Moradores atingidos por enchente no Sarandi, em Porto Alegre, criticam processo de remoção
Passados 8 meses da enchente de maio, o Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB), anuncia a demolição do conjunto de 57 moradias da Rua Aderbal Rocha, no Sarandi, zona norte da Capital. O motivo são as novas reformas no Dique da Casa de Bombas 10, que faz parte do sistema de proteção contra as cheias. Posto isso, há também a remoção das famílias do local, que dizem terem sido pegas de surpresa, como conta a moradora Elisângela: “Estão ameaçando que quando chegar dia 28 [de fevereiro] eles vão pegar as máquinas e passar por cima das casas”.
Há mais de trinta anos Elisângela Melo, 42 anos, mora atrás do Dique Arroio Sarandi, na Vila Brasília. Ela faz parte do núcleo de moradores que terão que abandonar a rua Aderbal. Após ter criado seus dois filhos no pátio em que hoje divide com a mãe e a irmã, Elisângela, relata que foi discriminada pelo DEMHAB por atualmente morar sozinha. “Eles dizem que a gente tem que sair daqui até dia 28 de fevereiro, só que o meu nome não saiu ainda na lista. Porém, os nomes da minha mãe e da minha irmã que moram no mesmo pátio em casas separadas saiu”. Buscando entender melhor o que aconteceu, a moradora foi atrás de respostas: “Entrei em contato com o DEMHAB e disseram que como eu moro sozinha na casa vou ficar por último. Ou seja, vai sair todo mundo e eu vou ficar. Como se eu fosse discriminada por morar sozinha”.
Sempre buscando olhar para frente
Além de conviver com as perdas materiais e problemas estruturais devido aos 40 dias em que seu lar ficou debaixo de água, Elisângela se preocupa com o matagal que cresce no entorno da casa. O quarto onde ela dorme é quase dentro do paredão do Dique. Da janela, enxerga a vegetação que vem florescendo desde o final da enchente de maio, o que atrai insetos, cobras e até jacarés.
Apesar de não ter sido contemplada na chamada do Compra Assistida por não estar na lista do DEMHAB, Elisângela já está procurando residências que estejam dentro das exigências da Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pelo programa. Mas tanto ela quanto a mãe e a irmã vêm esbarrando nos requisitos contratuais. “Eu não tenho direito de escolher onde eu vou morar. Eles querem que a casa [do vendedor] tenha escritura, tenha Habite-se, não pode ter nenhuma porta quebrada e nenhum vidro quebrado. Isso tudo no valor de 200 mil”, diz ela.
O Compra Assistida é um programa de habitação que disponibiliza a compra de imóveis em até R$ 200 mil para quem teve sua moradia destruída ou danificada por enchentes. A iniciativa tem sido utilizada em todo o Rio Grande do Sul como uma das principais medidas de reconstrução. Somente em Porto Alegre foram abertos 4 mil processos de solicitação por parte da prefeitura à CEF, dos quais 2 mil haviam sido habilitados e 41 foram concluídos. Ou seja, menos de 2% das famílias que necessitam de moradia fixa receberam a chave.
Elisângela trabalha na recepção de um prédio na Avenida Cristóvão, onde bate ponto às sete horas da manhã. Por causa disso, precisa morar em um lugar minimamente perto de seu serviço. A dificuldade maior em aceitar as casas ofertadas no site da Caixa se dá porque parte delas ficam na Região Metropolitana. “A gente não está se negando a sair. A gente só quer ter o direito de escolher onde vai morar e escolher a nossa casa”, pontua a recepcionista.
“Eu moro a vida inteira com a minha mãe. Agora a gente vai ter que todo mundo se separar e cada uma vai para um lado? Isso também é algo que causa um problema emocional na gente. Não é só questão de casa. Eu criei meus filhos aqui com ela. Isso é um negócio que mexe emocionalmente com a gente. Tem dias que eu choro e que eu não como, porque a gente não sabe o que vai acontecer. Tem que sair até o dia 28, mas para onde eu vou? Vou para debaixo de uma ponte? Vou alugar uma casa com mil reais? Se é tudo por corretora ou por imobiliária. Eu tô me sentindo coagida”.
O Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre (DEMHAB) foi questionado sobre as críticas dos moradores e não se pronunciou até o fechamento desta matéria. O espaço segue aberto.
Vizinha de Elisângela, Carmem Góes também enfrenta problemas para encontrar uma nova moradia seguindo as condições colocadas pela Caixa. “Se eu não achar casa em até 60 dias eu vou sair da fila da Caixa. Saindo da fila de espera, eu não sei quando vou voltar para a lista”, reclama Carmem.
Com uma filha cadeirante, a dificuldade de Carmen em achar um novo lar aumenta toda vez que busca priorizar a acessibilidade na hora da compra. “A caixa só oferece apartamento para nós, e nós não queremos apartamento, queremos casa para deixar mais acessível para ela que precisa”.
Aos contemplados no Compra Assistida a Caixa concede o tempo de 60 dias para a procura do imóvel. Entretanto, o que tem deixado moradores apreensivos é justamente o limite de 30 dias para despejo, notificado pelo governo municipal. “O DEMHAB veio várias vezes aqui na minha casa entregar a cartinha concordando com o Estadia Solidária, só que nós não queremos. Eu vou sair daqui só com a minha casa. Não sou obrigada a aceitar o que eles querem. Eu quero ter o direito de escolher”, afirma a vizinha Elisângela.
Sem casa nova, o que resta?
Segundo o ofício do DEMHAB, as 57 famílias que serão retiradas, seja aquelas que não estão na lista do Compra Assistida ou as que não encontraram a casa desejada, têm direito ao programa Estadia Solidária. A diarista Fátima Velasque relata o que leu no documento de despejo: “Agora eles vieram com um papel para a gente assinar porque querem tirar a gente daqui, dizendo que vão dar um aluguel social”. É comum que, assim como Fátima, muita gente confunda o Estadia Solidária com o Aluguel Social (AS). Na verdade, o modelo é bem parecido. A diferença é que o no AS, o governo deposita direto na conta do proprietário do imóvel alugado, e no E.S. o dinheiro vai direto para uma conta no Caixa Tem do benefício, no caso do próprio morador. Com o E.S. os moradores recebem um auxílio de R$1.000,000 por mês durante o período de 12 meses. O ofício não descreve nenhum outro benefício para além, como auxílio para a mudança.
“A gente não tem para onde ir com mil reais por mês, porque ninguém vai querer tirar um aluguel por mil reais. Aí tu tem que dar caução, pagar carreto, tirar todas as coisas da gente, destruir tudo que a gente tem e ir para onde?”, questiona Fátima. Diarista, nas horas vagas ela ajuda o marido com os clientes no bar do casal. Quando questionada sobre a vontade do marido, que estava acanhado para dar entrevista, ela responde: “Ele não quer sair daqui. É o único trabalho dele. Ele trabalhou 30 anos para conseguir comprar essa casinha e montar esse bar. Com o fundo de garantia ele pagou esse bar e agora vão tirar tudo dele”.
Fátima relembra o dia que saiu de casa. Era sábado quando o dique rompeu. Depois de 35 dias ela retornou, mas a água não tinha recuado. “Entrei com água por aqui. Porque eu queria ver se a minha casa estava ali. Porque até aquele momento a gente não sabia se a casa estava de pé, e meu maior medo era que eu ia perder a minha casa. Eu entrei com água podre e quando eu enxerguei a minha casa eu fiquei muito feliz”, conta.
A diarista diz que estranhou, porém, seu nome ter saído na lista das casas a serem demolidas, sendo que ela não mora na área de primeira fase de demolição. Para ela o processo de remoção tem sido confuso. A moradora afirma que não há transparência sobre as determinações que o DEMHAB faz, e que o departamento tem agido de modo desorganizado. “Era para sair 57 casas, mas muitas pessoas nem estão com nome na lista. Se essa é a prioridade de tirar as casas daqui, então que eles deem para nós as 57 casas primeiro. Tem gente que já está com nome na lista lá no começo da Aderbal, mas quem vai sair são esses daqui do final da rua”, diz.
Elisângela, Carmen e Fátima se reuniram com o restante dos vizinhos na última sexta-feira (31) para pensar em soluções organizadas enquanto moradoras ao lado do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Por meio do movimento, os moradores protocolaram um pedido de reunião com o Gabinete do Prefeito Sebastião Melo, DEMHAB, DMAE e Secretária Municipal de Meio Ambiente.
*Comunicação MAB
Publicação de: Brasil de Fato – Blog