Joice de Souza Soares: Sob o domínio do Comando Vermelho
Sob o domínio do Comando Vermelho
A letalidade que assola o Rio é menos uma guerra fracassada contra o crime e mais uma ferramenta política, onde corpos pobres são a moeda de troca para ambições de poder e narrativas de intervenção
Por Joice de Souza Soares*, em A Terra é Redonda
1.
No último dia 28 de outubro, as polícias do estado do Rio de Janeiro realizaram uma grande operação nos Complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte da capital fluminense. Segundo o governador Claudio Castro (PL) e o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, a empreitada tinha como objetivo prioritário o cumprimento de mandados de prisão contra inúmeros indivíduos, dentre eles Edgar Alves de Andrade, o Doca, principal líder do Comando Vermelho (CV) em liberdade.
Ainda de acordo com as informações oficiais, Doca – ou urso – ocupa posição de destaque na hierarquia da facção, estando abaixo apenas de Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar, ambos presos. Na fatídica operação, buscava-se, ainda, conter o avanço do domínio territorial do Comando Vermelho, conforme publicizado em várias falas de autoridades.
De acordo com publicações realizadas nos últimos anos por pesquisadores que se dedicam aos temas da violência urbana e da segurança pública no Rio, incluindo os trabalhos do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos (GENI), da Universidade Federal Fluminense (UFF), o controle de grupos armados em várias partes da Região Metropolitana não é exatamente uma novidade. Organizações criminosas como o Comando Vermelho, o Terceiro Comando Puro (TCP) e as milícias expandiram não apenas o domínio territorial por extensas áreas, mas também incorporaram novos ativos a seus mercados ilegais (Misse, 2007), estruturando redes que vão muito além do tráfico de entorpecentes nos morros e favelas.
Um exemplo significativo dessa transformação na dinâmica criminal diz respeito ao incremento da presença de milícias e facções no ramo imobiliário, fenômeno que ocorre não apenas no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo, como demonstram pesquisas oriundas do LabCidade. Mesmo assim, a expansão das milícias na Zona Oeste da capital e na Baixada Fluminense não foi acompanhada por ações significativas das forças de segurança.
Conforme ficou patente no relatório Grande Rio sob disputa: Mapeamento dos confrontos por território e em outras publicações realizadas pelo GENI-UFF, o número de operações policiais em territórios dominados por milícias foi significativamente menor que aquele observado em favelas e comunidades urbanas dominadas por facções como o CV e o TCP entre 2017 e 2022, por exemplo.
Assim, a despeito das modificações ocorridas nos mercados ilícitos nas últimas décadas, as estratégias adotadas pelo poder público, notadamente o estado do Rio de Janeiro, segue o anacrônico modelo de “guerra às drogas” (Leite, 2012), estabelecendo como alvo prioritário o comércio varejista de entorpecentes localizado nas grandes favelas das cidades fluminenses.
2.
De acordo com o governador Claudio Castro (PL), em sua primeira entrevista ainda na tarde do dia 28, a operação não contou com qualquer auxílio do governo federal. Nesse sentido, de acordo com o chefe do Executivo estadual, o Rio de Janeiro estaria “sozinho” em sua batalha contra o crime organizado. Àquela altura, já se contavam algumas vítimas fatais, incluindo o policial civil Marcus Vinícius Cardoso de Carvalho, e as reportagens davam conta de inocentes baleados.
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Poucas horas depois, a resposta do governo federal, na figura do Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, chegou. Segundo ele, não houve qualquer pedido de auxílio do governo estadual do Rio às autoridades federais. Ao longo daquele dia, inúmeras vias foram afetadas e uma grande parte da população do Rio de Janeiro sentiu os efeitos colaterais da operação.
Houve interrompimento na circulação de transportes públicos, alterações no trânsito, veículos incendiados, suspensão de aulas e de atendimentos em unidades de saúde – e não apenas em áreas diretamente afetadas pelas incursões policiais. O medo e a apreensão deram a tônica do retorno para a casa de centenas de milhares de trabalhadores cariocas. De acordo com as forças de segurança, tratava-se de ações orquestradas pelo Comando Vermelho em represália à operação, àquela altura ainda em curso nos Complexos do Alemão e da Penha.
Na noite do dia 28, havia 64 mortes oficialmente reconhecidas pelo governo do estado, incluindo quatro integrantes das forças de segurança – dentre elas, a do policial civil Rodrigo Cabral, na corporação há apenas dois meses. Já se tratava, então, da operação mais letal do Rio de Janeiro, superando a ocorrida em 2021 no Jacarezinho, com 28 mortes, também na Zona Norte da cidade.
Mas, como desgraça pouca é bobagem, o pior veio no dia seguinte. Ainda muito cedo, antes das 8h da manhã, os telejornais matutinos começavam a transmitir imagens que ganharam o mundo. Dezenas de corpos se acumulavam na Praça São Lucas, um dos acessos ao Complexo da Penha. Nas transmissões ao vivo, os carros de populares chegavam um após o outro, trazendo corpos ensanguentados, marcados por furos de balas, encontrados por moradores na área de mata das favelas. Foram, no total, pelo menos 74 cadáveres deixados para trás no dia anterior e recolhidos pela própria população.
3.
Há inúmeros aspectos estarrecedores relacionados aos acontecimentos do último dia 28 de outubro. Nestas linhas, caberia escrever sobre a necropolítica, nos temos de Mbembe (2018), que norteia as ações do Estado ao atingir letalmente corpos, majoritariamente negros e pobres; ao arrepio da lei, sem o devido processo legal, direito ao contraditório ou à ampla defesa.
As imagens de horror que estamparam as manchetes de jornais do Brasil e do mundo ainda permanecerão por muito tempo em nossa consciência, merecem debate aprofundado e demandam reflexões profundas sobre o que a sociedade brasileira admite – ou até mesmo deseja – como política pública de segurança. Basta uma rápida mirada nos comentários das notícias para se chocar com as comemorações pelas mortes.
No entanto, os acontecimentos mencionados anteriormente também permitem algumas considerações sobre o que parece estar por trás de tudo isso. Afinal, desde o fatídico dia 28, tanto Claudio Castro como Felipe Curi fazem questão de repetir incessantemente o termo “narcoterrista” para se referir aos indivíduos mortos na operação, à exceção dos policiais, é claro.
O epíteto ganhou destaque nos últimos meses a partir das falas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mas também nos discursos de inúmeros políticos brasileiros – incluindo aqueles ligados ao clã Bolsonaro. Em meio aos apelos por intervenção externa por conta das condenações sobre o julgamento de Jair Bolsonaro e demais membros da cúpula golpista do 8 de janeiro de 2023, cresceram os apelos à ação norte-americana contra as organizações criminosas ligadas ao tráfico internacional de drogas.
Sob tal perspectiva, facções como o Comando Vermelho deveriam ser enquadradas como terroristas, de modo a possibilitar ações efetivas de organismos e Estados estrangeiros no território nacional.
Em 22 de outubro, poucos dias antes da operação nos Complexos do Alemão e da Penha, o governo Trump bombardeou uma embarcação no Oceano Pacífico, em águas internacionais perto do litoral da Colômbia, matando cinco pessoas. Ações desse tipo têm sido constantes por parte do governo norte-americano nos últimos meses. O ataque de 22/10 pelos Estados Unidos rendeu elogios de políticos brasileiros. O senador Flavio Bolsonaro escreveu em suas redes sociais que estava com “inveja” do ocorrido, em resposta a uma postagem do secretário de Defesa norte-americano Pete Hegseth. E perguntou, ainda, se os norte-americanos “não gostariam de passar alguns meses no Rio de Janeiro.
As ações do governo de Donald Trump resultaram em reprovações de lideranças internacionais, como a proferida pelo presidente da Colômbia, Gustavo Petro; e uma fala bastante controversa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante sua viagem à Indonésia para discussões econômicas bilaterais. Em coletiva realizada no dia 24/10, Lula posicionou-se contrariamente à ação militar empreendida sob comando de Trump e disse: “Toda vez que a gente fala de combater as drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente, os usuários. Os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”.
4.
É perfeitamente razoável supor que Lula estivesse se referindo ao fato de os Estados Unidos serem um dos principais consumidores das drogas produzidas em países da América Latina. Mas, ainda que o presidente tenha se retratado horas depois, o discurso produziu danos políticos e movimentou as redes sociais. Políticos de direita e extrema direita aproveitaram o momento para vincular a imagem de Lula ao crime organizado, recuperando momentos da campanha eleitoral de 2022, quando Lula foi até o Complexo do Alemão, região sob domínio do Comando Vermelho.
