Maria Carlotto: É urgente a esquerda iniciar um processo de discussão e mobilização em torno de um programa máximo
Por Maria Caramez Carlotto*
A esquerda brasileira entrou novembro se confrontando com dois acontecimentos políticos importantíssimos.
O primeiro foram as eleições municipais no Brasil, vencida pelas direitas e pelas extremas-direitas.
O segundo, a vitória da extrema-direita nos Estados Unidos, a partir da eleição do Donald Trump.
Tanto num caso quanto no outro, não foram vitórias quaisquer.
No Brasil, os números apontam claramente um movimento geral de vitória das direitas e das extremas-direitas nas cidades de pequeno, médio e grande porte, em praticamente todo território nacional.
Nos Estados Unidos, Donald Trump também não obteve uma vitória qualquer. O republicano venceu, pela primeira vez, no voto popular no colégio eleitoral, na Câmara, no Senado, além de já controlar a Suprema Corte.
Maior votação de um republicano em 20 anos, Trump saiu da eleição com um poder inédito, seja do ponto de vista do seu mandato de 2016 seja quando comparado a todos os demais mandatos republicanos no século 21.
Esses acontecimentos acenderam primeiro o sinal amarelo, depois vermelho para a militância petista e a militância de esquerda brasileira. Sem dúvida, ainda vamos discutir o significado de cada uma dessas eleições ao longo próximos meses.
Só que tem dois efeitos dessas duas eleições que já podem ser delineados e que são incontornáveis para nós.
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O primeiro é que, nos dois casos, reduziu-se a margem de manobra da esquerda brasileira, em geral, e do governo Lula, em particular.
A intensificação da cobrança para um esforço fiscal robusto; o desfecho dos apoios à sucessão na Câmara dos deputados; e o reforço da pauta da anistia são exemplos evidentes disso.
O segundo efeito é que essas duas eleições elevam a moral da direita que vem muito mobilizada para as próximas eleições.
Esses dois efeitos, juntos, se não forem contrapostos pelo nosso campo, aumentam, a meu ver, a chance de vitória da direita e da extrema-direita em 2026.
À luz deste diagnóstico, precisamos discutir como nós, enquanto campo, estamos olhando para esses acontecimentos.
Da minha perspectiva, existem, grosso modo, três posições acerca da força demonstrada pela direita no último período.
Uma primeira, que vou chamar de negacionista, é basicamente a posição que diz:
‘’está tudo bem, a vitória nas últimas eleições foi da situação, da base aliada, dos partidos que apoiam o presidente Lula. Além disso, diferentemente dos Estados Unidos, aqui no Brasil, o STF e o TSE nos protegem na extrema-direita então, em suma, está tudo caminhando bem, inclusive o governo e, por tabela, o nosso campo”.
Essa posição é, na minha opinião, minoritária. Apesar dela tem força no Partido dos Trabalhadores, especialmente entre quadros importantes do governo, não acho que ela seja a posição mais preocupante, porque é tão evidentemente falsa que não contagia amplos setores do nosso campo.
Uma segunda posição, que eu vou chamar de resignada, defende esta ideia:
“a direita venceu porque existe um movimento inexorável da sociedade de caminhar para a direita, aderindo a pautas conservadoras e recusando a agenda tradicional da esquerda”.
Essa segunda posição, sim, tem ampla adesão e, por isso mesmo, a considero muito mais perigosa do que a primeira. Ela forma, hoje, uma espécie de senso comum do campo progressista e de esquerda.
Por fim, existe uma terceira posição que vou chamar de militante inconformada que afirma, basicamente:
“De fato, a situação não está boa, perdemos as eleições municipais, a eleição do Trump para nós é péssima, e, por isso mesmo, precisamos fazer algo diante do que está acontecendo”.
Essa terceira posição – que é a que eu defendo – apesar de ter muita presença na militância, não é, na minha opinião, majoritária no PT.
Por isso, uma das principais tarefas dos que defendem mudanças para lidar com a conjuntura atual é desconstruir os argumentos das duas posições anteriores, especialmente da posição, que estou chamando de resignada, porque ela é muito forte na esquerda brasileira.
Trata-se, basicamente, dos partidários da ideia de que
‘’a sociedade foi para direita e, por isso, a direita está intrinsecamente forte’’, portanto, “só nos resta se adaptar às pautas deles para continuar tendo algum espaço de atuação’’.
