Lelê Teles: O cine Itapuã e o filme que me fez amar o cinema
Por Lelê Teles*
quando eu era criança, ouvia, na conversa da vizinhança, murmúrios sobre o cinema.
não apenas sobre filmes, mas sobre o cinema mesmo.
sobre a experiência coletiva de ver um filme.
no gama fora inaugurado, em 1963, o mítico cine itapuã, uma das mais belas salas de cinema de brasília.
ao lado da minha casa morava o seo carlos, um sergipano que criava galos de briga.
ele era o gerente do cine itapuã, e sua filha, a jovem ivone, era a bilheteira.
eu ficava tentado a descobrir o que era um cinema e porque falavam dele com tanto fascínio.
até que um dia, curioso, me dei conta de que o cine itapuã ficava ao lado do parquinho onde, aos domingos, meu pai me levava pra brincar.
eu não via a hora de entrar naquele lugar.
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até que um dia, finalmente, me levaram.
era semana santa e os filmes religiosos eram pra todas as idades.
meteram-me numa roupinha de domingo, meti-me nas minhas congas novas e fui.
e foi, essa, a experiência mais fascinante de toda a minha vida.
o lugar era enorme, o teto altíssimo e as cadeiras, com forro de couro azul, eram bonitas e confortáveis.
nos sentamos.
de repente, apagaram-se as luzes e a sala mergulhou numa silenciosa escuridão.
assustado, olhei pra trás e vi quando, de uma pequena abertura no alto, um feixe de luz rasgou o negrume.
seu brilho forte resvalou sobre nossas cabeças e se esparramou na parede branca à nossa frente.
e, então, a mágica aconteceu.
um plano aberto mostrava, num pequeno vilarejo semirrural, uma procissão católica, puxada a carro de bois.
acostumado com a tevê de vinte polegadas, assustei-me com o gigantismo daquelas imagens.
o som era magnífico.
o filme era o clássico espanhol marcelino pão e vinho, filmado em ’55 e dirigido por ladislao vadja.
a película contava a história de um garotinho órfão que fora adotado por doze frades franciscanos.
peralta, o sacaninha botava o mosteiro de pernas pro ar.
até que um dia ele se deu conta de que não tinha mãe.
e também descobrira, no sótão do mosteiro, um cristo crucificado.
com pena daquele esquálido infeliz, marcelino decide alimentá-lo com pão e vinho.
e, assim, ele dá vida à estátua.
em seguida, convence jesus a deixá-lo ver a mãe, que já morrera.
como um gênio de lâmpadas, o mestre atende ao pedido do garoto, botando-o para dormir.
e marcelino nunca mais acorda.
lembro-me de ter chorado e de ter ficado puto com cristo que, a rigor, matou o menino que o havia ressuscitado.
no ano seguinte, eu tinha onze anos e fui ver o filme pixote, de hector babenco.
ao contrário de marcelino, pixote tinha a minha idade e se parecia muito comigo.
era um molecote de nariz sujo, de quebrada, cria de encruzilhada.
não fora mimado por frades, não se encontrara com cristo e vivia no inferno.
conhecia o cárcere, puta, traficante, assassino e convivia com a violência policial.
comeu o pão que o diabo amassou.
apesar de tudo, tinha um coração bom, sorria o riso puro de uma criança e amava viver a vida.
babenco humanizou aquele pequeno trapo humano, como quem ressuscita uma estátua.
sem dúvidas o cine itapuã criou em mim o fascínio pelas salas de cinema.
porém, foi pixote quem me fez amar o cinema.
porque não era mais uma questão de ver a tela, mas de se ver nela.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Publicação de: Viomundo