Embora não seja adepta a teorias da conspiração, torna-se importante perceber o alinhamento evidente entre os acontecimentos mencionados. Apenas quatro dias após a fala de Lula, considerada desastrosa até para a base do governo, ocorre a operação nos Complexos do Alemão e da Penha. No mesmo dia da operação, foi aprovada uma moção de repúdio à fala do presidente na Câmara dos Deputados, no âmbito da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
Nos discursos oficiais proferidos pelo governador Claudio Castro e pela cúpula da segurança no estado, a operação ocorrida no Rio de Janeiro foi considerada exitosa, exceto pelas mortes dos quatro policiais. Isso porque, segundo Felipe Curi, as demais 117 vítimas, segundo números oficiais do governo do estado, eram “narcoterroristas”, “bandidos”, tratados como “opositores”. Aos críticos da operação mais letal da história do Rio, a pecha atribuída foi a de “narcoativistas”.
Não seria, nesse sentido, nenhuma grande extrapolação pensar que tais discursos têm prioritariamente dois objetivos: angariar capital político para Claudio Castro, futuro candidato ao Senado nas eleições do próximo ano; e fortalecer a falácia defendida pelo clã Bolsonaro, aliados políticos do governador do Rio, sobre a necessidade de intervenção norte-americana no Brasil. Aliás, de acordo com reportagens publicadas ainda no dia 28/10, um relatório elaborado pela Inteligência da Secretaria de Segurança Pública teria sido enviado ao governo norte-americano sobre a atuação do CV no Rio, tipificando a organização como terrorista.
Aliás, há outro ponto digno de nota nesta cronologia. Ainda de acordo com Felipe Curi, à exceção dos quatro policiais mortos, todos os mortos foram classificados como “opositores”. A utilização deste termo é recente em se tratando dos procedimentos adotados pela polícia fluminense. De acordo com o artigo 22 da Resolução SEPOL Nº 858, de 7 de outubro de 2025, o termo “interventor” se refere “ao agente do Estado” e o epíteto “opositor” relaciona-se “ao nacional morto em confronto” em inquéritos relacionados aos tipos criminais lesão corporal seguida de morte por intervenção de agente do Estado; lesão corporal de natureza grave decorrente de intervenção policial; lesão corporal decorrente de intervenção policial; lesão corporal decorrente de intervenção policial tentativa; morte por intervenção de agente do Estado; e morte por intervenção de agente do Estado tentativa.
5.
A discussão sobre a relação entre discursos e realidade é complexa. Mas, a esta altura, já há certo consenso de que os termos, conceitos e discursos são instituidores de realidade na medida em que instauram, refutam ou ratificam ações relacionadas àquilo que nomeiam, definem e/ou conceituam. Transformações, aparentemente sutis, nas formas de nomear não são isentas de significado – nem de intenções. A utilização indiscriminada de termos ligados ao “narcoterrorismo” para definir “opositores” tampouco.
Para os Complexos do Alemão e da Penha após a matança, não havia e ainda não há projeto. Doca, o alvo prioritário, não foi morto nem preso. E, os mercados ilegais não se constituem apenas de uma única organização. Para quem vive no território e teve que carregar os cadáveres, a incerteza do que virá assombra o amanhã. Começa-se agora, tardiamente, o esboço da articulação entre governos estadual e federal. Relatos de familiares de vítimas dão conta de abusos e equívocos na operação, em que inocentes teriam sido alvejados e tratados simplesmente como “opositores”.
Os cadáveres encontrados pelos moradores do Alemão e da Penha estamparam as páginas de inúmeros jornais, mas nada garante que algo semelhante não acontecerá em outros territórios do Rio. Enquanto isso, o jogo político segue de vento em popa. Os acontecimentos do último dia 28 de outubro dão indícios de que a segurança pública – ou sua ausência – pode ser um elemento passível de instrumentalização no tabuleiro político local, nacional e internacional.
O governo de Claudio Castro parece pouco preocupado com os fatos, mas muito atento às narrativas. O então governador, sob a justificativa de “guerra às drogas”, constrói e ratifica discursos que legitimam ataques à soberania nacional, ao passo que se aproxima de uma cadeira no Senado Federal – com a benção dos Bolsonaro. Por seu turno, Felipe Curi já é cotado para concorrer ao governo do estado pelo partido de Castro.
Talvez, o “sucesso” e o “êxito” aventados por ambos, ao comemorar a trágica operação, refiram-se justamente aos benefícios políticos, a partir dela, alcançados para cada um. Perde o Rio e sua população, mais uma vez.
Referências
GENI. Mapa histórico dos grupos armados do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: GENI, 2022.
GENI. Grande Rio sob disputa: mapeamento dos confrontos por territórios. Rio de Janeiro: GENI, 2024.
MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1 edições, 2018.
MISSE, M. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. São Paulo, Estudos Avançados, v. 21, n. 61, 2007.
*Joice de Souza Soares é doutora em História e professora do Programa de Pós-Graduação em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE-IBGE).
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Publicação de: Viomundo