E essa ideia é forte porque, primeiro, porque sustenta a linha de caminhar para o centro e para a direita que está na base da visão negacionista do “tá tudo bem” porque nosso campo inclui, como base aliada, as direitas.
E segundo e mais importante porque como ela postula que toda a agência política está com a direita, ela tem a vantagem de perdoar de antemão qualquer erro que possa haver no governo federal e na nossa condução política. Afinal, se perdermos a eleição de 2026 é porque a sociedade está caminhando nesse sentido
Esse amálgama da posição negacionista e resignada vem aparecendo no debate do pós-eleição com quatro proposições:
1. A primeira: não se pode criticar o governo em nenhum terreno, nem mesmo no debate sobre o arcabouço fiscal.
Dessa perspectiva, nossa função como campo não é disputar, mas apenas apoiar o governo Lula do jeito que está, porque “é o que dá para fazer” e qualquer crítica, qualquer ação, qualquer mobilização que desvia do apoio cego atrapalha um governo intrinsecamente fraco e que, por isso mesmo, precisa de sustentação total.
2. A segunda proposição é a de que a responsabilidade pela nossa derrota foi dos “identitários”.
Ou seja, a ideia de que a gente precisa debater a sociedade dentro dos limites que as direitas e a extrema-direita estabeleceram para nós, não podendo, por isso, provocar os sentimentos machistas, racistas, homofóbicos e conservadores da sociedade porque eles são muito difundidos e, diante deles, somos minoria.
3. A terceira proposição, que deriva das duas anteriores, é a de que o PT está intrinsecamente fraco e, por isso mesmo, precisa fazer alianças, alianças e alianças cada vez mais ao centro.
O giro ao centro, na direção de uma frente cada vez mais ampla, tem muita força pelo menos desde 2022 e vem sendo o eixo de discussão da reorganização do PT no próximo período.
4. A quarta proposição que vem ganhando espaço é a de que, justamente em função na necessidade de caminhar para o centro, precisamos recuar em várias de nossas agendas e políticas, especialmente na nossa política externa, porque justamente não temos força para bancar nenhuma das nossas posições históricas.
***
Como eu disse, essa posição resignada – ora associada aos negacionistas – está amplamente difundida e, por isso mesmo, precisa ser desconstruída.
Nesse sentido, considerando que vamos entrar num período de balanço e disputa dentro do PT, proponho responder a cada uma das quatro proposições resignadas que apresentei anteriormente conforme segue:
1. Em relação à ideia de que nós não podemos criticar o governo, penso que precisamos assumir uma posição intransigente de apontar a responsabilidade dos diferentes programas e medidas de ajuste fiscal pelo crescimento da extrema-direita.
Em outras palavras, o que vai barrar a extrema-direita não são os apelos à defesa das liberdades democráticas – por mais importante que elas sejam, mas a construção de uma situação de bem-estar social.
Essa ideia de que a crise da democracia é uma crise de forma, ou seja, uma crise apenas das instituições democráticas pura e simplesmente e não do conteúdo da democracia, isto é, da promoção das políticas de bem-estar e de redução de desigualdades, é uma ideia falsa.
A gente precisa aprender a fazer o debate da crise democrática incluindo a crítica ao efeito principal do desmonte da democracia: aumento das desigualdades.
Isso implica colocar as direitas e a extrema direita como forças que militam a favor da desigualdade, assim, assumir que a nossa saída não pode ser escolher entre democracia ou bem-estar social, tal como implícito nas frentes amplas com neoliberais.
Na verdade, precisamos construir frentes políticas que assumam que a defesa da democracia como forma tem tanta importância quanto a defesa da democracia como conteúdo, ou seja, como políticas públicas voltadas para a redução de desigualdades e, consequentemente, para o bem-estar da maioria.
Se a gente não for capaz de unir a defesa da democracia com a crítica ao neoliberalismo, vamos perder as eleições como perderam os democratas dos Estados Unidos.
Diante desse risco, penso que a gente precisa subir o tom e mudar os termos em que essa discussão é feita, mostrando que o neoliberalismo é, sim, o jardim aonde brota a praga do fascismo.
2. Em relação ao discurso de que o problema é dos “identitários”, eu gostaria de insistir, em primeiro lugar, que a ideia de que as pautas de gênero e raça são pautas “identitárias”, que envolvem apenas uma dimensão de identidade e aumento de representação, é uma ideia muito deficitária, muito atrasada em relação aos termos em que o debate está sendo posto, inclusive nos movimentos feministas e negros.
