Muhana, Clemesha e Safatle: As humanidades da USP decidem não se calar diante do horror

As humanidades da USP decidem não se calar diante do horror

Adma Muhana, Arlene Clemesha e Vladimir Safatle*, na Folha

Após um debate longo, a Congregação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas) da USP decidiu, por ampla maioria (46 votos a favor, 4 contra e 4 abstenções), romper o acordo de cooperação mantido com a Universidade de Haifa (Israel).

Foi uma decisão meditada, após debates longos nos quais todas as posições foram ouvidas e tiveram espaço de argumentação. Prevaleceu o entendimento de que a prática de genocídio, cometido pelo Estado israelense e amparado por suas instituições, deve receber da comunidade internacional um gesto claro de repúdio.

Como resultado de sua postura ética, a FFLCH, a maior faculdade de humanidades do Brasil e da América Latina, vem sendo caluniada e acusada de praticar “intolerância” e “hostilidade seletiva” contra Israel.

Seus detratores parecem querer ignorar que a Universidade de Haifa é parte orgânica do Estado israelense, abrigando três colégios militares que compõem o Complexo Acadêmico Militar israelense, o qual a universidade afirma “constituir a espinha dorsal dos programas de treinamento de elite das IDF [Forças de Defesa de Israel]”.

Basta ler, no site da própria universidade, que esta oferece cursos na base militar de Glilot e equipamentos aos soldados que perpetraram o massacre em Gaza.

Tais detratores divulgam que a FFLCH seria intolerante ao romper um acordo acadêmico, mas esconde da opinião pública de que tal ruptura não se dirige a pesquisadores individuais e afeta pouco a cooperação científica entre os próprios acadêmicos.

A circulação de professores continua, a circulação de alunos sequer existiu. Esse ato de ruptura é, na verdade, a maneira que as instituições acadêmicas têm de expressar sua forte oposição a uma situação de crime —o genocídio—, que vem sendo normalizado, ocultado e até apoiado, não só pela Universidade de Haifa e por outras instituições acadêmicas israelenses, como por diversos setores da sociedade civil brasileira.

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A FFLCH da USP, do mesmo modo que a Unicamp e outras conscientes universidades brasileiras, não desviou os olhos, nem fingiu que não era da sua responsabilidade acadêmica se manifestar contrariamente a esse crime.

A própria ONU e a Corte Internacional de Justiça reconhecem que é da responsabilidade de seus países membros não colaborar com a violação da lei internacional promovida por Israel na sua ilegal ocupação dos territórios palestinos. Ou seja, os boicotes acadêmicos e culturais, assim como as sanções econômicas contra Israel, enquanto este mantiver as mencionadas situações de flagrante ilegalidade, estão ancorados na lei internacional.

Quando o sistema mundial falha, são os Estados, suas instituições e a sociedade civil que devem fazer com que a lei internacional seja aplicada.

As censuras à FFLCH ignoram, inclusive, a carta pública “Judeus exigem ação”, lançada há poucas semanas por um agrupamento internacional de acadêmicos e intelectuais judeus e subscrita por milhares de judeus ao redor do mundo. A carta afirma enfaticamente que a “pressão [internacional] deve continuar para que possamos alcançar uma nova era de paz e justiça para todos, palestinos e israelenses”.

Portanto, longe de a decisão da FFLCH expressar “intolerância”, o que ela expressa é a adesão a todas as vozes que hoje clamam pelo fim do genocídio por meio de medidas, sejam elas simbólicas ou efetivas, mas sempre não violentas, de boicote acadêmico, cultural, comercial e militar ao Estado e às instituições que cometem ou normalizam uma situação de crime de genocídio e limpeza étnica

A FFLCH se recusa a esconder-se atrás de uma pretensa neutralidade institucional, quando o que está em jogo são dezenas de milhares de vidas humanas, eliminadas e mutiladas por um longo processo de dominação, desumanização, colonialismo e, agora, sangrento genocídio.

*Adma Muhana, professora titular em Literatura Portuguesa no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP

*Arlene Clemesha, professora de história árabe da USP, coordenadora do Centro de Estudos Palestinos, é tradutora de Edward Said e autora, entre outros livros, de “Marxismo e Judaísmo” e “Palestina 1948-2008”

*Vladimir Safatle, professor titular do Departamento de Filosofia da USP

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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