Marcelo Zero: Para esfriar o planeta, é preciso “esfriar” as desigualdades
Para esfriar o planeta, é preciso “esfriar” as desigualdades
Por Marcelo Zero*
Na última edição da Foreign Affairs, Jessica F. Green, professora de Ciência Política na Universidade de Toronto e autora de Existential Politics: Why Global Climate Institutions Are Failing and How to Fix Them (Política Existencial: Porque as Instituições Climáticas Globais Estão Falhando e Como Consertá-las), argumenta que as políticas atuais contra as mudanças climáticas estão “falidas”.
Os argumentos são fortes.
Muito embora o Acordo de Paris e a Convenção-Quadro das Nações Unidas contra a Mudança do Clima (UNFCCC- no acrônimo inglês) tenham feito algum progresso para evitar que o aquecimento global tenha chegado próximo de 3 graus, a meta de 1,5 grau já foi descumprida e o mundo enfrenta a terrível perspectiva de o aquecimento global alcançar, em poucas décadas, algo próximo entre 2 graus centígrados e 2,5 graus centígrados.
Green argumenta que o mecanismo básico utilizado pelo Acordo de Paris e a Convenção do Clima, a saber, a gestão do mercado de carbono, não funciona como deveria.
Segundo Green, como seu objetivo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa, as políticas adotadas pelos países nesse âmbito são voltadas para a mensuração e a comercialização de unidades de emissões desses gases, uma abordagem que chamo de “gestão de toneladas”.
Essa abordagem permite que os governos adaptem as políticas climáticas de forma a maximizar a eficiência e a flexibilidade econômica. Mas, na prática, essas políticas não funcionam muito bem. Elas mantêm os maiores emissores em atividade, ao mesmo tempo que oferecem às empresas e aos governos a conveniente cobertura política para ignorar o problema subjacente: como as políticas nacionais e internacionais sustentam a economia dos combustíveis fósseis.
Em outras palavras, a política climática global estaria falida porque foca quase que exclusivamente na gestão das emissões de carbono (“gestão de toneladas”) — medindo, precificando e compensando emissões — em vez de transformar as estruturas econômicas que sustentam a dependência mundial de combustíveis fósseis.
A compensação de carbono (também chamada de créditos de carbono) permite que empresas e países cumpram parte de suas metas de redução de emissões pagando por atividades que reduzem as emissões em outros lugares — por exemplo, comprando créditos de carbono da Indonésia ou do Brasil para apoiar a proteção de suas vastas florestas tropicais.
A precificação do carbono funciona exigindo que o emissor pague ao governo um imposto por tonelada de dióxido de carbono emitida ou implementando um sistema de limite e comércio de emissões, no qual o governo estabelece um limite máximo para as emissões agregadas e as empresas compram e vendem licenças de emissão de carbono para se manterem dentro desse limite.
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Nenhum desses mecanismos básicos está alcançando os resultados desejados. Uma meta-análise recente de mais de 2.000 projetos de compensação de carbono constatou que menos de 16% dos créditos de carbono emitidos desde 2005 corresponderam a reduções reais de emissões.
Ademais, a precificação do carbono, embora cubra 28% das emissões globais, seria muito baixa. O preço médio é de apenas US$ 5/tonelada, muito abaixo do custo economico e social real da emissão, o qual estaria entre US$ 44 e US$ 525.
A autora também enfatiza que o financiamento efetivo para enfrentar as mudanças climáticas e prover a transição energética é extremamente baixo. A meta de US$ 100 bilhões anuais, prometida em 2009, foi atingida com atraso e sem novos recursos. E o novo compromisso de US$ 300 bilhões anuais até 2035 é muito inferior às necessidades, estimadas em US$ 1,3 trilhão por ano.
Jessica Green propõe mudar o foco da diplomacia climática — das negociações de emissões na UNFCCC para instituições econômicas globais capazes de lidar com o dinheiro, o poder e os incentivos estruturais que sustentam o “sistema fóssil”.
Assim, seriam necessárias outras políticas globais mais robustas para o combate às mudanças climáticas,
Em primeiro lugar, seria preciso uma reforma tributária internacional.
O Observatório Tributário da UE, um instituto de pesquisa, citado pela autora do artigo, constatou que mais de um terço dos lucros multinacionais das corporações, totalizando US$ 1 trilhão, em 2022, são transferidos para o exterior para evitar impostos. Essa transferência para o exterior contribui para expandir a riqueza — e, portanto, a influência — de grandes empresas já estabelecidas como proprietárias de ativos fósseis.