Simplesmente não é verdade que as mulheres e os negros queiram apenas mais representação. Embora a representação seja importante, não é apenas sobre isso, e não é principalmente sobre isso.
Inclusive, quando se joga as pautas das mulheres, dos negros, das populações LGBTQIA+ nesse lugar de “pautas identitárias”, isso atrapalha a luta que as mulheres e os negros de esquerda travam no interior desses movimentos, para afirmar essas pautas como pautas materiais, que envolvem o direito à vida, que envolve o direito ao trabalho, à renda, à moradia, à dignidade, à redução de jornada (inclusive de dupla jornada).
Existem setores de esquerda nos movimentos feministas e negro principalmente brigando cotidianamente para afirmar que as questões de raça e gênero são, inseparavelmente questões de classe.
Então, setores da própria esquerda dizer que essas pautas são pautas “identitárias” está contribuindo para a força dos setores liberais dentro desses movimentos.
Setores que vão na contramão da defesa que fazemos de que o debate sobre classe, raça e gênero envolve discutir as condições de trabalho, os programas de promoção da igualdade e assim por diante.
É óbvio que é preciso disputar a maneira como essas pautas são discutidas, mas não jogar o bebê com água do banho fora.
3. Em relação à proposição de que o PT e a esquerda como um todo estão intrinsecamente fracos, porque o “povo escolheu a direita”, é preciso lembrar que a maioria dos eleitores que compareceu às urnas escolheu a direita, mas não a maioria da população.
Basta olhar, por exemplo, nas eleições municipais: considerando o voto derrotado e as abstenções, a maioria não escolheu a direita, muito menos a extrema-direita. Significa dizer que a direita venceu porque a esquerda perdeu e que, portanto, não é um destino inexorável a vitória da direita.
Assim como a direita que venceu as eleições municipais no Brasil também não conquistou a maioria da sociedade.
Então, é um terreno para avançar e é sobre esse terreno que a gente precisa trabalhar.
4. Por fim, quanto à ideia de que a radicalização da agenda política, especialmente da política externa, é perigosa para nós.
A meu ver, essa ideia precisa ser combatida basicamente com o argumento: mais do que nunca talvez a solução dos nossos problemas esteja na política externa.
Ou seja, em alianças que aumentem a taxa de investimento e promovam o processo de reindustrialização.
Eu não vejo hoje nenhuma saída para nossa reindustrialização — absolutamente fundamental para mudar a estrutura da sociedade brasileira, hoje em cima da força do agronegócio — que não por alianças externas que nos ajudem a incorporar tecnologia, capacidade produtiva e assim por diante.
***
Para concluir, em termos concretos, enquanto esquerda, defensores de uma posição militante e inconformada com essa situação, é urgente iniciar um processo de discussão e mobilização em torno de um programa máximo, que é exatamente o que a extrema direita fez.
E, a partir desse programa máximo, mobilizar tanto no nível molecular — nossos espaços de trabalho, moradia, lazer — quanto em grandes campanhas massivas em redes sociais, plataformas e mobilizações de rua.
Precisamos começar a colocar nosso modelo de sociedade em cima da mesa, lembrando que isso envolve a colocar um projeto socialista e democrático no horizonte de possibilidades de amplos setores da sociedade.
Para mim, ou fazemos isso, ou vamos seguir, de derrota em derrota, até o fim do mundo, que com o Trump e as direitas no Brasil, ficou um pouco mais próximo.
*Neste texto, Maria Carlotto reproduz a sua fala (aqui, o vídeo) na plenária aberta da militância petista, realizada na cidade de São Paulo, em 9 de novembro de 2024.
Portanto, antes do indiciamento pela Polícia Federal de Jair Bolsonaro, Braga Netto e mais 35 pessoas pelos crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. O plano articulado Bolsonaro previa o assassinato do presidente Lula, do vice Alkmin e do ministro Alexandre de Moraes, do STF, em dezembro de 2022.
*Maria Caramez Carlotto, doutora em Sociologia pela USP, é professora do curso de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisa Science in Circulation, ligado ao Instituto de Estudos Avançados e Cultura da Unifesp, uma Rede de Pesquisa que integra pesquisadores nacionais e estrangeiros, de diferentes disciplinas, que estudam circulação internacional de conhecimento.
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo