Guilherme Estrella, o Pai do Pré-Sal, defende: ‘Governo Lula deve editar Medida Provisória para retomar a gestão da Petrobrás’

“Governo Lula deve editar Medida Provisória para retomar a gestão da Petrobrás”

Na revista Esquerda Petista* 

O g.

Por dez anos, entre 2003 e 2012, portanto ao longo dos dois primeiros mandatos do presidente Lula e nos dois primeiros anos do governo Dilma Rousseff, Estrella foi diretor de Exploração & Produção da Petrobrás e um dos principais responsáveis pela descoberta dos campos petrolíferos existentes no chamado pré-sal, nas bacias de Campos (RJ) e Santos (SP).

1 de julho de 2014: Presidenta Dilma entrega uma placa de homenagem ao geólogo Guilherme Estrella; foi na cerimônia de celebração dos 500 mil barris diários de petróleo do Pré-Sal. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Antes disso, já havia exercido diferentes cargos técnicos e gerenciais da Petrobrás, de geólogo de poço na Bahia a superintendente geral do Centro de Pesquisas, Desenvolvimento e Engenharia (Cenpes), no Rio de Janeiro.

Recebeu títulos de doutor “honoris causa” conferidos pela Universidade do Porto (Portugal) e pela Universidade Federal de Ouro Preto.

Estrella defende a retomada da gestão da Petrobrás pelo governo Lula, retirando a empresa pública da condição de refém dos acionistas privados e rompendo com a política de distribuição de dividendos e com outras práticas atuais que ignoram as necessidades da classe trabalhadora e do país, como o preço do gás.

Petista “de carteirinha”, Estrella concedeu esta entrevista à Esquerda Petista em março de 2025, quando estava prestes a completar 83 anos de idade.

A conversa foi conduzida por Alana Gonçalves, estudante de Serviço Social (UFRGS), Rafael Prado, presidente do Sindicato dos Petroleiros de São José dos Campos (SP), e Pedro Estevam da Rocha Pomar, jornalista.

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Abaixo, a íntegra da entrevista.

2008: Funcionários da Petrobrás comemoram primeira extração de óleo do pré-sal no campo de Jubarte, que está localizado na Bacia de Campos, no litoral do Espírito Santo. Foto: Agência Petrobrás de Notícias

Esquerda Petista: Como é que se deu a descoberta do pré-sal?

Guilherme Estrella: Nós completamos uma série de estudos geofísicos, geológicos e geofísicos que estavam realizando, e a alocação do pré-sal, que foi Parati, se não me engano, e nós perfuramos Parati.

Investimos, não foi um gasto. Em pesquisa e desenvolvimento você não tem gasto, você tem investimento. Porque arriscado é, como toda empresa petrolífera, aliás, como todo trabalho de pesquisa. E acabamos descobrindo o pré-sal e dispendemos mais de 200 milhões de dólares no poço, uma coisa que era absolutamente impensável, mas com o Lula na Presidência.

Então nós estávamos cumprindo a determinação do Presidente da República, vamos investir, apesar de estarmos no caminho da autossuficiência, com os campos já descobertos na Bacia de Campos, pela Petrobrás — e pela Petrobrás como monopólio estatal, isso é importante de dizer.

E foi assim, a Diretoria de Exploração nomeou logo um grupo dos melhores engenheiros que nós tínhamos, que vinha com o pessoal do Cenpes, para dizer: “nós vamos perfurar, vocês se reúnam“, e nós demoramos um ano e meio para perfurar esse poço. E acabamos batendo no pré-sal.

Muitos anos atrás, eu era geólogo da Bacia do Espírito Santo, e perfurávamos muito no mar e não descobrimos nada. E o pessoal da Bacia de Campos, logo ao sul, estava descobrindo petróleo.

E a gente perfurando os mesmos modelos geológicos da Bacia de Campos, e não achávamos petróleo. Então, começamos a desconfiar de uma série de informações geológicas que nós tínhamos: “Por que o pessoal de Campos descobre, e nós aqui no Espírito Santo não descobrimos?”

E achamos, nos nossos estudos lá, que o único dado que nós não tínhamos, que não produzimos para as nossas perfurações, na construção de nossos projetos, é o dado da rocha geradora de petróleo, que é fornecido pelo Cenpes.

Então montamos um grupo, chamamos um especialista americano, que era espetacular, e descobrimos que a rocha geradora desse petróleo da Bacia de Campos, de Santos e do Espírito Santo para o Sul, nessas duas grandes bacias, que vão até Santa Catarina, estava muito abaixo do sal.

Era uma rocha geradora muito antiga, e a pressão do soterramento e o aumento de temperatura transformam essa matéria orgânica em petróleo. E, aí, com a profundidade, as rochas naturalmente se fraturam, e esse petróleo vem para cima e se deposita em rochas permoporosas, que estejam acima dele, cobertas por um selo. Isso é importante, é geologia de petróleo, mas é muito simples, tem que ter um selo, porque senão ele vem de baixo e passa para cima.

Era isso que acontecia na Bacia de Campos, porque o sal se movimentava muito e havia buracos no sal, e o petróleo chegava ali e passava, e se depositava lá em cima em rochas muito mais novas, e que deram a autossuficiência no final das contas. Mas na Bacia de Santos não, porque o sal é muito espesso, e o petróleo gerado lá embaixo, ele topa embaixo do sal.

Então nós tínhamos dúvida em relação ao tipo de rocha que nós íamos encontrar embaixo do sal, se era uma rocha permoporosa, e no primeiro poço, nesse em que nós gastamos mais de 200 milhões de dólares, já constatamos que era uma rocha muito porosa. Só que, é uma história interessante, essa rocha estava cheia de gás, tinha pouco óleo, e a análise mostrou que tinha muito gás carbônico, 40% de gás carbônico, então não era comercial naquela época.

Rapidamente o pessoal da geologia e geofísica analisou aqueles dados que a gente obteve no primeiro poço, analisou o restante da área, e viu que as características que a gente encontrava nesse poço que tinha só gás, eram diferentes das outras áreas em que essas características geológicas não se manifestavam.

E o pessoal disse: “Olha, muito provavelmente, em outras áreas vamos ter muito petróleo e também muito gás”, e assim foi que descobrimos um grande campo, que é Tupi, cheio de petróleo e gás natural, então essa foi a história.

Agora, havia resistências, nós herdamos uma empresa financeira, então o governo Fernando Henrique Cardoso formou uma cultura política nova na Petrobrás, retirando da nossa missão os nossos compromissos com o Brasil, essa é a verdade.

Uma grande empresa precisa ter sinalizadores fortes para o seu grupo de empregados, se a sinalização é de uma forma, é natural que grande parte deles se associe a ela e cumpra a missão que o governo tem que dar como acionista majoritário da companhia.

Então esse grande investimento também foi, de alguma forma, visto com um pouco de criticidade dentro da empresa, para que nós investíssemos tanto, mas essa foi a história.

Tecnologia desenvolvida pela Petrobrás permite explorar reservas perfurando duras camadas de sal. Ilustração: Agência Petrobrás de Notícias

Esquerda Petista: Mas imagino que, assim como você, os outros diretores tenham sido nomeados já pelo governo Lula. Então essa resistência partia de onde, de quadros intermediários? De onde vinha essa resistência?

Guilherme Estrella: Partia do corpo técnico e gerencial. Eu me aposentei, por uma questão interna da Petrobrás, com que eu não concordei, e já tinha tempo de aposentadoria, então preferi me aposentar, mas eu trabalhei sempre numa empresa estatal, não é mesmo?

Aquela empresa estatal tinha uma missão com o Brasil. Quando eu cheguei, encontrei lá uma novidade, não sou especialista, mas dá para entender. Eu encontrei um negócio chamado EVTE, esse EVTE é “Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica”.

Então se o camarada ia investir num poço, como um projeto qualquer, a empresa exigia, já sendo uma empresa de gestão privada, que o projeto passasse nesse EVTE.

Na área de exploração, tinha como base o preço do petróleo internacional. O petróleo agora está a 60 dólares o barril, mas a história do petróleo mostra que hoje está a 60, amanhã estará a 20, e depois de amanhã estará a 120 dólares o barril. Então, na área de exploração, perde sentido você fazer um EVTE, não é mesmo?

E a nossa realidade é a seguinte: até hoje, você fura dez poços para achar um campo de petróleo, então o risco é muito grande. Foi isso que a Shell fez, e a Petrobrás acompanhou, no poço de 2001. Fizeram o EVTE, disseram “não, o risco é grande, nós vamos investir um monte de dinheiro aqui, não vai ter lucro”.

Então essa é a cultura, eu não vou criticar em outras atividades, mesmo assim não pode ser uma regra da empresa, porque a empresa tem compromisso com o Brasil, não é mesmo? É melhor você investir, e correr risco investindo no Brasil, do que importar e comprar petróleo lá fora, não é mesmo?

É um problema até de soberania nacional, segurança nacional, e na área de exploração, especialmente. Então esse foi o ambiente que eu encontrei lá.

Esquerda Petista: Você falou que nessa primeira tentativa, nessa primeira pesquisa, nós gastamos 200 milhões de dólares. Por que se gasta tanto? Que despesas são feitas para você conseguir fazer essa descoberta?

Guilherme Estrella: Petróleo é briga de cachorro grande, a gente sabe disso. Qual é a atratividade da Faixa de Gaza? Que no Mar Mediterrâneo, mar territorial da Faixa de Gaza, se identificaram grandes reservas de gás natural. Tem outros motivos, o sionismo, mas esse está no centro.

O problema da guerra da Ucrânia, qual é o desastre que a Europa está enfrentando? É que cortaram o suprimento de gás russo.

O Sudão era um país enorme, descobriram o petróleo no sul, os caras fundaram uma nova república: o Sudão do Sul. E por aí vai.

Então, a indústria petrolífera é briga de cachorro grande. Uma sonda hoje em águas ultraprofundas não custa menos de um milhão de dólares por dia. Por dia. Então é muito caro, muito caro mesmo. Naquela época, inclusive, com águas ultraprofundas, em torno de dois mil metros de lâmina d’água, uma coisa assim, impensável, e aí o parênteses que eu gostaria de abrir.

Em 1992, veja só, Petrobrás como um monopólio estatal. Eu era superintendente geral do Cenpes, e sucedi no Cenpes um engenheiro brilhante, que foi o condutor de uma grande virada na Petrobrás.
Ele se chama José Paulo Silveira, um paulista de Sertãozinho.

Fui nomeado adjunto do Silveira, e o Silveira leva para o Cenpes uma filosofia de trabalho absolutamente moderníssima. Ele chama especialistas brasileiros, e diz o seguinte: “O avanço e a inovação de uma empresa só se dá pela interação da área de pesquisa e desenvolvimento com a área operacional, a área operacional é fundamental para a inovação”.

Então, ele transformou o Cenpes, que era um órgão isolado, de mestres, de doutores, de avental branco, impecavelmente branco, num órgão associado ao órgão operador, na frente operacional. Os nossos projetos eram projetos conjuntos.

Quando ele chegou lá comigo, o projeto do Cenpes era de pesquisa. E o Silveira junta a pesquisa com a área de engenharia, no Cenpes, para transformar ciência em tecnologia. Era necessária uma maior aproximação com a área operacional.

Em 1992, a Petrobrás foi eleita pela Offshore Technology Conference (Conferência de Tecnologia Offshore), realizada em Houston, Texas, como a ‘melhor empresa de petróleo do mundo’, ‘melhor engenharia de petróleo do mundo’. Guilherme Estrella representou a Petrobrás no evento

Então, em 1992, ainda como monopólio estatal do petróleo, nós ganhamos o chamado “Nobel da Engenharia de Petróleo”, que é atribuído pela Offshore Technology Conference, realizada em Houston, Texas, como a “melhor empresa de petróleo do mundo”, “melhor engenharia de petróleo do mundo”, com os nossos projetos de perfuração em águas profundas da Bacia de Campos, onde nós já tínhamos descoberto petróleo, mas não havia, no mundo inteiro, tecnologia para produzir. E nós, o Cenpes, junto com o órgão operador, que era o Departamento de Produção da Petrobrás, desenvolveu.

Isso foi reconhecido mundialmente. Então, nós vencemos como um monopólio estatal. Eu fui lá receber, eu já era superintendente geral do Cenpes. Dei uma entrevista, o pessoal perguntou de tudo, como é que uma empresa monopolista, de um país considerado subdesenvolvido, dá um passo gigantesco desses na área de engenharia?

“Vocês não têm competidores?” Eu disse que não, “para avançar não precisa de competição, precisa de compromisso”. Precisa de compromisso com objetivos claros, e o objetivo da Petrobrás é com o Brasil. Essa foi a nossa competição.

Quando nós enfrentamos o pré-sal, é importante dizer, 2 mil metros de lâmina d’água, isso não é brincadeira, dois quilômetros de profundidade de mar, e depois mais três, quatro quilômetros perfurando abaixo disso, é um negócio extraordinário. E precisou um investimento e uma certa visão tecnológica da empresa baseada no compromisso com o Brasil.

As sondas para perfurar nessa grande profundidade, com segurança operacional, isso é também outro espaço que a gente abre, a Petrobrás produz e não se tem notícia de uma gota de óleo de petróleo no mar, e nós produzimos desde 2006 praticamente, não tem uma gota. Se tivesse, O Globo colocaria na primeira página.

Então as sondas custavam mais caro, claro que custavam mais caro, até porque eram sondas que não eram comuns no mundo. Uma coisa é você perfurar mais de 2 mil metros de lâmina d’água, e outra coisa é você perfurar com segurança total, com absoluta segurança operacional, então pagamos até mais caro por sondas, eram três sondas, uma já estava disponível, e foram decisões políticas baseadas na própria competência que a Petrobrás já tinha adquirido, já exibia na área de exploração e produção, como nas outras áreas também. Foi um processo todo construído em cima de uma visão que tinha como base o compromisso com o Brasil e a autossuficiência brasileira.

Ilustração: Agência Petrobras/Divulgação

Esquerda Petista: Pelo que você está contando, é óbvio que isso acabou envolvendo a participação de muitas pessoas, mas você é tido como o “Pai do Pré-Sal”: Como é que você define o seu próprio papel nesse processo de descoberta do pré-sal?

Guilherme Estrella: Meus amigos, eu já tenho 83 anos de idade. Eu já sou um sobrevivente de outro planeta, meu planeta não é esse aqui, sob o ponto de vista da cultura, da formação ética, do ser humano, essa coisa toda, não é? Eu respondo, quando sou chamado de “Pai do Pré-Sal”, que efetivamente nós tivemos muitos “pais” do pré-sal, para você escolher um é difícil.

Agora, a “Mãe do Pré-Sal” foi a política do governo Lula, essa a gente não pode esquecer, é inquestionável, a gente não pode dizer que não foi.

15 de julho de 2010: A Petrobrás produz o primeiro óleo da camada pré-sal do Campo de Baleia Franca, no Espírito Santo. Entre os presentes à cerimônia: o presidente Lula, Sérgio Gabrielli e Guilherme Estrella, respectivamente presidente e diretor de Exploração e Produção da Petrobrás. Fotos: Blog da Petrobras

Esquerda Petista: Agora vamos recuar um pouco: como é que foi esse processo que levou você à Diretoria de Exploração e Produção da Petrobrás? Você já falou sobre isso em outras entrevistas, mas a gente queria que contasse para nós como é que chegou a esse posto tão importante na Petrobrás e, com isso, acabou dando uma contribuição bastante relevante para o nosso país:

Guilherme Estrella: Eu vou começar pelo fim, eu fui escolhido por eliminação. Eu já disse que pedi demissão da Superintendência Geral do Cenpes, a diretoria tomou uma decisão que eu considerei ofensiva ao Cenpes, desrespeitosa, “não posso aceitar uma coisa dessas”, então pedi demissão.

A Petrobrás tinha o seguinte ditado: “Superintendente cai para cima”, mas eu como superintendente pedi demissão, e pedindo demissão você se coloca à frente da decisão da empresa, não foi a empresa que tirou, você é que se retirou.

Então eu passei, como o meu sogro dizia, “de cavalo a burro”, eu fui ser geólogo como os outros geólogos, com muita honra, e depois me aposentei. Quando o Lula vence a eleição, em 2002, meu nome veio a ser discutido por proposta da Associação de Engenheiros da Petrobrás (Aepet). Então a Aepet trouxe e tivemos a ajuda de um grande brasileiro, à época deputado federal do PT, que era o Luciano Zica, um cidadão brasileiro absolutamente exemplar.

Estive nas festas, aí por dezembro de 2022, me disseram: “Olha, Estrella, tudo bem, consideramos, mas você não foi aceito”. Está bem, não tem problema nenhum.

Mas quando chegou o dia 30 de dezembro, eu disse para minha mulher. “Vamos para Brasília ver a posse do Lula”, tínhamos aquela caminhonetezinha Fiat Elba, e nos mandamos para Brasília. Eu estava almoçando quando toca o celular. Era o presidente da Aepet, o Fernando Siqueira, disse: “Estrella, eu falei com o Zica [sobre a recusa à sua indicação], ele disse ‘Negativo, eu vou falar com o Lula sobre esse problema’, então venha para Brasília”.

Nós fomos, e quando chegamos os hotéis de Brasília estavam cheios, fomos para Formosa, pertinho de Brasília. E nesse ínterim, lá em Formosa, eu recebi um telefonema: “Seu nome voltou a ser cogitado”.

Fomos à posse do Lula e chegamos lá cedo porque queríamos ver em frente ao parlatório, né? A gente queria ver o Lula receber a faixa e fazer um discurso, chegamos cedo, e depois aquilo se transformou numa multidão.

E alguém me chama pelo telefone, “Estrella, você tem que vir aqui porque o presidente da Petrobrás”, já nomeado, José Eduardo Dutra [1], “quer falar com você”. Eu disse: “Meu amigo, cheguei aqui há três horas para ver o Lula, então eu vou ver o Lula, o discurso do Lula”. E assim foi feito. Depois, na assunção do novo governo, não houve tempo, eu voltei para casa, voltei para Nova Friburgo.

Em meados de janeiro, fui comunicado de que tinha sido escolhido. O que aconteceu? O escolhido para diretor de Exploração e Produção da Petrobrás era o Rodolfo Landim, que tinha sido o superintendente da Refinaria de Macaé, na época do Fernando Henrique Cardoso, e teve uma greve lá em que ele demitiu dezenas de petroleiros.

O Sindicato disse: “Se colocar o Landim, a Bacia de Campos para no dia seguinte”. Então o pessoal disse “opa, temos que escolher outro nome”, e eu fui escolhido, assim me disseram. Isso faz parte, não estou criticando não, estou apenas contando o que aconteceu. Aí eu fui ao Rio de Janeiro, e fui chamado pelo José Eduardo, que era geólogo. Era geólogo da Petromisa[2]. Então ele me chamou assim, “você foi escolhido”.

Esquerda Petista: Nesse momento, você estava aposentado?

Guilherme Estrella: Já estava aposentado, porque eu me aposentei precocemente, pelo episódio que já falei.

Esquerda Petista: Mesmo assim, quanto tempo você já tinha trabalhado na Petrobrás nessa altura? Trinta anos? Gostaria que você falasse do seu processo de formação: Como é que você chegou a se transformar num profissional dessa área e não de outra muito diferente?

Escudo histórico da fundação da Petróleo Brasileiro S/A, a Petrobrás (logomarca original tem acento, sim!), que começou a funcionar em 1954. Foto: Arquivo pessoal. Veja PS do Viomundo

Guilherme Estrella: Trinta anos. Fundada a Petrobrás em 1953, passou a funcionar em 1954, logo em seguida se viu que a exploração de petróleo não podia ser conduzida por engenheiros, ainda que engenheiros de minas. Tinha uma escola em Ouro Preto que existe até hoje, tinha uma escola em São Paulo, tinha uma escola no Rio Grande do Sul.

Então contrataram o Walter Link, americano, que instalou a área de exploração concretamente, mas a sua experiência não deu certo no Brasil, ele acaba saindo. Getúlio Vargas assina a criação da Petrobrás em 1953 e se mata em 1954, então Juscelino [Kubitschek] é convencido de que tem de criar a escola de Geologia, não adianta fazer cursos ligados à Engenharia, e assim Juscelino fez.

Só que Salvador, Recife, Ouro Preto, deram o nome [ao curso] de Engenharia Geológica. Era Universidade do Brasil naquela época, e a sede era no Rio de Janeiro. E o Conselho Universitário da Universidade do Brasil, no qual a área de Engenharia tinha grande prestígio e poder, não aceitou a criação do curso de Geologia.

Juscelino então forma um grupo no Ministério da Educação e Cultura, MEC, e cria, junto à Secretaria de Ensino Superior, um curso de Geologia no Rio de Janeiro, um ano depois. Só para dizer a resistência que os engenheiros tinham em relação à criação da profissão de geólogo.

Muito bem, eu tinha 17, 18 anos, passei no vestibular, que tinha prova oral, era pouca gente, você era recebido lá numa banca. Passei, me formei em Geologia, e fui para a Bahia.

A Petrobrás fez um exame e eu levei pau no exame. A Petrobrás tinha 30 vagas e eu fui trigésimo-segundo, no Brasil inteiro. Mas a Geologia era isso, o pessoal era mandado para o interior, e um gaúcho disse “eu vou ficar aqui no Rio Grande do Sul”, ele desistiu, e eu entrei na vaga dele.

Assim, entrei na Petrobrás e fui para a Bahia, fui ser geólogo de poço na Bahia. Isso foi em 1965, nós nos formamos em 1964, tivemos um mês, o golpe foi em 31 de março, 1º de abril, nós viemos naquele primeiro mês, tinha um soldado do Exército na nossa sala, e a gente brincava, “se esse menino ficar até o final do ano, ele pode se formar em Geologia também”.

Isso foi em 1964, nós estávamos no quarto ano, escolhemos um deputado federal, Márcio Moreira Alves, que tinha sido cassado, para ser o nosso paraninfo. E o diretor entra na nossa sala e diz: “Não, vocês escolheram um comunista, isso aí não é possível”, “Não, a gente não abre mão”, e aí o cara disse “Então não tem formatura”, e não tivemos formatura. O diploma foi sair anos depois, fizeram aquele certificado de conclusão de curso.

Já em 1966, 1967, se viu que as bacias terrestres não iam suprir a nossa necessidade de petróleo, de gás natural. Naquela época, como hoje, nós consumíamos muito pouca energia, mas mesmo assim não era factível. Então em 1968 a Petrobrás aprovou já na plataforma, já no mar, meia dúzia de poços.

Mas como tinha uma unidade no Espírito Santo, uma unidade na Bahia, uma unidade em Sergipe e Alagoas, ela tinha que escolher os geólogos. O Rio de Janeiro [sede da Petrobrás] chamou a parte de geologia, criou um órgão especial de exploração na plataforma continental, e escolheu seis geólogos, no Brasil inteiro. Eu fui um desses seis geólogos, viemos para o Rio de Janeiro, e aí acompanhei os primeiros poços na plataforma continental.

O “Espírito Santo 1” foi o primeiro, não descobriu, mas aí tem um fato interessante, no segundo poço, em Sergipe, a gente descobre Guaricema, em 1968. O Espírito Santo começou em junho, em novembro, foi seco no Espírito Santo, mas teve informações geológicas extraordinárias sobre as bacias marítimas brasileiras, e no segundo poço a gente descobre o Guaricema.

Perfuramos Guaricema e encontramos petróleo, petróleo leve, de excelente qualidade. Para as empresas investirem na produção, você estuda as condições geológicas e geofísicas, os resultados desse poço pioneiro, para saber se é econômico, e em Guaricema havia dúvidas sobre a quantidade de petróleo que ele produziria, e se seria minimamente econômico se se pusesse em produção.

A equipe técnica da Petrobrás concluiu que os riscos eram muito grandes e que o poço deveria ser fechado, abandonado, e foram levar ao presidente da Petrobrás, que era o Geisel [3]. O Geisel disse — eu não participei, me contaram isso — “esse poço vai ter que produzir, porque esse é o poço que vai valorizar a nossa plataforma continental”, o Brasil tem o petróleo no mar, e assim foi feito.

Guaricema produz até hoje, os técnicos estavam errados. Mas eram cinco ou seis perfurações, as outras perfurações deram seco, isso foi em 1968, e nós passamos muitos anos sem descobrir, estendemos os nossos levantamentos geofísicos para todas as bacias ao sul do Espírito Santo e ao norte, até Natal, toda a costa leste, e em 1974 descobrimos Garoupa, na Bacia de Campos. Aí muda o cenário todo.

Esquerda Petista: Mas você não explicou a escolha, você é geólogo e falou disso com certa paixão. A Geologia é uma profissão muito bonita, mas por que você a escolheu?

Guilherme Estrella: Antigamente tínhamos primário, ginásio e científico, né? Nós morávamos na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Quando fiz o científico, disseram “você vai ser engenheiro”, fazer o que? Você tinha que fazer um curso em paralelo para passar no vestibular, principalmente para Engenharia. Então me matriculei junto com outro colega, nos matriculamos nesse curso, no Rio de Janeiro, que era dado pelos alunos da Escola de Engenharia.

Isso foi já em abril, maio, daquele último ano do científico. Quando chega em setembro, outubro, o diretor do colégio, um colégio público, nos chama: “Os professores estão dizendo que vocês caíram muito de rendimento: Vocês são bons alunos”. Nós explicamos: “Não, é porque estamos num cursinho de Engenharia”. E esse cara, José Lacerda de Araújo Feio, era diretor do Museu Nacional. Já havia o curso de Geologia, e no Museu Nacional eram dadas as aulas de biologia do curso de Geologia, por um pesquisador do Museu Nacional, José Cândido de Melo Carvalho. Era pioneiro em meio ambiente, fundou a Fundação Brasileira de Conservação da Natureza, FBCN, era um ambientalista já naquela época.

O Feio disse para a gente: “Olha, tem essa nova profissão que tem uma perspectiva excelente no Brasil, porque somos um país não conhecido geologicamente, então o que é que vocês acham?” Resolvemos, cancelamos a nossa matrícula no curso de Engenharia, e nos dedicamos a estudar as matérias do curso de Geologia. Só que tem o seguinte, tinha de biologia até física e matemática. Mas nos dedicamos. E acabamos passando para Geologia em 1960, 1961. Eram somente dez alunos na turma. E assim foi que eu me tornei geólogo.

Plataforma P-74 operando no campo de Búzios no pré-sal da Bacia de Santos. Foto Agência Petrobras

Esquerda Petista: Parece então que a formação oferecida a vocês nesse curso era bem mais ampla que aquela oferecida no curso de Engenharia, é isso mesmo?

Guilherme Estrella: Isso mesmo. Tínhamos um curso de desenho natural, desenho à mão livre, no primeiro ano da escola de Geologia. Por quê? Você chegava no afloramento de rocha e os professores proibiam que você tirasse fotografia daquele afloramento para depois chegar em casa e estudar. “É no desenho do afloramento que você também aprende geologia”.

Tínhamos um curso de alemão, porque parte dos professores eram alemães. Dois ou três professores alemães, aprendiam português, mas nós tínhamos um curso, um ano de alemão. Então era desenho à mão livre, alemão, e biologia. Fundamentos da geologia, geoquímica, a área era absolutamente complexa. Enfim, essa era a nossa formação, você tem razão, muito ampla. Mas a força mesmo era nas ciências naturais. Agora, eu não me formei em Geologia. Eu me formei numa profissão que se dizia científica, mas não tinha um princípio base. Então cada caso era um caso.

Sua interpretação geológica tinha que ser de acordo com o que o grupo de geólogos que gerenciavam o lugar em que você trabalhava, aceitava. Tinha que fazer um certo sentido lógico, aquela lógica de posição das rochas, de associação com a paleontologia, uma lógica que não tinha uma base mundial só, e eu me formei geólogo nisso.

Muitos anos depois é que a Geologia adquiriu a sua base científica: a tectônica de placas. Eu me formei em 1964, ela não tinha chegado no Brasil. Então é a tectônica de placas que é a base do estudo geral da evolução do planeta, da crosta planetária, que faz com que haja um terremoto na Nova Zelândia e no dia seguinte o Etna entra em erupção na Itália, entendeu? Essa tectônica de placas é que dá à Geologia a sua característica essencial, que é o estudo do planeta Terra.

Esquerda Petista: Afinal de contas, por qual instituição você se formou?

Guilherme Estrella: Meu diploma é da Escola Nacional de Geologia. Uma instituição isolada ligada diretamente ao MEC. Depois, com a fundação da UFRJ, a Escola Nacional de Geologia passou a fazer parte do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN), da UFRJ.

Esquerda Petista: Voltando à questão do pré-sal e da Petrobrás, como é que você avalia aquela questão dos blocos? Você mesmo falou da Shell, mas numa etapa anterior. Mas depois mudou a política em relação ao pré-sal e passou a haver aqueles leilões para abrir a participação às petrolíferas estrangeiras, né? Tem a questão do leilão de Libra, que foi um marco. Como é que você avalia essa política?

Guilherme Estrella: Devido ao alto risco exploratório, por conseguinte dos investimentos envolvidos na exploração de petróleo, estava em vigência, como está até hoje, no mundo inteiro, um modelo de participação de empresas para explorar e produzir petróleo.

A Petrobrás era monopolista, não era submetida a essa política, a esse modelo. Já produzia bem na Bacia de Campos, inclusive. Mas com a quebra do monopólio, por questões ideológicas e políticas, Fernando Henrique Cardoso abre as áreas brasileiras para participação de empresas estrangeiras, privadas e estatais. Então, entra a ANP, Agência Nacional do Petróleo, que divide todo o território marítimo brasileiro e também terrestre, em blocos, em áreas.

E aí, como o risco era grande, aplicava esse modelo chamado modelo de concessão. O que é que caracteriza o modelo de concessão? O petróleo descoberto e produzido pelas empresas contratistas, detentoras dos blocos, era de propriedade dessas empresas. Pagavam royalties, mas o petróleo era de propriedade dessas empresas. Então, foi assim que foram abertas as áreas, todo o território brasileiro, para participação de empresas privadas, estatais, estrangeiras e brasileiras, porque houve um grupo de pequenas empresas brasileiras que comprou blocos terrestres.

Com a descoberta do pré-sal, em 2006, constatou-se, com os recursos de pesquisa geofísica mais avançados, que você furava o poço e tinha características geofísicas que eram aplicadas a toda área com aquelas mesmas características. Se viu, logo, que aquelas características se reproduziam numa grande área, se estendendo da Bacia de Campos para a Bacia de Santos. Toda aquela área tinha petróleo, e em grande quantidade.

E estávamos diante de uma coisa nova, muito mais importante. Como as características sísmicas, geofísicas, se repetiam com muita igualdade, já no primeiro poço a gente podia ter uma ideia das reservas petrolíferas que estavam nessa área, entre a Bacia de Campos e a Bacia de Santos, até Santa Catarina. Então, se viu que o modelo de concessão, que tinha como base o risco exploratório, estava superado. Internacionalmente já havia um outro modelo, que era aplicado nos países grandes produtores, que não tinham aberto o seu território à participação de empresas estrangeiras, que era um modelo de partilha de produção.

Esse modelo de partilha de produção diz o seguinte, basicamente: que todo o petróleo pertence ao Estado. E quem vai decidir a aquisição de blocos por parte das empresas, todas as outras, inclusive a Petrobrás, era a oferta que a empresa daria ao governo do volume de petróleo produzido. Por exemplo, dando para o governo 40% do petróleo produzido. E assim foi feito.

Aí veio o chamado Marco Regulatório do Pré-Sal, aprovado pelo Congresso, dizendo o seguinte: um, que é fundamental, a Petrobrás é operadora única, o que dava ao governo, como acionista controlador da Petrobrás, uma posição extraordinária de gestão dessa nova modalidade. E como a Petrobás tem também interesses estrangeiros, não podia operar sem prestar contas ao governo da comprovação dos dispêndios que os seus consórcios, liderados por ela como operadora única, tinham tido. E foi criada então uma empresa pública, Petróleo do Pré-Sal, que fiscalizava isso tudo, inclusive com profissionais aposentados da Petrobrás de grande experiência.

Então, foi um modelo que participei, tive a honra de participar na elaboração dessa nova lei, que dava ao governo brasileiro todas as condições políticas de gerir a grande reserva que foi descoberta nas bacias de Campos e Santos.

O final do texto dizia que todos esses pontos iam constar desse modelo de partilha de produção, PPA, para ser aplicado nessa área mapeada do pré-sal, e nós conseguimos introduzir em outras áreas estratégicas.

Nós já tínhamos descoberto em Sergipe grandes reservas de petróleo, de gás natural, em águas ultraprofundas também, e tinha toda a Margem Equatorial para ser explorada. Isso mantinha o poder do governo, dali para a frente, em todas as áreas que fossem efetivamente prolíferas em termos de petróleo, e onde o risco exploratório praticamente não existia. Foi fundamental.

Mais fundamental ainda, foi criado o chamado Fundo Social, que destinava especificamente os recursos obtidos da produção do pré-sal, para não haver uma dispersão de investimentos e desses recursos pelo governo, principalmente na área de educação e saúde, depois entraram outras áreas.

Então, era um modelo que atendia completamente o interesse do Brasil e do povo brasileiro.E aí, com o Estado brasileiro majoritário na Petrobrás, na gestão da empresa, criou-se o conceito político de conteúdo nacional. Esse foi o grande passo.

Tinha que ter conteúdo nacional. Chegamos a ter 60%, 65% no pré-sal. O conteúdo nacional, junto de uma política de desenvolvimento tecnológico brasileiro, do qual se aproveitassem a sociedade brasileira e o Brasil como um todo, e se aproveitasse também toda a riqueza do pré-sal. Isso foi absolutamente fundamental para nós nos prepararmos para, efetivamente, sermos um país industrializado e, por conseguinte, soberano. Naquela época isso foi conseguido. E, por isso, deu no que deu.

Esquerda Petista: E no que foi que deu?

Guilherme Estrella: Aí é que está, houve um golpe de Estado. Houve a Lava Jato. E não posso deixar de falar nisso: houve corrupção na Petrobrás. Não poderia ter havido, mas houve. Mas houve a Lava Jato, decorrente disso. E a Lava Jato, todo mundo sabe, era um projeto do Departamento de Justiça norte-americano. Tinha os objetivos muito claros. Não poderia haver nenhuma dificuldade legal no Brasil para que ela atingisse o objetivo, que era destruir a Petrobrás como uma empresa estatal. Então, abrindo também para toda a sorte de decisões, inclusive em relação à Petrobrás como operadora única do pré-sal.

Tem uma brilhante, jovem economista brasileira chamada Juliane Furno, que hoje é da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ. Ela fez a tese de doutorado com o Belluzzo [4] lá na Unicamp. E ela tem, no seu trabalho de doutorado, uma parte denominada “conclusões em paralelo”. E aí ela identifica e coloca na sua tese um dos objetivos da Lava Jato. Porque a Lava Jato não era só em relação à Petrobrás, para o negócio do pré-sal. A Lava Jato ia muito além disso para nos transformar efetivamente porque nós somos, ainda hoje, uma dependência dos grandes interesses internacionais financeiros. Principalmente, o capitalismo financeiro.

E a Juliane Furno disse o seguinte: um dos grandes objetivos da Lava Jato foi também a destruição das empresas de engenharia brasileiras. Não bastava você acabar com o poder brasileiro, o Estado brasileiro, como proprietário do pré-sal. Você tinha que acabar também com as grandes empresas de engenharia brasileiras, que já estavam vencendo licitações no exterior, contra as grandes empresas europeias e norte-americanas. Então a Lava Jato veio para arrasar tudo mesmo.

E politicamente houve o golpe de Estado. O golpe de 2016, aliás isso é uma coisa que me incomoda, porque a democracia que aí está é uma democracia ilegítima, que provém de um golpe de Estado.

Esquerda Petista: Exato. A Lava Jato começa antes do golpe, mas só vai assumir “músculos”, e passar a agir de maneira mais atrevida, após o golpe. Você acha que já no golpe de 2016 o pré-sal foi um dos fatores? Porque houve o episódio de espionagem da Dilma e da Petrobrás pelos Estados Unidos. O pré-sal foi um dos fatores desencadeadores do golpe de 2016?

Guilherme Estrella: Foi um dos principais desencadeadores, porque o Brasil, adquirindo os recursos do pré-sal, nós estávamos prontos para dar um grande salto. Somos a nona economia, vamos ser a oitava economia do mundo, mas em termos de consumo de energia per capita estamos atrás do trigésimo lugar no mundo.

Então, o pré-sal veio colocar essa pedra fundamental extremamente necessária para nós nos tornarmos efetivamente um país soberano. Isso era o que estava por trás da ação da CIA[5].

Pessoal fala do Trump, mas nós fomos espionados e a Lava Jato saiu no governo Obama, no governo dos democratas norte-americanos, entendeu? O computador [notebook] do poço descobridor do pré-sal foi roubado no porto do Rio de Janeiro.

Esquerda Petista: Seguindo seu raciocínio, você acha que o leilão do campo de Libra foi aquela história de “vão-se os anéis para manter os dedos”? Você acha que ao invés de contratar a Petrobrás diretamente, estrategicamente, para explorar aquele campo, o governo Dilma tentou conciliar? Aquele leilão teve um grande enfrentamento com o movimento sindical petroleiro, a Federação Única dos Petroleiros (FNP) reivindicava que a Dilma contratasse diretamente a Petrobrás.

Guilherme Estrella: Minha opinião, eu continuo com ela até hoje, é a seguinte: o Marco Regulatório dava ao governo direito legal de contratar diretamente a Petrobrás.

Esquerda Petista: Ela faz isso depois, na cessão onerosa.

Guilherme Estrella: Depois ela faz isso na cessão onerosa. Mas eu achava que o governo tinha que contratar a Petrobrás para desenvolver. E dei essa opinião, dizendo que era interessante, porque era uma grande reserva, e que a participação de interesses estrangeiros dificultaria politicamente, inclusive, qualquer tipo de intercessão do governo em favor dos interesses brasileiros.

A presidenta Dilma, que eu respeito muitíssimo, depois comentou: “Esse negócio é xenofobia”. Agora, qual foi o motivo? Um déficit nas contas do governo. Porque quando há o leilão de Libra, a Petrobrás e os partícipes do grupo, que eram os chineses e a Shell, como prêmio pela obtenção do contrato, depositaram 15 bilhões de dólares. Então isso foi aceito pelo governo Dilma por uma questão de equilíbrio fiscal. Quer dizer, é o mesmo problema que nós temos hoje.

Enfim, eu sou obrigado a aceitar. Foi uma decisão do nosso governo. Agora, dentro de um modelo econômico, de um modelo ético, político, ideológico, que é contra o Brasil. Que é essa coisa que estamos vendo hoje. Não conseguimos superar isso. Depois ela foi deposta, esse negócio se aprofundou.

Esquerda Petista: Sim. Passando para a atualidade, estamos já no terceiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, e a gente vê alguns problemas ainda na Petrobrás. Como você vê essa política de distribuição de dividendos e, de modo geral, como é que você vê a Petrobrás na atualidade, nesse período do terceiro mandato do Lula?

Guilherme Estrella: Com o golpe de 2016, e o Temer entrando, com aquela famosa “Ponte para o Futuro”, que certamente não foi ele que escreveu, deram para ele, Temer modifica a legislação das sociedades anônimas (SA) e das empresas estatais. Ele não vende a Petrobrás. Quer dizer, o governo continua como acionista controlador, que tem 51% das ações com direito a voto. Mas no conjunto de ações, ele tem só 35%, o restante é privado. Desses 65% que sobram, segundo informações que eu tenho, tem 45% de estrangeiros. E aí, ele modifica o estatuto da companhia. E dá aos acionistas minoritários, sob o ponto de vista de ações com direito a voto, o poder de levantar impedimentos no Conselho de Administração, quando considerem que a decisão do conselho venha a ferir o interesse privado.

Na verdade, ele modifica todo o estatuto, transformando a empresa e toda a sua estrutura em unidades, essas “unidades de negócio” que havíamos acabado com elas no governo Lula, e cada “unidade de negócio” tinha que dar lucro. O lucro era a régua de medição de investimentos. Cada unidade era uma empresa privada, sozinha. E os acionistas privados mandando na companhia, começou a destruição do sistema integrado industrial Petrobrás. Venderam praticamente todos os campos terrestres, venderam os campos marítimos, do pré-sal inclusive.

Isso não foi modificado. Lula ganha as eleições em 2022, mas todo este conjunto de modificações na gestão da Petrobrás pelo acionista controlador, imposto pelo governo Temer, continua a operar na empresa, entende? Então há uma dificuldade. Nós temos que superar isso, porque é um fato, em relação intrinsecamente à Petrobrás.

Agora, saindo da dimensão da Petrobrás, mas também diretamente envolvido na sua pergunta, é o seguinte: esse modelo de equilíbrio fiscal permanece. Para tentar o equilíbrio fiscal com essa taxa de juros amarrando o governo, 40% dos recursos obtidos vão para pagar juros e dívidas, o governo precisa de dinheiro. Então, 35% desses lucros da Petrobrás vão para o governo. Mesma coisa que a Dilma, que fez o leilão de Libra lá atrás: o governo hoje continua precisando de dinheiro para tentar equilibrar as contas.

A Petrobrás, nos governos Temer e Bolsonaro, deu mais de 100 bilhões de dólares de lucro, e esse lucro não foi só operacional, porque a Petrobrás foi transformada num fundo de investimento. Um fundo de investimento quer lucro máximo no menor tempo possível, e seus investimentos têm que ser completamente viáveis, também aprovados na lucratividade máxima. É isso que tem que ser quebrado.

Uma coisa é você vender uma hidrelétrica, vender Itaipu. Daqui a dez anos você recompra. Quando você vende um campo de petróleo, daqui a dez anos ele não existe mais. Não é uma riqueza que você possa recuperar.

E hoje é isso. Nós ainda continuamos com os preços internos de combustíveis ligados aos preços internacionais. Não é o preço internacional, não. PPI é o preço de petróleo importado: é o preço internacional acrescido das despesas de transporte e internação do petróleo estrangeiro no Brasil. Então, essa coisa tem que ser quebrada agora. No fundo de tudo está o déficit. Então, continua dando lucro, aprovando a antecipação de dividendos! E a gente não cobra Imposto de Renda dos acionistas privados, que recebem esses dividendos. Zero de Imposto de Renda! Então, ou a gente destrói esse negócio todo…

É uma política de frente ampla, a gente não sabe efetivamente o que é que foi negociado, porque cada dia acontece uma surpresa. Estamos consolidando esse modelo de gestão do Estado brasileiro. Essa é a realidade da Petrobrás. E aí, só para complementar, também “foi para o espaço” o conteúdo nacional. Ontem mesmo foi contratada a construção de navios na Coreia do Sul. É uma coisa quase desesperadora.

Esquerda Petista: Quais seriam as primeiras medidas básicas para mudar esse modelo na Petrobrás? Especificamente na Petrobrás?

Guilherme Estrella: Na Colômbia, o que é que o presidente Petro fez? Está mobilizando a sociedade, o povo colombiano, para pressionar o Congresso, para aprovar as medidas que ele está lançando no Congresso. Isso é fundamental, não é?

As leis que modificaram a estrutura de gestão da Petrobrás são leis ordinárias. Então, medidas provisórias [MPs], que entram em vigor na data de sua publicação, poderiam ser editadas pelo governo, retomando o estatuto e o poder da União e do governo na gestão direta da Petrobrás, imediatamente, com a nomeação de todos os cargos de direção da empresa. E aí o pessoal fala: “Mas se isso vai para o Congresso será derrubado”.

Isso é a lei, mas você já votando no dia seguinte medidas que derrubem os preços dos combustíveis, que recuperem o poder do Estado na Petrobrás, vai ter um impacto político na sociedade, no povo brasileiro muito grande, e aí você vai nos meios de comunicação: “Fiz isso, já está dando resultado, inclusive nos preços de combustíveis, e mandei para o Congresso”. Para que, efetivamente, a responsabilidade disso que está ocorrendo no Brasil seja do Congresso e não do governo que o povo elegeu em 2022.

Esquerda Petista: E desses ativos da Petrobrás que foram vendidos nesse processo de desmantelamento do sistema, o que a gente poderia recuperar de imediato? Que refinarias, empresas, poderiam ser retomadas pelo poder público, pelo Estado brasileiro?

Guilherme Estrella: Uma pergunta central, não é? Tem um aspecto jurídico nisso. O professor Bercovici, da USP[6] , tenho o livrinho dele, defende que as medidas que foram tomadas, tudo que foi feito, é inconstitucional. Porque vai contra a soberania brasileira.

Por exemplo, a Refinaria de Mataripe. Está envolta num processo totalmente obscuro, em que entra corrupção. Então, há motivos para reestatizar Mataripe.

Manaus é outra refinaria. Na época do monopólio, é claro, nós aprovamos a constituição de refinarias estratégicas em todo o território brasileiro. Então, a Refinaria de Manaus teve o monopólio de distribuição.

E a gente utilizava preços únicos para o Brasil inteiro. Porque o povo brasileiro é proprietário da Petrobrás. O consumidor lá de Benjamin Constant, na fronteira com a Colômbia, lá no Alto Amazonas, pagava o mesmo preço de gasolina que o cara do Arroio Chuí, no Rio Grande do Sul.

Essa foi a grande obra do governo Lula, nós começamos a gerir a Petrobrás como um sistema, e não havia “unidade de negócio”. O que vale é a sustentabilidade financeira de todo o sistema, tendo como base as melhores condições de fornecimento de combustíveis para toda a sociedade brasileira, que mantivessem o poder de investimento da companhia, mas não tivessem como objetivo somente o lucro máximo.

O diretor de Abastecimento reclamava que o abastecimento estava dando prejuízo, e dava. O importante não é o abastecimento dar lucro, o importante é a Petrobrás, como um todo, dar lucro em favor do povo brasileiro.

Então, há um embasamento jurídico para você recuperar ativos que sejam estratégicos para a distribuição de energia no território brasileiro, e energia é sinônimo de soberania nacional. Quando você vende uma refinaria, está perdendo a soberania de distribuir energia naquela área coberta pela refinaria.

Esquerda Petista: Você falou de distribuir, de voltar para a distribuição.

Guilherme Estrella: A distribuição, muito bem lembrado, é exatamente isso. Porque você só controla o preço do petróleo distribuindo. A Petrobrás tem que voltar à distribuição.

Esquerda Petista: A gente fez um levantamento mostrando que a margem da distribuição tem aumentado exponencialmente depois que foi privatizada a distribuidora. Hoje, eles ganham 33 centavos a mais por litro de gasolina do que antes, após a privatização. Ou seja: o povo está pagando mais caro porque privatizamos a BR Distribuidora.

Guilherme Estrella alerta: “‘Ninguém sabe que o posto da Petrobrás não pertence mais à Petrobrás. Pouquíssima gente sabe, isso nem é dito”.

Guilherme Estrella: Agora é o seguinte: nós não podemos competir com um posto que tem lá o “BR”. Isso é um crime absoluto, inaceitável. Ninguém faz isso no mundo, meu amigo, vender o logotipo da companhia. Faz outra empresa, começa a botar posto, dá um nome qualquer que tiver. E vai para o público dizer: “A Petrobrás tem esse posto”, e abaixa o preço do posto de gasolina. Inclui os dispêndios do posto de gasolina no lucro global da Petrobrás.

A gente exporta um milhão e meio de barris por dia e pagamos aqui preços internacionais. Nós exportamos petróleo, não é? Então é isso, cria outra empresa. Ninguém sabe que o posto da Petrobrás não pertence mais à Petrobrás. Pouquíssima gente sabe, isso nem é dito. A gente vê que são necessárias medidas mais concretas e mais fortes em relação à presença da Petrobrás. E é importantíssima a volta ao retalho, porque é na distribuição que a gente regula o preço do petróleo e do gás natural, do GLP.

Esquerda Petista: Perfeito! Tem um outro aspecto que a gente queria abordar com você, que é a questão da transição energética. Porque nós estamos falando aqui o tempo todo de combustível fóssil, certo? E já estamos sentindo na pele a turbulência climática. Então, parece que há um certo consenso quanto à necessidade da transição energética. Por outro lado, tem essa riqueza que é o combustível fóssil, e não dá para fazer uma transição muito rapidamente.

Guilherme Estrella: O planeta Terra é quente. Geologicamente, quente na sua história toda. De vez em quando, ele tem um período frio, não é? A última era glacial ocorreu há um milhão de anos. Há um milhão de anos, o mar estava 200 metros mais baixo. O oceano. Você sai da parte imersa, entra na plataforma continental, e essa plataforma continental tem uma quebra em 200 metros de lâmina d’água. Aí você entra no Talude, que vai até a Planície Abissal, que começa a ir para 3 mil a 4 mil metros de lâmina d’água. Essa quebra em 200 metros é porque um milhão de anos atrás o mar estava ali, 200 metros mais baixo. Por isso que você tem uns grandes cânions. São aqueles vales na plataforma continental do São Francisco. É um grande cânion, não é mesmo? Do Paraíba do Sul, um grande cânion, porque o mar estava lá embaixo. Eles cortavam o litoral para ir desaguar lá embaixo, no oceano.

Essa fase terminou há 11 mil anos, o último período glacial. Então, de 11 mil anos para cá, nós estamos numa fase de aquecimento. Muito bem. Mas é inegável que, a partir da primeira revolução industrial, a taxa de crescimento desse aquecimento subiu. Então, se associa corretamente a essa diferença de ângulo no crescimento, seja o produto da revolução industrial, seja da emissão de gases e de efeitos estufa.

Da primeira revolução industrial até hoje, 80% da cobertura florestal do planeta foram destruídos. Oitenta por cento. E as grandes florestas são as principais responsáveis pela emissão de oxigênio e que mantêm a atmosfera com baixo teor de CO2. Nós tínhamos naquela época 1 bilhão de habitantes. Hoje temos quase 8 bilhões de habitantes.

Naquela época, 80% da população era rural e 20% urbana. Hoje é o contrário: 20% rural e 80% urbana. Houve um crescimento gigantesco das grandes cidades, que também são importantes na mudança climática.

Então, nós estamos atravessando um período geologicamente de aquecimento. Mas também houve a contribuição humana, não só por causa dos combustíveis fósseis. Eu não quero ser negacionista, por favor. O negócio é a gente ver o que está acontecendo mesmo, inclusive no nível geológico. Hoje nós estamos tendo atividades vulcânicas extremamente elevadas. A gente vê que o círculo de fogo do Pacífico está ativo. Até no Brasil está tendo terremoto. Então, a tectônica de placas está influenciando nisso também.

Tudo isso é um contexto, mas vamos lá, vamos tratar dos combustíveis fósseis. No caso brasileiro, a nossa matriz energética já é a mais bem equilibrada do planeta, dentro das grandes economias do mundo. Nós temos 50% de energia fóssil e 50% de renovável. Então, nós temos todas as condições de efetivamente prepararmos a transição.

Temos um projeto de país de que, a médio e longo prazo, a gente ainda diminua a presença de combustíveis fósseis. Só que tem o seguinte: nós somos a oitava economia do mundo. Mas em consumo de energia per capita estamos no quadragésimo lugar. Consumo de energia per capita reflete equilíbrio social, justiça social. Somos um dos países mais injustos do mundo. Esse país é para consumir, no mínimo, o dobro de energia que ele consome hoje.

O trabalhador brasileiro vai chegar em casa às sete horas da noite, está fazendo 40 graus, e ele tem que acordar no dia seguinte às seis horas da manhã. Como é que ele vai passar essa noite a 40 graus? Ele precisa ter ar-condicionado. Logo, é um fator até de justiça social. Nós temos que consumir o dobro de energia. E mantendo essa matriz energética brasileira.

No Brasil, 75% da contribuição para os gases de efeito de estufa são produzidos não pelo petróleo, pelos combustíveis fósseis, mas por derrubada de floresta e agronegócio. Setenta e cinco por cento. Nós temos que ver isso também porque é um desenvolvimento brasileiro, da indústria brasileira e tudo mais, e envolve o bem-estar do povo brasileiro. Porque a gente não pode manter esse desequilíbrio social, essa injustiça social, querendo ser um país voltado só para combustível renovável. Nós já temos a melhor, mais bem equilibrada matriz energética do mundo, associada a uma baita de uma injustiça social. Então, isso tem que ser reduzido. Vamos enfrentar.

Precisamos de um modelo energético brasileiro. Ouvi as notícias, as empresas de geração eólica do Nordeste estão falindo. Por quê? Porque não existe uma coordenação, deveria ser o antigo Operador Nacional do Sistema (ONS). Mas são tantas empresas, são tantos os interesses privados, de lucro privado, que é difícil você concatenar. E as empresas de energia eólica, de energia renovável estão falindo. Então, necessitamos de uma gestão sistêmica da energia brasileira pelo Estado brasileiro.

Esquerda Petista: Perfeito: Ildo Sauer[7] , numa entrevista que concedeu anos atrás, previu o horizonte de 50 anos, pelo menos, para a gente continuar usando o combustível fóssil. Quer dizer, o horizonte ainda é de décadas à frente. É isso?

Guilherme Estrella: É. Mantendo, nós já somos a matriz energética mais bem equilibrada do mundo, entre as maiores economias do mundo. Vamos ver o que é que vai dar. Agora, que o setor energético brasileiro precisa de uma gestão integrada sistêmica, controlada pelo Estado brasileiro, precisa.

Esquerda Petista: No movimento sindical petroleiro, temos discutido a questão da Margem Equatorial. Há aqueles que são contra a exploração, há aqueles que defendem, mas defendem, inclusive, que seja uma exploração estatizada, né? Que não só seja Petrobrás, mas tenha maior controle. Enfim, gostaria de saber sua posição, Guilherme.

Guilherme Estrella: Quero dizer, sem querer ser repetitivo, que no Marco Regulatório a gente conseguiu colocar lá outras áreas estratégicas, principalmente Sergipe e a Margem Equatorial. A Margem Equatorial brasileira tem, sob aspecto geológico e sob aspecto ambiental, não há dúvida, diferenças muito grandes em relação à costa leste brasileira. São necessários cuidados especiais na perfuração e na possível produção de petróleo na Margem Equatorial. Não há dúvida nenhuma.

Só que a Petrobrás tem um histórico, inclusive eu participei disso, um histórico de atendimento das regulamentações e decisões do Ibama [8] sobre a exploração e produção de petróleo no Brasil. E o histórico da Petrobrás é de atender essas imposições do Ibama, mas também contar com uma postura de confiança do Ibama na competência técnica da Petrobrás.

Você produzir petróleo a 2 mil metros de lâmina d’água não é brincadeira. Nós temos todo um desenvolvimento tecnológico, de engenharia, de segurança, que pode ser diretamente aplicado na Margem Equatorial. Não tem problema.

O que não pode é o Ibama fazer exigências que são até cientificamente consideradas descabidas. A gente vê no Ibama, como é natural que ocorra, uma postura também política. O que não pode é o Ibama não só, como disse, apresentar argumentos cientificamente duvidosos, mas também imposições absurdas e não discutir com a Petrobrás.

Isso é um problema de soberania brasileira. Agora, é importante que seja revisto o modelo, os blocos que estão lá são blocos de concessão. A Margem Equatorial ainda tem que ser testada, tem que comprovar a sua potencialidade. É uma área que está em aberto, mas que é absolutamente fundamental para a soberania energética brasileira nos próximos vinte anos. O Ibama, como órgão de governo, tem que entender que interesses essencialmente brasileiros, do povo brasileiro, também têm que ser levados em conta.

Esquerda Petista: Guilherme, me deixe fazer um contraponto aqui, se você me permite: O presidente Lula agiu de maneira inadequada quando declarou que o Ibama estava fazendo “corpo mole” e criticou o corpo funcional do Ibama. Considero essa crítica bastante inadequada. Eu não tenho tanta segurança como você para dizer que o Ibama está fazendo alegações que são cientificamente não comprováveis. Sempre considerei o corpo técnico do Ibama bastante sério. E nós vimos muitas dessas experiências de hidrelétricas na Amazônia que provocaram devastação. Não foi só Belo Monte. Várias daquelas grandes hidrelétricas promoveram uma devastação. Então existe uma experiência no campo de geração de energia na Amazônia que é muito pesada, que é muito negativa do ponto de vista dos impactos ambientais. Mesmo com todo esse cuidado que a Petrobrás tem demonstrado, é impossível você fazer extração de petróleo em grande quantidade sem provocar uma agressão ambiental. Então existem todos esses cuidados que até mesmo você diz que precisa fazer um pouco diferente. Eu me preocupo com isso.

Guilherme Estrella: O presidente Lula, o nosso Lula, fala como nós falamos. Aí é que entra uma característica do Lula que é absolutamente sensacional. Ele, presidente da República, fala como o povo fala. Então, quando ele diz que o Ibama está fazendo “corpo mole”, esse negócio de fazer corpo mole é uma expressão popular nossa, está entendendo? Ele certamente não quis ofender o corpo técnico do Ibama, porque ele conhece o Ibama.

E, repito, as relações da Petrobrás com o Ibama sempre foram muito respeitosas. Na Bacia de Campos, nós tínhamos, na época do Fernando Henrique Cardoso, um contencioso gigantesco com o Ibama. Eu assinei os chamados TACs, Termos de Ajuste de Conduta. E as coisas com o Ibama foram apaziguadas. Então, o Ibama tem que ser rigoroso. Tem que exigir da Petrobrás medidas mais intensas do que na costa leste. Em termos de disponibilidade de ação, de combate a qualquer tipo de vazamento. Isso é possível fazer. E, novamente, a Petrobrás é reconhecida mundialmente por sua competência em termos de segurança operacional. Não há nenhuma instalação industrial no mundo que não tenha um risco de poluir o meio ambiente.

Nós precisamos produzir mais petróleo. A alternativa seria nós não exportarmos mais petróleo. “Não vamos exportar petróleo”: A gente está exportando um milhão de barris por dia, se não mais. São 360 milhões de barris por ano. Em dez anos, são 4 bilhões de barris. Então, se a gente quer continuar exportando petróleo, se a gente não guardar o nosso petróleo, ou a gente produz mais, ou a gente descobre mais, para não virmos a ser, novamente, importadores de petróleo daqui a cinco, dez anos.

A realidade é que a Margem Equatorial é uma área brasileira, tem que ser explorada novamente, atendendo a todas as exigências do Ibama, levando também em consideração o interesse nacional. O problema da crítica que se fez, inclusive pela Petrobrás, com respeito às alegações do Ibama, foi que o Ibama levanta a existência de corais lá, e isso não é cientificamente comprovado.

Só que é o seguinte: o tempo passa, não é mesmo? É preciso que as coisas sejam mais rápidas. E aí entra um ponto importante: os blocos na Margem Equatorial são blocos de concessão. Descoberta uma reserva importante de petróleo e gás natural, essa concessão tem que ser discutida sob a sombra do interesse brasileiro e da soberania nacional.

Esquerda Petista: Só vou fazer uma observação: Hoje o Brasil exporta 52% da produção total de petróleo: É 1,75 milhão de barris/dia, em média. É muito petróleo. E há uma projeção de isso chegar a mais de dois milhões de barris nesse ano.

Guilherme Estrella: Isso. Nós estamos vendendo campos que vão se exaurir. Uma riqueza nacional. Estamos vendendo o nosso futuro, exportando o nosso futuro. Mas enfim.

Trabalhadoras embarcadas em plataforma da Petrobrás. Foto Agência Petrobras

Esquerda Petista: Guilherme, em nome da revista Esquerda Petista queremos te agradecer muito pela entrevista. De fato, geólogos contam boas histórias. Quer acrescentar mais alguma coisa?

Guilherme Estrella: Vamos lá. Nós somos o Partido dos Trabalhadores e veio o PED.É importante, porque é preciso que o nosso partido, efetivamente, também se aproxime mais do povo brasileiro, não é mesmo? Então, essa disputa interna no partido é muito desejável, claro, a gente incentiva o debate, mas é preciso que o nosso partido também se prepare para a eleição de 2026, porque não basta nós reelegermos o Lula, nós temos que mudar o Congresso. Faço parte do PT de Nova Friburgo, e fizemos uma reunião, para comemorar os 45 anos do PT, com cerca de 200 pessoas, 90% de classe média e 90% de cabeça branca.

Então, nós temos essa dificuldade, temos que botar a juventude na política, abrir espaço para os jovens. Reelegermos o Lula, que é uma figura mundial, então essa comunicação tem que abrir espaço para a juventude, falar com a juventude brasileira, enfim, tornar o partido muito mais participativo, internamente, muito mais democrático nas discussões internas.

Esquerda Petista: E mais combativo, não é, Guilherme?

Guilherme Estrella: E mais combativo, é a nossa visão, levar essas questões para o povo brasileiro, mobilizar o povo.

PS do Viomundo: Escudo histórico da fundação da Petrobrás (com acento, sim!). É como os petroleiros escrevem Petrobrás até hoje, e o Viomundo, desde sempre, adotou.  ”Nunca aceitei a retirada do acento, que o academicismo da esquerda brasileira retirou por causa de uma tal de revisão da língua portuguesa!”, disse-me Guilherme Estrella, em mensagem pelo WhatsApp. Conceição Lemes

*Esquerda Petista é uma revista publicada sob responsabilidade da direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda.

[1] Dutra foi senador pelo PT e presidente do partido. Faleceu de câncer aos 58 anos.

[2] Petrobrás Mineração S.A., subsidiária extinta em 1990. Extraía cloreto de potássio em Sergipe.

[3] Ernesto Geisel, general de Exército e um dos expoentes da Ditadura Militar (1964-1985). Sucedeu

[4] Garrastazu Médici como ditador, exercendo o cargo de “presidente da República” no período 1974-1979.

[5] Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

[6] Agência Central de Inteligência do governo norte-americano.

[7] Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP.

[8] Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.

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Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

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