Josué Medeiros: Três razões para a vitória de Trump (e um alerta à esquerda brasileira)

Três razões para a vitória de Donald Trump em 2024 (e um alerta para a esquerda brasileira)

Por Josué Medeiros, em Carta Capital

As razões para a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais dos Estados Unidos são de três ordens.

Primeiro, a mobilização do eleitorado conservador de extrema-direita, algo que o presidente eleito domina como ninguém em seu país. Pautas como fechamento das fronteiras contra imigrantes e cerceamento e cassação do direito ao aborto são os carros-chefe da plataforma trumpista.

Em segundo lugar, a economia. Embora o governo de Joe Biden tenha bons números para apresentar – especialmente na redução do desemprego e no aumento da renda – as pessoas não sentem essa melhora.

Em parte, por conta da inflação. Em parte, por conta da polarização política, que afeta profundamente as percepções e os comportamentos políticos, especialmente entre os republicanos.

Mas a principal razão é que a vida da população não melhora dentro da dinâmica neoliberal que organiza a democracia estadunidense. A privatização dos direitos e a destruição dos laços de solidariedade promovem um cansaço e uma frustração que as estatísticas não conseguem alterar.

O trabalhador pode até estar empregado, mas vive um contexto de superexploração no trabalho, com jornadas extenuantes, péssima qualidade de vida e uma competição feroz com seus pares, estimulada pelos superiores.

Sua renda de fato aumentou, mas seus gastos com saúde dispararam, ou então precisei recorrer a serviços de saúde de pior qualidade porque é o que meu orçamento permite. Tudo isso gera estresse, depressão, angústia, raiva. E só quem se fortalece com esses sentimentos é a extrema-direita.

Por fim, mas não menos importante, a terceira dimensão é a política internacional do governo Biden, especialmente nas duas guerras que o país tem patrocinado.

Apoie o jornalismo independente

Por mais que a mídia empresarial do Ocidente (Brasil incluído) tente vender que a culpa do conflito na Ucrânia é exclusivamente dos russos, as pessoas rejeitam o conflito, entendendo que há um enorme montante de recursos que poderia ser gasto internamente.

A isso se soma o horror que o genocídio em Gaza provoca no eleitorado progressista dos EUA, que se desmobilizou por tristeza e revolta ao ver o governo que ajudaram a eleger promovendo tamanha barbárie contra o povo palestino.

O fato é que as duas guerras contribuem para que os democratas percam seu diferencial tanto na capacidade de melhorar o dia a dia da população quanto no aspecto simbólico, nos valores, no motivo pelo qual a democracia importa.

Não foi por acaso, portanto, que Kamala Harris perdeu em todos os estados-pêndulos.

Se não faz diferença, qual é a razão para votar? Só o medo de que Trump pode destruir a democracia não é suficiente. Nem mesmo a extrema-direita vence uma eleição baseada apenas no medo.

Dessas três razões, podemos extrair lições para as esquerdas do mundo e do Brasil.

Primeiro, a necessidade de fazer o debate de valores e ideológico. Se deixarmos a extrema-direita fazer isso sozinha, ela seguirá na ofensiva política e social, ainda que possamos derrotá-la em dinâmicas de frente ampla, como ocorreu no Brasil em 2022.

Mas esse combate de valores não pode se dar no vazio. Não se trata de uma pregação doutrinária, de belos programas escritos ou de debates em redes sociais. Essa dinâmica, aliás, favorece a extrema-direita, pois fica circunscrita às bolhas progressistas, em uma disputa infértil para ver quem é mais de esquerda.

É preciso ancorar o combate dos valores na vida real das pessoas, nas dinâmicas econômicas cotidianas, no enraizamento nos territórios e a partir de iniciativas concretas. Por exemplo, as Cozinhas Solidárias de movimentos sociais em um território periférico valem mil vezes mais do que qualquer programa bem-acabado sobre o que a esquerda deve fazer.

Esse combate precisa também orientar os sentidos estratégicos do terceiro mandato de Lula. Apostar apenas no crescimento econômico se mostrou insuficiente nos EUA. Não vale arriscar o mesmo no Brasil.

Crescimento do PIB, geração de empregos e aumento da renda são dados favoráveis da economia promovidos pelo tipo de governo que o presidente Lula exerce.

O problema é que as pesquisas mostram que as pessoas não estão plenamente satisfeitas. Há um reconhecimento de que a vida deu uma melhorada em comparação ao governo Bolsonaro, mas não o suficiente para consolidar uma relação duradoura do eleitorado com esse projeto.

A mobilização de outros valores e sentimentos pode, sim, derrotar Lula em 2026, mesmo com bons indicadores econômicos.

Se é verdade que a margem para o governo Lula pautar temas de esquerda é estreita, dado o peso da extrema-direita e da direita tradicional na política brasileira, isso não impede que o governo organize processos de mobilização territorial e de renovação política, fortalecendo novas lideranças que vêm surgindo nos últimos anos e formando novos quadros em um processo real de atuação no território.

O combate à fome e às desigualdades, a ampliação do acesso à saúde e à educação e o combate aos efeitos das mudanças climáticas são políticas que terão muito mais impacto se organizadas com mobilização dos territórios.

Isso vale tanto no sentido concreto quanto no simbólico, ambos igualmente decisivos para que a esquerda consiga virar o jogo na disputa de projetos e valores na sociedade brasileira.

*Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (Nudeb)

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *