Estela Scandola: Mulheres em andanças, alianças e danças sem a romantização tão afável ao capitalismo e machismo

Por Estela Scandola*

Mulheranças pode ser uma coluna, uma fila ou até mesmo uma roda, espiralada ou não…

O que quero de verdade verdadeira é que sejamos circulares… Seria eu, então, uma circulista?

Desses círculos de conversas sem acabamento, podemos ir papeando sobre as necessidades e as ganas do viver e que nos fazem cerzir as fortalezas físicas, emocionais, ancestrais, comunais que as mulheranças precisam para pisar no barro das andanças nos chãos do Sul.

Nessas caminhadas, mesmo quando em solitude, é em nossa casa-corpo, o lugar que experimentamos todas as mulheranças. E, vívido de afazeres, vamos compartilhando os (des)aprenderes com nossa teia e fazendo o bordado que nos mantém quase sempre de pé…

E em sangra, quase sempre sem choro ou reclamo, somos nosso escudo e lança na venda da nossa força e nossa vida. E vemos tombar tantas compas pelas armas autorizadas legal e socialmente.

Será por isso que, na maioria das mulheranças, sob o jugo moral que tanto nos controla que cuidamos sozinhas ou em bando de mulheres, de nós mesmas, das demais pessoas, dos grupos que nos requerem das redes que tecemos e da Pachamama?

Então, pra segurar o tranco do dia-a-dia, o canto e as mãos das demais nos socorrem prá seguir em esperanceio e cuidando, sem parar.

Esse cuidado que tanto des-valor foi sedimentado pelo capitalismo não apreçou a vida.

E as fêmeas, ainda que sigam ardendo sob o aquecimento global, tecem em rodas de tererê e de boteco as possibilidades de resistir e avançar em direitos, risos e até gritos públicos…

É verdade que muitas gentes se assustam com nossa alegria em tempos de desgraceira.

E pior: ainda teimam em não enxergar que há brilhantes e pontilhadas mulheridas.

Sim, há karoshi em mulheres que ainda não foi percebido, diagnosticado e, portanto, segue negado.

A maioria de nós é segregada às doenças advindas da reprodução e da sexualidade e, assim, o controle dos corpos segue pelo viés biomédico, individual e descontextualizado.

E há o crescente feminicídio e violências que imputam em nossas costas…

Essa canga que tanto se naturalizou nos mantém aquietadas, transformando-nos em sinuelo para conduzir os bravos e nos dão prêmio de reconhecimento… até nos chamam de virtuosas, guerreiras, fortes…

É disso que se trata a coluna circulista Mulheranças: há que se falar das dores, discriminações, desigualdades… e das respostas que as mulheres têm construído…

Também tirar as crostas históricas que normalizaram o nosso viver sem o direito de ter direitos, mesmo quando os dedos tortos expressam o que foi cerzir o tecido que se esgarça a cada hora, todos os dias…

Com linhas de todas espessuras, queremos que os bordados que enfeitam os furos de cada tela possam ir expressando as alegrias que tanto incomodam quem ainda não consegue suportar as gargalhadas e as danças que estamos colorindo, contorcendo os nossos corpos e envolvendo as demais.

Talvez pela necessidade de deixar ferver os pensamentos, brotar as palavras e escrevê-las que esta circulista não é prosa nem verso…

Esta circulista é uma expressão de mulheranças que vai proseando e versejando sem classificar…

É certo que muitas mulheres ainda não percebem a mulherança e a maioria, mesmo sendo tecelã da vida de muitas pessoas, não se mulhereceu.

Esse exercício dói, pois nos exige tomada de consciência dos lugares das humanas em Pachamama – os autorizados, os proibidos e aqueles que só ocupamos depois de sangue escorrido.

Isso é como nos rasgar inteiras… em casa-corpo, história, emoção…

Nesse rasgar e remendar, precisamos do pertencimento, de um lugar que nos dê significado ao que somos e o que podemos ser… Podemos emprestar o sentido tekohá dos Guarani?

E talvez seja dos mesmos Guarani que compreendemos o oguatá da mulherança: saímos em busca de outros lugares sem deixar o território que é nosso, buscando outras que já crocheteiam suas múltiplas vidas… vamos juntando o que sabemos e o que nos ensinam.

E, assim, construindo a nossa colcha multicolorida.

Nós, mulheres de andanças, danças, alianças, bonanças, estamos para além da romantização da bondade… tão afável ao capitalismo e ao machismo…

E, mesmo que nos digam o contrário, somos do mundo da amorosidade, ou seja, cuidamos apesar de…

Na Mulherenças, estamos no arco do cuidado de si como proteção, resistência e responsabilidade com a vida… seguimos sendo coluna, fila, roda…e circulamos!

Escrever em Mulheranças requer freadas ao que se quer dizer para reafirmar em consertanças que não se sabe de tudo… e, mesmo em permanente alteridade, ainda não se é capaz de sentir, de compreender as outras em suas essências…

Haja reticências para dar conta de tantos pensares que hão de vir!

A Mulheranças pode ser, sim, uma coluna circulista de falas e silêncios entre mulheres com muitas mulheres, marcadas pelos corpos históricos e que se encontram nos quintais de possibilidades…

Mulheranças nasce neste centro do mundo que são as fronteiriças do Mato Grosso do Sul, onde tantas mulheres que ainda não mulhereceram vivem e miram a palhoça toda com seu modo de ser e viver na latinidade ameríndia…

Sim, vamos mulherecer juntas, falando desse viver com útero, ovários, trompas, vulva, vagina… e sobre os seus significados em muitas vidas que vivem em nós… inclusive de quem não tem todas essas partes e mulherece…

Mas esta será a Mulherança da próxima escrevinhagem.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

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