formato que o capital ensinou.


Editora do BdFRS, Katia Marko, participou do Seminário “Os desafios da mídia independente, alternativa e popular” em homenagem aos 20 anos do Brasil de Fato em Fortaleza, junto com Marina Valente e Camila Garcia, editora do BdF no Ceará / Foto: Raphaela Façanha

Qual a importância do Brasil de Fato no Ceará, aqui para o estado e para a luta da classe trabalhadora?

Precisamos de mídias que tenham um peso de respeitabilidade. Que a sociedade olhe e diga assim: esse é um jornal com tanta qualidade quanto O Globo. É diferente da comunicação sindical. Precisa ser financiado e precisa existir. Estamos numa disputa ideológica. As pessoas acham que o jornal em que elas devem confiar é O Globo. Na verdade, O Globo nunca vai ser confiável para a classe trabalhadora porque ele tem uma visão de classe muito demarcada. Que, inclusive, anula pautas, anula sujeitos e os ignora para não ter que tocar no assunto.

Acho fundamental o Brasil de Fato. Está consciente da realidade da classe trabalhadora. Entendeu que tem que ter rádio, tem que ter site, tem que ter o impresso, tem que ter o audiovisual. Entendeu também que as pessoas estão buscando coisas, são atores participativos. Estão buscando organizações mais horizontais com as quais possam contribuir.

Publicação de: Brasil de Fato – Blog

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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