José Luís Fiori: Para a Rússia, a guerra da Ucrânia é existencial. E para EUA e Inglaterra, põe em xeque a supremacia mundial exercida nos últimos 200 anos
Expansionismo norte-americano e a guerra terceirizada na Europa
Por Gilson Camargo, no Extra Classe
A guerra, a energia e o novo mapa do poder mundial (Vozes, 224 p., 2023) reúne 33 artigos de José Luís Fiori, José Sérgio Gabrielli, Rodrigo Leão e William Nozaki, todos pesquisadores do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep)
Professor emérito de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do GP do CNPq Poder Global e Geopolítica do Capitalismo e do Laboratório de Ética e Poder Global, do Nubea/ UFRJ, Fiori, que é colaborador do Extra Classe, assina a coordenação da obra – lançada nesta quinta-feira, 15, em webinário no canal do Ineep no Youtube.
Além dos seus artigos, ele também aparece na parte final do livro, com quatro entrevistas publicadas entre os anos 2018 e 2022, com análises das conjunturas nacional e internacional no âmbito de uma pesquisa de largo fôlego que vem sendo realizada no Ineep sobre “as grandes transformações internacionais e sobre a reconfiguração da geopolítica energética do sistema mundial”.
Nesta entrevista, Fiori analisa as disputas que levaram à guerra entre Rússia e Ucrânia, a guerra terceirizada pelos EUA e Inglaterra na Europa.
“Não se trata de uma guerra assimétrica, trata-se de uma guerra entre o sofisticado equipamento militar russo e o sofisticado equipamento militar norte-americano. Uma guerra de altíssima intensidade, possivelmente a mais intensa desde o fim da Segunda Guerra Mundial”, define.
Extra Classe – Como as grandes transformações internacionais e a reconfiguração da geopolítica energética aparecem neste livro?
José Luís Fiori – Quando da formação do Ineep, em 2017, fui convidado pelos seus diretores para coordenar uma pesquisa sobre as transformações geopolíticas mundiais e seu impacto sobre a indústria e os mercados internacionais de petróleo e gás, e sobre o processo da “transição energética”.
Nos últimos seis anos, o relatório da nossa pesquisa vem sendo feito na forma de artigos mensais sobre os momentos e ângulos mais relevantes desta transformação.
Foram cerca de 80 ou 90 artigos, a maioria dos quais incluído num primeiro livro intitulado A Síndrome de Babel e a disputa do Poder Global (Vozes, 2020). Este segundo livro inclui artigos de outros três pesquisadores do Ineep, quase todos focados na análise da pandemia e na Guerra da Ucrânia.
EC – A “guerra europeia” é mais uma disputa secular em torno dos recursos energéticos?
Fiori – Nem toda guerra é causada por disputas energéticas, mas não há dúvida que toda guerra tem algum “componente energético”.
O mesmo se pode dizer desta “guerra da Ucrânia”, cuja disputa mais importante envolve a questão da “primazia mundial”, mas que assim mesmo passa pelo problema do fornecimento do petróleo e do gás russo às demais economias europeias, e para a economia alemã muito em particular.
Os EUA se opuseram desde a primeira hora à construção dos gasodutos do Báltico e sempre tiveram medo da aproximação econômica entre a Alemanha e a Rússia.
Hoje ninguém tem dúvida sobre o papel de alguns dos “aliados ocidentais” na explosão dos dois oleodutos, o Nord Stream I e II, nos dia 26 de setembro de 2022.
Isso bloqueou definitivamente a possibilidade de algum tipo de negociação separada entre os alemães e os russos e cortou ao mesmo tempo o fornecimento para os europeus dos recursos energéticos russos, e deverá ter um impacto negativo de longo prazo sobre a economia industrial alemã.
EC – O conflito alterou a geopolítica dos mercados globais de petróleo?
Fiori – As sanções aplicadas pelo G7 e seus aliados contra o petróleo e o gás russo já provocaram um redesenho radical do mapa energético mundial, com o redirecionamento da energia russa para os mercados asiáticos, e com o estabelecimento de novos vínculos entre as potências petroleiras do Oriente Médio e a Ásia, com ênfase particular nas novas relações geoeconômicas e geopolíticas entre a China a Arábia Saudita, o Irã, e a Rússia.
