Jair de Souza foi ao ato na São Francisco: ‘Para existir de verdade, a democracia precisa garantir o mínimo aceitável a todos’
As ruas do centro de São Paulo e o significado da democracia
Por Jair de Souza*
Na manhã fria e chuvosa deste 11 de agosto, uma vez mais em minha não tão curta trajetória de vida, saí às ruas para participar de um ato político de luta em busca de um Brasil mais justo: a leitura da carta pelo ESTADO DE DIREITO, SEMPRE, diante das arcadas da Faculdade de Direito da USP, no largo São Francisco, em São Paulo.
Tinha clareza de que estava indo para uma atividade em defesa da democracia. Sim, da democracia, esta palavrinha mágica que parece significar tanta coisa e, ao mesmo tempo, não querer dizer coisa nenhuma.
Mas, o que deveria eu entender por aquilo que estava me fazendo enfrentar a inclemência do tempo nesta manhã escura e nublada?
No entanto, ao transcorrer a pé a rota que me levaria da estação do metrô, na Praça da Sé, até o local onde se realizaria o evento (Largo São Francisco), a essência do que deveria simbolizar a democracia pela qual eu estava lutando foi se tornando muito mais clara e visível.
Como já vem sendo costumeiro há pelo menos cinco anos, as ruas de nossas cidades estão ficando, a cada dia, mais repletas de seres humanos sobrevivendo em condições bem abaixo de qualquer nível de pobreza que se possa traçar.
Porém, em um dia de tanto frio e com uma chuvinha persistente, as cenas de sofrimento e tristeza que eu já pudera observar com anterioridade se mostravam agora muitíssimo mais cruéis e dolorosas.
Aquelas centenas, ou, quem sabe, milhares de pessoas deitadas ao relento, envolvidas em seus maltrapilhos cobertores, já não tinham de suportar tão somente o frio cortante que lhes penetrava os ossos.
Agora, estavam recebendo, como bonificação da desgraça, a água fria da chuva que encharcava os parcos panos que serviam para lhes proteger. Realmente, seria preciso não dispor de mais nenhum resquício de humanidade para não compartilhar a dor.
E, não nos iludamos, se as dores pareciam imensas e insuportáveis para mim que apenas observava as cenas, imaginem como deveriam ser para aqueles que as estavam sentindo na própria carne.
É certo que, em poucos minutos, eu ia estar junto a outros para clamar por democracia. Também é certo que nem todos os que ali iam estar enxergavam a questão de igual maneira.
Para alguns, felizmente (creio eu) a minoria, a democracia é essencial, pois, em sua ausência, deixa de haver previsibilidade de mercado. E, sem esta previsibilidade, os negócios não podem fluir como seria desejável.
Em outras palavras, as cenas de tristeza descritas mais acima não precisariam necessariamente ser tidas como intoleráveis, desde que a previsibilidade de realização de lucros do capital não chegasse a ser afetada.
Para esta concepção de democracia, as regras que blindam as operações do capital das vicissitudes de medidas governamentais imprevistas são o que de mais sagrado pode haver.
A fome, a miséria e o infortúnio de alguns (ainda que estes alguns sejam muitíssimos) não são temas que digam respeito propriamente à democracia. Talvez, na melhor das hipóteses, poderiam entrar no rol das preocupações filantrópicas das classes mais abastadas.
Quanto a mim, devo confessar, tudo aquilo veio reforçar uma visão que já cultivo há bom tempo: a democracia só tem sentido se for para melhorar o nível de vida do conjunto da população e para impedir que a desigualdade impere ao sabor do poder de fogo dos mais abastados.
Ou seja, a democracia não pode se limitar a uma questão de formalidade.
Para existir de verdade, ela precisa garantir a todos um patamar mínimo aceitável de satisfação das necessidades básicas. Meu entendimento da democracia, portanto, não admite a prevalência da meritocracia numa sociedade composta de massas de famintos e uns poucos detentores de quase tudo.
Está mais do que evidente que o bolsonarismo é uma desgraça para quase todo mundo no Brasil atual.
Entretanto, as medidas que atendem e solucionam os problemas vivenciados pelos banqueiros, pelos grandes produtores agrários ou pelos grandes empresários industriais não parecem ser as mesmas que o restante da população requer para aliviar suas condições de vida.
Se, por um lado, os banqueiros e todos os que ganham com o rentismo desejam manter o teto de gastos para garantir a previsibilidade de que vão continuar auferindo seus lucros e dividendos, nós almejamos acabar com a famigerada lei do teto de gastos para pôr fim à tragédia dos sem-teto, aqueles que nem sequer têm onde morar.
Dito de outra maneira, para nós a temática relacionada à questão de teto é esta!
Chegando ao local da concentração, pude constatar que a esmagadora maioria dos presentes era gente do campo popular que, muito provavelmente, concordaria com a ideia de democracia que eu venho nutrindo.
Fiquei muito feliz em ver por ali tantos lutadores de longa data. Foi com grande satisfação que pude abraçar ao glorioso capitão Wladimir, da Democracia Corinthiana, e tantos outros de tantas outras lutas.
Não consigo acreditar na existência de democracia com tanta desigualdade, com tanta gente faminta, com tanta gente entregue ao deus-dará.
E, gostaria de ressaltar, considero que o empenho de cada um de nós para eliminar novamente esta desgraça que o golpe de 2016 e o bolsonarismo nos trouxeram de volta não tem nada a ver com a prática da caridade.
A luta para erradicar a fome e acabar com a miséria absoluta é fundamental para que possamos fazer valer nossa própria humanidade.
Não é admissível que nos sintamos verdadeiros seres humanos sem que tenhamos preocupação com a garantia básica da vida dos mais necessitados.
Aceito e conclamo a consagração de uma frente o mais ampla possível para garantir a sobrevivência da democracia que está ameaçada.
Mas, não acho que isto seja suficiente. A luta para que nossa democracia vá além da mera formalidade é um dever de todos os que desejamos de coração dar um basta na injustiça que vem assolando nosso país e nosso povo.
*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ
Publicação de: Viomundo