Além disso, estima-se que entre US$ 7 trilhões e US$ 32 trilhões (!) em ativos corporativos sejam mantidos em contas offshore, nas quais são sujeitos a pouca ou nenhuma tributação.
O dinheiro para o combate às mudanças climáticas existe, mas está congelado na imensa evasão fiscal.
A própria desigualdade, gerada pela escassa tributação desses imensos ativos contribui para as emissões.
Relatório recente da Oxfam constatou que o 0,1% mais rico da população mundial produz mais poluição de carbono em um único dia que os 50% mais pobres do planeta emitem durante todo o ano.
Propostas como o “Imposto Zucman” na França (nomeado em homenagem ao economista que o propôs, Gabriel Zucman), que não foi aprovado em votação parlamentar, poderiam ser úteis, nesse sentido. Tal imposto seria uma taxa de 2% cobrada sobre ativos acima de 100 milhões de euros.
Um segundo problema mencionado por Jessica Green seria a proteção jurídica de investimentos, que coloca os interesses privados acima dos interesses públicos.
Com efeito, como bem menciona a autora, desde 1980, os países assinaram mais de 2.600 tratados bilaterais e multilaterais de investimento, que protegem os investidores da expropriação nacional, da discriminação comercial e de encargos regulatórios “indevidos”.
As alegadas violações desses tratados são arbitradas por meio do Sistema de Solução de Controvérsias entre Investidores e Estados (ISDS, na sigla em inglês), que se revelou uma grande vantagem para os proprietários de ativos fósseis.
Desde 2013, aproximadamente 20% dos casos de ISDS são iniciados por empresas de combustíveis fósseis. Essas empresas venceram cerca de 40% dos casos, com uma indenização média de US$ 600 milhões. Oito das 11 maiores indenizações concedidas por meio do ISDS — todas acima de US$ 1 bilhão — foram para empresas de combustíveis fósseis.
O Brasil, frise-se, não tem esse problema, pois o PT, nos governos de FHC, conseguiu rejeitar os acordos bilaterais de proteção aos investimentos, feitos nos moldes da OCDE, os quais criavam privilégios para os investidores internacionais e, no limite, colocavam obstáculos de monta à implantação de políticas robustas de desenvolvimento, realizadas conforme o interesse público.
O então deputado Aloizio Mercadante, presidente da Comissão de Economia, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados, teve papel destacado nessa resistência histórica, que até hoje protege os interesses do Brasil, no cenário mundial.
Atualmente, o nosso país tem seu próprio modelo de proteção de investimentos, muito menos permissivo e mais permeável ao interesse nacional.
Green, entretanto, propõe a exclusão do setor de combustíveis fósseis das proteções do ISDS, de modo a que os países possam controlar mais essas companhias e, eventualmente, contrariarem seus interesses, sem serem obrigados a pagar indenizações bilionárias.
A redistribuição de recursos financeiros e a diminuição do poder jurídico-político das corporações ligadas à economia carbonizada limitaria a esfera de influência dessas “firmas fósseis” e geraria fundos suficientes para a transição energética.
Observe-se que a autora não defende extinguir a UNFCCC, mas restringir seu papel.
A Convenção deveria servir mais como plataforma técnica de coleta de dados, compartilhamento de tecnologias e gestão limitada de fundos de mitigação/adaptação.
Contudo, as decisões estruturais — tributárias, financeiras e de investimentos — deveriam migrar para outros fóruns internacionais (OCDE, G20, e novos tratados econômicos centrados na sustentabilidade social e ambiental do desenvolvimento).
Mas o ponto fulcral que temos de ressaltar no artigo em análise é mais profundo.
O ponto central é que a manutenção da economia carbonizada está fortemente associada à desigualdade econômica, social e política reproduzida por essa própria economia, em nível mundial.
As mudanças climáticas não poderão ser efetivamente enfrentadas sem o combate às desigualdades e aos privilégios das grandes corporações e dos bilionários que, em verdade, ditam, direta e indiretamente, os rumos da economia planetária.
Os povos, os Estados e os interesses públicos têm de preponderar nos centros estratégicos que realmente decidem os rumos mundiais.
As imensas desigualdades fazem muito mal à ordem mundial, às pessoas e ao planeta.
Para esfriar o planeta, é preciso “esfriar” as desigualdades.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo
