Heleno Corrêa: Inaep — a ética de elite influente em oposição à ética compartilhada com o controle social

Editorial

Inaep: a ética de elite influente em oposição à ética compartilhada com o controle social

Por Heleno Rodrigues Corrêa Filho*, Revista Saúde Debate**

O Brasil entrou na lista dos países que regulam a ética em pesquisa em 1996[1]. Até aquela data, os pesquisadores brasileiros tinham de avaliar seus projetos em raros comitês de ética locais de poucas instituições acadêmicas de ensino e pesquisa ou indústrias farmacêuticas. Algumas referências sobre a natureza ética das pesquisas eram remetidas para comitês localizados no exterior, notadamente na Europa ou na América do Norte, onde eram conhecidos pela sigla ‘IRB’ (Internal Review Board).

A Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996 [1], do Conselho Nacional de Saúde (CNS), criou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – cujos membros são eleitos pelas organizações civis que participam do CNS.

As resoluções da Comissão sempre passaram pela discussão do Plenário do CNS antes de serem homologadas e publicadas pelo Ministro da Saúde.

A partir de sua criação, a composição da Conep atende a critérios de paridade entre usuários e voluntários participantes de pesquisa, sendo moldado, para eles, durante os projetos de pesquisa com seres humanos, o sistema de proteção de direitos.

Dessa maneira, surgiram resoluções longamente elaboradas sobre a pesquisa em saúde, não apenas relativas à ‘pesquisa clínica’, de interesse específico para testar tecnologias de diagnóstico, tratamento e acompanhamento de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) [2].

O amplo espectro das pesquisas de interesse das pessoas humanas também abrangeu pesquisas sociais, antropológicas, psicossociais, políticas, econômicas e administrativas, ligando-as ao campo de testes farmacológicos e de procedimentos tecnológicos com pessoas humanas [2].

Ao longo dos 29 anos de funcionamento, surgiram resoluções normativas, infralegais (portarias ministeriais), para suprir a ausência de leis ou decretos que regulamentassem as pesquisas com seres humanos no Brasil.

Apoie o VIOMUNDO

No ano politicamente turbulento de 2015, em que se articulava o golpe de Estado que derrubou a Presidenta Dilma Rousseff em 2016, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 200 [3], de autoria inicial dos senadores Ana Amélia, Waldemir Moka e Walter Pinheiro.

Esse projeto passou a tramitar na Câmara dos Deputados sob o nº 7.082, de 2017 [4]. A tramitação ‘em regime de urgência’ se deu até o dia 8 de novembro de 2023, quando foi transformado na Lei Ordinária nº 14.8742, em 29 de maio de 2024. Em 17 de junho de 2025, foram derrubados os vetos Presidenciais, os quais foram publicados no Diário Oficial da União em 2 de julho de 2025 [5].

Foram inúteis os esforços das organizações sociais ligadas à academia e aos serviços de saúde do SUS para mitigar os danos causados pela lei, que ocupou um espaço vazio na política de saúde do País.

Inúmeros apelos foram feitos aos senadores e deputados para que considerassem que os direitos da Representação dos Participantes de Pesquisa (RPP) deviam ser o principal objetivo de qualquer lei destinada a regular a ética em pesquisa com seres humanos.

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) fizeram romarias inúteis aos gabinetes dos legisladores, pedindo atenção aos aspectos éticos e à importância da defesa dos RPP.

A lei final apresentou aspectos que jamais teria se as sociedades acadêmicas plurais tivessem, no mínimo, sido ouvidas. Veio a ‘Lei Ruim’, e a Presidência da República opôs vetos considerados pequenos e insignificantes aos maiores danos causados por ela. Alguns dos vetos acabaram sendo derrubados em sessão do Congresso Nacional.

Por que se diz que a lei é ruim? O principal motivo é o de submeter o Comitê que analisa a ética das pesquisas ao mando e à escolha de um representante do Poder Executivo – o Ministro de Estado da Saúde, aconselhado por um grupo assessor designado por um Secretário Nacional subordinado ao Ministro.

A Lei nº 14.874 incluiu um detalhe cruel: os voluntários de testes clínicos cujos resultados sejam positivos perdem o direito ao fornecimento gratuito do novo medicamento ou tecnologia após cinco anos de término do ensaio clínico. Isso pode ser ‘reavaliado’ pelo próprio pesquisador coordenador ou por representantes do ‘patrocinador’.

Não é mais obrigação fornecer o medicamento a quem foi voluntário, tenha sido membro do grupo de teste ou do grupo-controle. Se houver demandas negadas pelos patrocinadores, o SUS deverá pagar pelo fornecimento da nova tecnologia testada e aprovada apesar do risco corrido pelos voluntários que serão desassistidos após o quinto ano.

A nova lei destruiu o papel representativo principal do CNS, cujo enfoque nos RPP desapareceu, juntamente com os quase 30 anos de experiência normativa e articulada pela Conep. Igualmente, desapareceu a articulação nacional, centralizada na Conep, dos mais de 16 mil consultores voluntários, em cerca de 900 Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), que foram criados a partir da experiência do CNS com pesquisas em saúde, não somente com as ‘pesquisas clínicas’.

Para atender ao desejo de indústrias farmacêuticas e produtoras de tecnologias em saúde, com interesses específicos em angariar ‘voluntários’, aprovar e vender seus produtos, a lei considerou que a pesquisa em saúde com seres humanos era apenas de natureza clínica e tecnológica.

O abandono dos CEP aos próprios conflitos locais e internacionais é cruel, pois cria uma república independente em cada CEP, com o controle local exercido por forças e poderes diversos do que possam orientar no País a busca por equidade científica.

Um aspecto ruim dessa lei foi atribuir ao Poder Legislativo função própria e exclusiva do Poder Executivo de criar estruturas governamentais e designar orçamento e forma de executar atividades finalísticas. Esse desencontro entre o Legislativo e o Executivo é conhecido como vício de iniciativa formal.

A lei, de origem parlamentar, criou e organizou um órgão da administração pública federal (Instância Nacional de Ética em Pesquisa – Inaep no Ministério da Saúde), o que seria de iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, § 1º, II, “b” e “e”, da Constituição Federal de 1988) [6]

Foi por esse motivo que a SBB ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei nº 14.874/2024.

Outro aspecto ruim da lei foi a subordinação da ética em pesquisa a um órgão do Executivo, com contato permanente com os interesses dos produtores e testadores de novas tecnologias em saúde. Quem produz tecnologias novas tem interesse em vê-las no mercado público ou privado, o que gera conflito de interesse com quem deseja incorporar novas tecnologias em saúde, sejam elas ‘duras’ ou ‘leves’, compatíveis com a defesa ética dos participantes de pesquisa [7].

O governo brasileiro do período 2019-2022 queria aprovar o uso de medicamentos ineficazes e impedir o uso de vacinas e o isolamento social para suposta-mente controlar a pandemia da covid-19. Se tivesse os meios proporcionados pela nova lei ‘de pesquisas clínicas’, teria conseguido fazer o que desejava, sem encontrar resistência científica, social e legal.

Com a publicação da Lei nº 14.874/2024, passamos a um período de ‘vazio legislativo’ a partir de agosto de 2024.

A lei não falava sobre manter em vigência as normas do CNS nem sobre o que fazer com a Conep, que continuava funcionando e julgando, em média, mais 300 novos projetos de pesquisa por mês, recebendo dos CEP projetos sensíveis, multicêntricos, internacionais, e sobre populações consideradas em situação de vulnerabilidade, tais como indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais.

Como a lei não previa que a estrutura antiga não funcionaria mais, houve um período em que as portarias regulatórias anteriores poderiam ser juridicamente contestadas, bem como os pareceres que aprovavam ou desaprovavam novos projetos. Sem decreto federal e sem portaria ministerial, nada valia, tudo passava a inexistir do ponto de vista legal e jurídico.

Houve um período de um ano, de agosto de 2024 a agosto de 2025, em que aconteceram expectativas e apelos renovados do Cebes, da Abrasco, da SBB e da Frente pela Vida para que, ao editar um decreto federal, o Presidente e o Ministro da Saúde pudessem atenuar os efeitos ruins da lei, colocando medidas de controle de danos, tal como trazer a estrutura e o funcionamento já testados e articulados durante quase 30 anos ‘para dentro’ da Inaep.

Assim, foi criado o bordão ‘Conep na Inaep’, para solicitar que um decreto federal propiciasse o controle do conflito de interesses, a subordinação ao capital industrial patrocinador das pesquisas, e mantivesse o controle ético sobre os projetos de pesquisa nacionais.

Na fase político-administrativa da implantação da lei aprovada em 2024, integrantes da Conep tentaram retomar aspectos importantes, como a existência de controles éticos e sociais, para que o Presidente da República assinasse o decreto de regulamentação da lei e o Ministro da Saúde emitisse a portaria operacionalizando o futuro decreto.

Destaca-se que isso aconteceu no Brasil em paralelo ao que, em abril de 2025, fez o governo dos Estados Unidos da América com a demissão do painel de especialistas, que cuidava da ética em pesquisa no National Institutes of Health (NIH), órgão ligado ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHHS).

Após mais de um ano de tratativas, desencontros, silêncios políticos e administrativos, manifestações escritas nos sites e surgimento de novas associações lobistas financiadas pelo poder industrial e tecnológico, finalmente veio o Decreto nº 12.651, de 7 de outubro de 2025, que piorou a Lei nº 14.874/2024 [8].

Os pedidos das associações científicas e acadêmicas foram ignorados sob o argumento de que “um Decreto não legisla sobre o que a Lei dispõe”.

Não adiantou argumentar que o decreto pode acrescentar dispositivos que a lei não contempla, o que permitiria ‘regulamentar’ a ‘Conep dentro da Inaep’. Assim, nada sendo feito.

A nova portaria editada pela Secretária Nacional da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Sectics) reduz o papel do CNS a 6 representantes (18%) da quota de votos de um Comitê de 33 participantes, dos quais 15 serão pessoas de notório saber designadas pelo Ministro da Saúde [9].

Uma vez instituído tal comitê, a Conep desaparece do mapa com todo o seu corpo articulado e re ferenciado a normas no período 1996-2025, e os CEP tornam-se núcleos autônomos, regulados pela Inaep dentro da nova formulação e composição.

Foi por esse motivo, e diante do insucesso de todas as demandas, que a maior parte dos Conselheiros da Conep decidiu renunciar e não mais emitir pareceres sobre os novos projetos de pesquisa. Se o fizessem, estariam se expondo juridicamente, podendo todo o trabalho vir a ser invalidado mediante atos administrativos do Ministro ou da Sectics [10].

Sempre será possível corrigir e encontrar soluções legais, administrativas e políticas para os impasses no campo da saúde coletiva no Brasil.

Desde 1976, o Cebes tem se posicionado em relação às questões organizativas, como foi o caso do Projeto Mais Médicos e, recentemente, do Projeto Agora Tem Especialistas, argumentando criticamente sobre as necessidades de corrigir aspectos legais, formais e políticos dessas grandes iniciativas estruturantes do SUS.

Há a expectativa de, ao produzir consciência crítica, contribuição analítica e engaja mento participativo, será possível impulsionar, de maneira adequada, o que pode ser visto como uma política frustrada de conciliar com os adversários e ignorar os aliados. Olhemos para o futuro.

Referências

[1] Ministério da Saúde (BR); Conselho nacional de Saúde. Resolução 196, de 10 de outubro de 1996. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas em seres humanos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil [Internet], Brasília, DF. 1996 out 16 [acesso em 2025 out 10]; Edição 201; Seção I:21082-5. Disponível aqui.

[2] Presidência da República (BR). Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024. Dispõe sobre a pesquisa com se- res humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2024 maio 29 [acesso em 2025 out 10]; Edição 103; Seção I:3-7. Disponível aqui.

[3] Senado Federal (BR). Projeto de Lei nº 200, de 2015 [Internet]. Dispõe sobre a pesquisa clínica. Brasília, DF: Senado Federal; 2015 [acesso em 2025 out 25]. Disponível aqui

[4] Câmara dos Deputados (BR). Projeto de Lei nº 7.082, de 2017 [Internet]. Dispõe sobre a pesquisa clínica com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos. Brasília, DF: Câmara dos Deputados; 2017 [acesso em 2025 out 25]. Disponível aqui.

[5] Presidência da República (BR). Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024. Dispõe sobre a pesquisa com se- res humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2025 jul 2 [acesso em 2025 out 25]; Edição 122; Seção I:2. Disponível aqui.

[6] Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

[7]Merhy EE, Magalhães-Júnior HM, Rimoli J, et al. O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Editora HUCITEC; 2003. 296 p.

[8]Presidência da República (BR). Decreto nº 12.651, de 7 de outubro de 2025. Regulamenta a Lei nº 14.874, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Diário Oficial da União [Internet], Brasília, DF. 2025 out 8 [acesso em 2025 out 25]; Edição 192; Seção I:3-5. Disponível aqui.

[9] Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Portaria SECTICS/MS nº 85, de 14 de outubro de 2025. Institui Grupo de Trabalho Temporário – GTT para apoiar o processo de implementação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e da Instância Nacional de Ética em Pesquisa – INAEP. Diário Oficial da União [In- ternet], Brasília, DF. 2025 out 15 [acesso em 2025 out 25]; Edição 197; SeçãoI:170. Disponível aqui

[10] Lemes C. 26 conselheiros da Conep renunciam: Em defesa da proteção dos brasileiros participantes de pesquisas em saúde. VioMundo [Internet]. 2025 out 14 [acesso em 2025 out 25]; Saúde. Disponível aqui.

*Heleno Rodrigues Corrêa Filho, do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), é pesquisador da Escola Superior de Ciências da Saúde, da Universidade do Distrito Federal (UnDF).

* Editorial da Revista Saúde Debate, V. 49, N. 147, e147ED, OUT-DEZ 2025. Publicação oficial do Cebes

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *