Giuliana Alboneti, emocionada com a conquista de Francia na Colômbia: “Está na hora da nossa faxina! Precisamos abrir janelas e portas, erguer móveis e começar no Brasil”

Por Giuliana Alboneti*

Desde o último domingo, 19 de junho, volta e meia, passa pela minha cabeça o discurso de Francia Márquez, após declarada a vitória da chapa Pacto Histórico na Colômbia.

E, claro, sempre me emociono.

Fala firme, consciente. Uma energia sideral.

A mobilização das mulheres colombianas em torno de uma grande frente feminista —  La Juntanza Feminista — foi decisiva para a conquista de Gustavo Petro e de Francia no segundo turno.

Acompanhei atentamente, via página da Juntanza em rede social, as muitas lives feitas com milhares de mulheres que se organizaram em grupos de trabalho e ações por todas as cidades do país.

Como eu adoraria estar presente à comemoração que brindou a vitória histórica de Francia e Petro!

Quem me conhece sabe que eu amaria saber qual o cheiro dessa noite inesquecível.

Essa curiosidade olfativa talvez se deva aos rigorosos cuidados de higiene que minha mãe tinha com a nossa casa.

Pense num nariz aguçado.

Para o preto, a limpeza é a fronteira com o mundo cheiroso e limpinho em que vivem os não negros independentemente de terem ou não tomado banho.

Tenho que colocar também nessa conta olfativa os anos que trabalhei como diarista.

Cada casa tinha um cheiro, não me esqueço de nenhum deles.

Quem trabalha como empregada doméstica, seja por dia ou mensalista, deveria figurar na classificação brasileira de ocupações profissionais como administradora de caos privado.

Tem que chegar antes das sete da manhã, almoçar em 15 minutos e só reduzir o ritmo quando o último pano usado estiver devidamente limpo e pendurado no varal.

No Brasil, você é contratada para fazer e organizar num único dia tudo aquilo que os donos da casa não fazem nem fariam em semanas.

Limpar e organizar são também tarefas que devem ou, pelo menos, deveriam fazer parte das obrigações de um governo.

Nesse quesito, Francia (ela trabalhou como empregada doméstica) e tantas outras que são ou já foram administradoras de caos privado (com ou sem vínculo formal de trabalho), sabem bem o tamanho e o peso da missão que é dar conta de tantas e extenuantes atividades ao mesmo tempo.

Aqui, luzes neon, por favor. 

O trabalho doméstico é um trabalho sem fim. Você limpa, limpa, e não dura muito, não.

Por isso, a manutenção é indispensável. Exige disciplina. E os donos da casa precisam ter esse compromisso. 

Pois lá, na Colômbia, agora, vai começar uma nova gestão do caos, pois não há outra classificação possível para a realidade da nossa América Latina.

Trabalho árduo. Que missão!

Só que, desta vez, uma mulher latina e negra estará na vice-presidência do país.

Francia é advogada (como eu) e já fez muita faxina na casa de outras pessoas (também como eu).

Seguramente, mais um passo na virada histórica que começou há muito tempo quando a primeira mulher negra não obedeceu, não se submeteu e enfrentou a fúria do colonizador.

Ladeada por pessoas tão negras quanto ela, Francia, em seu discurso memorável no último domingo, saudou todas e todos aqueles que morreram lutando e sonhando com um governo popular comprometido com justiça social.

Consciente da responsabilidade que a vitória representa, ela reforçou o compromisso com as pautas das mulheres feministas numa perspectiva antirracista, sem entrelinhas.

Essa vitória muda a cena, o cenário e os atores. O trabalho está só começando.

Francia e Petro estão com baldes e vassouras nas mãos, o povo abriu as portas da nação para que a limpeza e a organização comecem.

A ancestralidade vence todas as vezes que não desistimos, e vence mais uma vez quando persistimos.

Vivir sabroso não será nada tranquilo, vigiar é pouco. Além de olhar com muita cautela o número de votantes na chapa que perdeu, há que se cuidar mais ainda dos interesses externos no insucesso do governo vencedor.

Por aqui, não temos uma chapa tão representativa quanto a vitoriosa na Colômbia, mas não brindaremos com menos alegria a tão esperada eleição presidencial em outubro.

Longe, bem longe de uma redenção, nós, ao menos, nos livraremos das botas sujas que transitam pelas nossas casas.

Quem consegue viver bem, com saúde, num ambiente tão bagunçado e confuso, como na casa chamada Brasil?

Sim, as pessoas estão adoecidas. Muitas desacreditadas, não levam fé nem em si próprias.

Há restos de tudo pelos cantos, roupas sem lavar largadas até na cozinha, sem esquecer daquela garagem (o golpe de 2016!) cheia de coisas quebradas para consertar.

Nos últimos anos arruinaram a previdência social, sistema único de saúde, educação, direitos trabalhistas.

Precisamos para dar fim ao projeto nefasto de fome e morte que suga a vida dos mais vulneráveis e dos mais expostos.

Mais uma vez, o “serviço de casa não tem fim”, como dizem as donas de casa.

No final da tarde, a gente desiste, entrega o corpo para o cansaço. 

Mas, logo na manhã seguinte, retoma o trabalho, pois nem sempre contamos com alguém para administrar o nosso caos doméstico.  

Ninguém gosta de faxina, todo mundo gosta de casa limpa.

Assim como não gostamos de perder conquistas, queremos manter os direitos garantidos.

E, para isso, não há outra saída. É preciso abrir as janelas e portas, erguer os móveis e começar os preparativos, está na hora da nossa faxina!

*Giuliana Alboneti é advogada em Curitiba (PR) e feminista.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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