Uma aproximação econômica e estratégica que nasceu à sombra e como resposta defensiva ao uso norte-americano de sua moeda e de suas finanças, como instrumento de poder dentro do mercado mundial de energia, e como arma de guerra contra seus concorrentes ou adversários.
EC – Por que a transição energética é paradoxal?
Fiori – Nesse início de século 21, o mundo está atravessando uma grande transformação geopolítica e ao mesmo tempo está se propondo a realizar uma nova “transição energética”, que visa substituir os combustíveis fósseis por novas fontes de energia que sejam “limpas e renováveis”.
E o paradoxal é que esta transição “preservacionista” da natureza e dos homens também esteja sendo promovida pelas pesquisas e inovações induzidas pelas necessidades bélicas das grandes potências.
EUA, Rússia, China, a própria Índia e as demais potências intermediárias do sistema mundial trabalham hoje com o mesmo horizonte de 2050/60, quando programam a “transição energética” de suas estruturas e plataformas militares com vistas à construção de um novo paradigma “fóssil-free”, por razões estratégicas e não ecológicas.
O que de fato é um grande paradoxo: produzir energia “limpa” para aumentar a eficiência das máquinas de destruição bélica das próprias potências que se propõem liderar o movimento ecológico mundial.
Fiori: “Republicanos e democratas tinham o mesmo objetivo de preservar a primazia mundial dos Estados Unidos durante o século 21. A diferença entre os dois estava na importância atribuída pelos democratas à Ucrânia, considerada um pivô geopolítico na estratégia de contenção da Rússia”. Fotos: Reprodução
EC – Qual a dimensão econômica dessa guerra?
Fiori – Na verdade, são instrumentos ou armas complementares de uma mesma guerra.
Como resposta à inciativa militar da Rússia na Ucrânia, os Estados Unidos e seus aliados do G7 desencadearam um ataque econômico contra a Rússia verdadeiramente massivo e arrasador, incluindo o bloqueio comercial e financeiro da economia russa e o congelamento dos ativos e reservas russas aplicadas nas moedas e títulos dos países do G7.
Mas é compreensível que se fale numa “guerra econômica” uma vez que os dois principais objetivos deste ataque visavam atingir a capacidade bélica dos russos.
O primeiro objetivo era provocar uma asfixia instantânea da economia russa paralisando de imediato sua máquina de guerra; e o segundo, era aleijar a economia russa de tal forma que os russos não pudessem pensar em fazer uma nova guerra por muitos anos ou décadas.
Até agora, os Estados Unidos e seus aliados não alcançaram seus objetivos porque talvez não tenham avaliado corretamente o poder de resistência de uma grande potência energética, que detém ao mesmo tempo grandes reservas de minerais estratégicos e é hoje uma das maiores produtoras mundiais de alimentos, além de ser, sabidamente, a primeira ou segunda maior potência atômica do mundo.
Além disso, parece que os “aliados ocidentais” não calcularam corretamente o efeito bumerangue dessas ações dentro de suas próprias economias e sociedades que entraram em recessão e estão enfrentando uma revolta social crescente contra seus próprios governos.
EC – Como a Rússia defende a legitimidade de sua invasão do território da Ucrânia?
Fiori – A Rússia tem defendido desde 2007 a exigência de que a Otan suspenda sua expansão junto à fronteira russa e, em particular, que se abstenha de incorporar à sua estrutura os territórios da Georgia e da Ucrânia.
Além disso, que a Otan interrompa seu processo de militarização dos antigos países do Pacto de Varsóvia e dos novos países que foram separados do território russo depois de 1991 e que depois foram incorporados.
A alegação russa contra o expansionismo “ocidental” encontra apoio numa longa história de invasões de sua fronteira ocidental: pelos poloneses no início do século 17; pelos suecos, no século 18; pelos franceses, no século 19; pelos ingleses, franceses e norte-americanos logo depois do fim da Primeira Guerra Mundial, entre 1919 e 1921; e finalmente, pelos alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, entre 1941 e 1944.
Uma ameaça, segundo a visão russa, que se repetiu depois do fim da Guerra Fria, e depois da decomposição da União Soviética, quando os russos perderam uma parte do seu território e logo em seguida assistiram ao avanço das tropas da Otan, apesar da promessa do Secretário de Estado Americano, James Baker a Gorbachev, em 1996, de que esse avanço não ocorreria.
Em dezembro de 2021, a Rússia apresentou aos Estados Unidos e à Otan, uma proposta formal de negociação sobre a Ucrânia, e de renegociação do “equilíbrio estratégico” imposto pelos EUA, depois do fim da Guerra Fria.
Esta proposta foi rechaçada, e foi neste momento que as tropas russas invadiram o território da Ucrânia, esgrimindo o argumento do “ataque preventivo em legítima defesa” do seu território com relação à ameaça da militarização e da incorporação eminente da Ucrânia à Otan.
EC – Como os EUA e a Otan justificam sua expansão na direção do Leste Europeu e seu grande envolvimento com a Ucrânia?
Fiori – Logo depois da queda do Muro de Berlim, o presidente George Bush criou o grupo de trabalho que deu origem ao projeto republicano do “nono século americano”, propondo que os Estados Unidos impedissem preventivamente o aparecimento de qualquer estado em qualquer região do mundo que pudesse ameaçar a sua supremacia mundial durante o novo século que se avizinhava.
Na década de 1990, os dois governos democratas de Bill Clinton apostaram na globalização econômica e nas “intervenções humanitárias” em defesa da democracia e dos “direitos humanos”.
Foram 48 “intervenções” durante toda a década, as mais importantes na Bósnia em 1995 e no Kosovo em 1999.
Mas ainda nos anos 1990, o geopolítico democrata Zbieniew Brzezinski – que havia sido Conselheiro de Segurança do governo Jimmy Carter, na década de 1970 – publicou um livro (The Grand Chessboard: American Primacy, em 1997) que se tornaria numa espécie de “bíblia” da política externa democrata dos governos de Barak Obama, entre 2009 e 2016, e agora do governo de Joe Biden.
EC – Qual a ligação de Brzezinski com o golpe da Praça Maidan?
Fiori – Brzezinski foi o grande mestre da secretária de Estado de Obama, Madeleine Albraight, que por sua vez foi a mentora intelectual de Anthony Blinken, Jack Sullivan, Victoria Nuland, entre outros, que trabalharam com Obama e seguem trabalhando com Biden.
Todos eles estiveram diretamente envolvidos com o golpe de estado da Praça Maidan, na Ucrânia, em 2014.
A proposta de Brzezinski ressuscitou a estratégia concebida por George Kennan, em 1945, de contenção da Rússia como objetivo central da política externa americana. E por isso defendeu abertamente a expansão da Otan para o Leste da Europa, incluindo explicitamente a Ucrânia.
EC – Essa política expansionista teve reflexos em outros países?
Fiori – Foi nesta mesma época e dentro da mesma estratégia que se gestou o projeto das intervenções, visando a mudança de governos e de regimes desfavoráveis para os Estados Unidos, mas em nome da defesa da democracia, como aconteceu com a “primavera árabe” depois de 2010, e na Ucrânia, em 2014.
Republicanos e democratas tinham o mesmo objetivo de preservar a primazia mundial dos Estados Unidos durante o século 21. A diferença entre os dois estava na importância atribuída pelos democratas à Ucrânia, considerada um pivô geopolítico na estratégia de contenção da Rússia.
Brzezinski chega a definir 2015 como a data limite para incorporar a Ucrânia à Otan. A incorporação não aconteceu, mas o golpe de estado foi dado exatamente um ano antes da data prevista por ele.
EC – Qual o lugar dos Brics na disputa pela hegemonia mundial. Acredita num deslocamento na atual supremacia norte-americana?
Fiori – O objetivo inicial dos Brics não era este, e a própria expansão do grupo vinha acontecendo de forma incremental desde suas primeiras reuniões, em 2006.
Até o momento em que começou a guerra comercial dos Estados Unidos contra a China durante o governo de Donald Trump, e muito mais ainda depois que começou a guerra econômica dos Estados Unidos e da União Europeia contra a Rússia, em 2022.
Neste sentido, considero que o uso do dólar e do poder financeiro de G7 como instrumentos de guerra contra dois membros do BRICS contribuiu decisivamente para aprofundar a relação financeira entre os membros iniciais do grupo, e aumentou o atrativo do grupo para outros países contrários às sanções norte-americanas e inseguros com relação à suas aplicações em títulos americanos, ou mesmo, com relação ao uso exclusivo do dólar para suas transações internacionais.
Na verdade, os BRICS não são um bloco militar ou geopolítico e não ameaçam ninguém, mas na prática a sua própria expansão já é um sinal do declínio da hegemonia dos valores e das instituições europeias, seja na Ásia, no Oriente Médio, na África, e mesmo na América Latina.
Assim como a firmação do poder econômico e militar da China e da Rússia, assinalam por si mesmo um declínio do alcance da liderança política e do império militar global dos Estados Unidos.
Basta contabilizar o número de países que resistiam às pressões e não se submeteram às sanções econômicas americanas contra a Rússia.
O BRICS já representa hoje um terço do PIB mundial e já é igual ou maior que o PIB do G7, possuindo 40% da população mundial, 18% do comércio mundial e 50% do crescimento da economia internacional.
Ou seja, mesmo sem agredir ninguém, nem se propor a ser o novo centro do mundo, o BRICS é por si mesmo a prova cabal de que o G7 já não tem mais representação nem representatividade para falar em nome da “comunidade internacional”.
EC – Qual o papel do Brasil nesse novo cenário político e econômico mundial?
Fiori – Acho que não é necessário relembrar nem muito menos comentar o que passou no Brasil desde o golpe de estado de 2015/2016, e em particular durante o último governo de extrema-direita que isolou o país dentro do sistema mundial e provocando um estrago enorme na nossa imagem internacional.
Algo verdadeiramente vergonhoso e humilhante para qualquer brasileiro minimamente antenado com o mundo.
Mas agora o Brasil está procurando se reposicionar dentro da política internacional através de uma política externa soberana e independente na defesa dos seus interesses nacionais, e pacificadora, com relação à Guerra da Ucrânia.
Este seu novo posicionamento, somado às suas dimensões e ao seu potencial de crescimento colocam o Brasil próximo do núcleo central do poder internacional.
Mas é importante ter claro que os países que ingressam nesse pequeno “clube” dos países mais influentes têm que estar preparados, porque entram automaticamente num novo patamar de competição entre os próprios membros desse grupo que lutam entre si para impor, a todo o sistema, seus objetivos, valores, e estratégias de projeção nacional.
EC – Como lidar com essa competição e da decorrente pressão?
Fiori – Para enfrentar as pressões decorrentes deste seu novo posicionamento, e de sua decisão de não ser vassalo de nenhuma outra grande potência, o Brasil deverá ter uma grande dose de coragem, persistência e inventividade.
E o que é mais importante, o Brasil terá que sustentar uma “vontade estratégica” consistente e permanente, ou seja, uma capacidade social e estatal de construir consensos em torno de objetivos nacionais e internacionais de longo prazo.
E no plano externo terá que assumir uma posição realista e pragmática, construindo alianças com quem quer que seja, desde que o Brasil consiga manter seus próprios valores, interesses, e objetivos estratégicos nacionais.
EC – Como avalia a proposta formulada pelo presidente Lula para a criação de um grupo de países neutros para mediar uma saída pacífica para a guerra?
Fiori – Acho que a proposta brasileira é meritória de todos os pontos de vista.
Sobretudo porque as Nações Unidas não têm capacidade de exercer esse tipo de arbitragem e conciliação e seu Conselho de Segurança menos ainda, porque seus cinco membros efetivos e permanentes são exatamente os grandes “fazedores de guerras” dentro do Sistema Mundial, a maioria deles envolvidos até o pescoço nesta Guerra da Ucrânia.
A proposta brasileira, entretanto, possui duas grandes limitações: a primeira é que não existe consenso sobre quem está ou não envolvido com a guerra, e que, portanto, seria aceito pelos países envolvidos; e a segunda é que ela não tem a menor possibilidade de avançar sem a concordância dos países envolvidos na guerra, tendo claro que a Ucrânia não tem a menor autonomia decisória nem tem nenhuma capacidade de fazer nada sem a autorização dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Os Estados Unidos, porque são de fato o país que está em guerra com a Rússia, e a Inglaterra, porque é o país tem liderado a russofobia em toda a Europa, e açulado o ânimo belicista da Polônia, dos países Bálticos e da própria presidente do Conselho da Europa.
Assim mesmo, acho que a inciativa brasileira deve ser vista também como parte de uma mobilização mundial e permanente em favor da paz, que pode tomar meses ou anos, mas que faz parte de um processo secular de consolidação da paz como um valor universal, contra a histeria belicista da Otan, que agora ainda está se propondo estender sua presença no território asiático, onde a maior parte das guerras modernas foi provocada pelos próprios europeus e os norte-americanos.
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Publicação de: Viomundo