Núcleo sobre Emergências em Saúde Pública da Fiocruz repudia comercialização do plasma sanguíneo; nota

Nota de repúdio à comercialização do plasma sanguíneo*

Da Redação

O Núcleo Interdisciplinar sobre Emergências em Saúde Pública (Niesp), do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, divulgou na quarta-feira, 22/11, uma nota em repúdio à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 10/2022, que permite a comercialização do plasma sangue. 

É que ela altera o artigo 199, parágrafo 4 da Constituição, que proíbe todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos, substâncias humanas, incluindo o processamento e transfusão do sangue e seus derivados.

A PEC 10/2022 está em tramitação no Congresso Nacional. 

Em 4 de outubro de 2023, ela foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Próximos passos: votação no plenário do Senado, em seguida, vai para a Câmara dos Deputados.

A nota de repúdio foi elaborada por cinco pesquisadores do Niesp/CEE:  Gustavo Matta, Sergio Rego, Ester Paiva, Priscila Petra e Celita Almeida.

Eles alertam para a necessidade de “considerar as possíveis consequências de uma mercadorização da saúde e da vida”, em prejuízo do “papel estratégico e humanístico” da doação de sangue na resposta às emergências de saúde pública, desastres e outros eventos críticos que ameaçam a saúde e a vida da população.

Abaixo, a íntegra da nota.

Ilustração: Reprodução CEE-Fiocruz

NIESP – Núcleo Interdisciplinar sobre Emergências em Saúde Pública

Nota de repúdio à comercialização do plasma sanguíneo*

CEE-Fiocruz

No dia 4 de outubro, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a proposta de Emenda Constitucional, PEC-10/2022, que permite a comercialização do plasma sanguíneo, alterando o artigo 199, parágrafo 4 da Constituição, que proíbe todo tipo de comercialização de órgãos, tecidos, substâncias humanas, incluindo o processamento e transfusão do sangue e seus derivados.

Agora, a PEC-10/2022 vai para votação no Senado e depois para a Câmara dos Deputados, seguindo para a sanção presidencial; em caso de aprovação em todos os trâmites legislativos.

A justificativa alegada para tal proposição pelo Senador Nelsinho Trad (PSD/MS) é o desperdício de bolsas de plasma sanguíneo apurado pelo TCU em 2020 e a escassez do hemoderivado durante a pandemia de Covid-19.

Esse é um debate que poderia parecer ultrapassado ou passar desapercebido, por diversos motivos, como o desconhecimento da regulação, tratamento e qualidade do sangue no Brasil, e sua responsabilidade estatal.

Além disso, devemos considerar as possíveis consequências de uma mercadorização da saúde e da vida.

Até meados da década de 1980, a circulação do sangue não obedecia a critérios técnicos, nem possuía fiscalização regular e sistemática.

Foram diversos os escândalos sobre as máfias do sangue, contaminação de pacientes por transfusão sanguínea, bem como a dificuldade de acesso ao mesmo.

Com a pandemia de Aids nos anos 1980 e com destaque para a transmissão do HIV pelo sangue, um importante apelo nacional e internacional para a regulação e qualidade do sangue no Brasil, várias instituições científicas e movimentos sociais e políticos se uniram para estabelecer uma legislação técnica de âmbito nacional.

Esse movimento resultou também num esforço para incluir no texto constitucional de 1988, um artigo que assegurasse que órgãos, tecidos (o sangue é um tecido) e substâncias humanas fossem vedados à comercialização, tratando-se de um assunto de interesse público.

Em 2001, o Estado brasileiro regulamentou o artigo 199 da Constituição, através da Lei 10.205, também conhecida como Política Nacional do Sangue, que tem como alguns de seus princípios fundamentais:

I – universalização do atendimento à população;

II – utilização exclusiva da doação voluntária, não remunerada, do sangue, cabendo ao poder público estimulá-la como ato relevante de solidariedade humana e compromisso social;

III – proibição de remuneração ao doador pela doação de sangue;

IV – proibição da comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão do sangue, componentes e hemoderivados.

É fundamental lembrar que, após essas ações, houve inegável redução de contaminações, aumento da qualidade dos serviços nos postos de coleta e tratamento do sangue, criação e expansão dos hemocentros por todo o país, ampliação e equidade do acesso, fazendo da experiência brasileira um exemplo para outros países e para a Organização Mundial da Saúde.

O controle do sangue fazia parte também da estratégia de atenção integral ao HIV/Aids, além de possibilitar o controle de uma série de doenças comuns transmissíveis pelo sangue, como as hepatites B e C, doença de Chagas, sífilis e mesmo as transmitidas pelos vírus HTLV-I e HTLV-II.

Até a proibição da comercialização do sangue, assistíamos diariamente milhares de indivíduos que iam de banco de sangue em banco de sangue, regularmente, vendendo o seu sangue para obter recursos para fazer ao menos uma refeição.

Os bancos de sangue privados exerciam controle de qualidade muitas vezes ineficiente e ineficaz.

Com a proibição da comercialização, desapareceram os serviços que tinham como prioridade o lucro, restando aqueles que se dedicam à proteção da população.

Além disso, a proibição do comércio do sangue também nos faz refletir sobre o papel estratégico e humanístico da doação de sangue para responder às emergências de saúde pública, desastres e outros eventos críticos que ameaçam a saúde e a vida da população.

Para a preparação, resposta e recuperação nas epidemias e pandemias, é crucial que a universalidade, a equidade e a publicidade no acesso a serviços e insumos, como o sangue, sejam garantidas a todas as populações sem distinção de renda, raça, etnia, idade ou gênero.

Esse ensinamento aprendemos com lições muito duras e que causaram a morte de milhares de brasileiros, quando a omissão e o negacionismo de autoridades políticas, o protecionismo de países ricos na compra de vacinas, máscaras, ventiladores e outros insumos colocaram e colocam em risco populações vulnerabilizadas e regiões subalternizadas.

Não é difícil vislumbrar um caminho em que a equidade no acesso aos hemoderivados também fique comprometido.

Neste sentido, o ethos solidário, humanitário e voluntário da doação e acesso ao sangue e seus derivados é um valor fundamental que rege a política do sangue no Brasil.

A PEC 10/2022 coloca em risco um enorme esforço histórico e coletivo quando propõe a comercialização do plasma sanguíneo por entes privados e, pior, para vender novamente para o sistema de saúde.

A confiança da população no SUS e em seus exemplos de sucesso como os transplantes, o tratamento do HIV/Aids, a vacinação, a doação de sangue, a saúde da família, entre tantos outros, não pode ser abalada por iniciativas oportunistas, distantes do interesse público e do bem comum.

Neste sentido, o NIESP se une a tantas outras instituições, associações científicas e ao Ministério da Saúde em repúdio à PEC 10/2002.

Não mexam no nosso sangue, não alterem a Constituição. O sangue é de todos, para todos, é público, é universal e regulado pelo SUS.

*Esta nota foi escrita por Gustavo Matta (NIESP/CEE, CIDACS/IGM), Sergio Rego (NIESP/CEE, PPGBIOS/ENSP), Ester Paiva (NIESP/CEE), Priscila Petra (NIESP/CEE) e Celita Almeida (NIESP/CEE)

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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