Carlos Cleto: Como foi que tudo deu errado no Brasil?!

Da Redação

O advogado e historiador Carlos Cleto é um ponto fora da curva.

Frequentemente, amigos e amigas escrevem-lhe, pedindo informações para tentar entender melhor a situação do Brasil atual.

Por isso, decidimos publicar as respostas. Uma série de cartas que Cleto tem enviado a eles.

O conteúdo delas é muito rico. Ensinam muito.

Postamos a primeira na sexta-feira retrasada, 19 de agosto: Mesmo com soldados de Hitler invadindo Paris, Drummond anteviu: “Havemos de amanhecer”. Nós também podemos

Traz o poema “A Noite Dissolve os Homens”, do gigante Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

Pertence ao livro “Sentimento do Mundo”, de 1940. Foi escrito após Paris em mãos dos nazistas.

Num PS, Cleto fez questão de frisar: “Eu sou só bibliotecário. As honras são do sujeito que escreveu esse poema e ainda teve a coragem de publicar em plena ditadura do Estado Novo, Drummond, o Poeta Maior”.

E vamos já à segunda carta, que começa abaixo. Ao final dela, atente ao PS1 do Viomundo.

COMO FOI QUE TUDO DEU ERRADO NO BRASIL?

”Querida amiga,

— Como foi que tudo deu tão errado no Brasil? –, você me pergunta.

Bem, a resposta é longa. As desgraças vêm de longe…

O escritor francês Maurice Druon, em seu romance histórico “Quando um Rei Perde a França” (veja PS2 do Viomundo), diz:

“Certas desgraças que se abatem sobre os povos são tão avassaladoras e cruéis que parecem ser manifestação da Ira Divina. Mas, dentre essas desgraças, muito raras são aquelas que não têm suas garras firmemente cravadas no passado.

Como uma doença insidiosa cujos sintomas ainda não se fizeram sentir, vão tomando conta do organismo, até o dia terrível em que se manifestam.

Deus nada tem com essas desgraças que os homens atraem sobre si próprios, longamente cevadas pela cupidez, pela ambição e pela soberba. Não vos enganais: as grandes desgraças vêm de longe!”

O inesquecível Darcy Ribeiro (1922-1997) nos deixou um livro essencial, “Aos Trancos e Barrancos Como o Brasil Deu no Que Deu”.

Darcy conclui esse livro com um resumo do Brasil que diz muito sobre ele mesmo, sobre a argúcia e a inteligência daquele gênio inquieto e brilhante:

“O Brasil cresceu visivelmente nestes oitenta anos. Cresceu mal, porém. Cresceu como um boi mantido, desde bezerro, dentro de uma jaula de ferro.

Nossa jaula são as estruturas sociais medíocres, inscritas na Constituição e nas leis, para compor um país da pobreza na província mais bela da Terra. Se continuarmos sob a vigência destas leis, no Brasil do futuro a maioria da gente nascerá e viverá nas ruas em fome canina e ignorância figadal, enquanto a minoria rica, com medo dos pobres, se recolherá em confortáveis campos de concentração, cercados de arame farpado e eletrificado. Entretanto, é tão fácil nos livrarmos dessas teias, e tão necessário, que dói nossa conivência culposa. Vamos passar o Brasil a limpo, companheiros”.

Darcy escreveu essas palavras em 1980. Mas, tendo sido anistiado em 1979, e antevendo o fim da ditadura militar, concluía com aquela convocação, “Vamos passar o Brasil a limpo, companheiros”.

Agora, resta entender por que a esperança de Darcy continuou irrealizada, 42 anos depois, neste Brasil em que nada mudou quanto à apocalíptica previsão de que “a maioria da gente nascerá e viverá nas ruas em fome canina e ignorância figadal, enquanto a minoria rica, com medo dos pobres, se recolherá em confortáveis campos de concentração”.

Em 1995, pouco antes de partir, Darcy elaborou uma explicação em “O Brasil como Problema”:

“O desafio maior que enfrentamos é o de reestruturar e aperfeiçoar o Estado para a condução da economia, revertendo seus pendores privatistas e elitistas, para fazê-lo olhar, antes de tudo, para o povo e suas carências.

Com efeito, nos últimos anos, dobrou-se a participação dos mais ricos no PIB e reduziu-se à metade a dos brasileiros mais pobres.

O contraste é tão gritante que passamos a ser apontados internacionalmente como exemplo de Estado e Nação irresponsáveis, que, gerindo um País riquíssimo, tem a distribuição de renda mais caiei do mundo.

Tinha de ser assim, uma vez que a parcela do PIB que remunera o capital também dobrou e a que corresponde aos salários se reduziu à metade. O salário mínimo perdeu 50% do seu poder de compra e maior ainda foi a redução dos salários em geral.

(…)

Este é o saldo das décadas de política econômica neoliberal, que se quer aprofundar ainda mais, privatizando as empresas públicas que dão sustentação à economia nacional, substituindo os monopólios públicos por monopólios privados.

Tudo isto com a promessa mirabolante de uma prosperidade preterida para quando os ricos, enriquecidos até o fastio, se disponham a dividir o bolo de seus lucros.

Nessas circunstâncias, nada é mais urgente no Brasil que uma reforma radical do Estado, simultaneamente com a definição de um novo modelo econômico, fiel ao povo brasileiro.

Não a reforma que os neoliberais propõem, destinada a agravar o privatismo desvairado, o lucrismo insaciável.

Indiferentes à falência de nossa economia desnacionalizada, proclamam, orgulhosos, que o capital não tem pátria.

Mais indiferentes ainda à pauperização de todos os assalariados brasileiros e à decadência de nossos já precários serviços públicos de saúde, de educação, de moradia e de previdência, o que prometem de fato, para mais lucrarem, é miséria ainda mais vil para o povo brasileiro.”

Agora, resta-me tentar explicar como é que essas palavras são tão atuais que poderiam ter sido escritas hoje !

1) Começamos com uma péssima saída da ditadura, muito bem descrita por Jorge Zaverucha em “Rumor de Sabres”, um livro fundamental que quase ninguém leu.

Da ditadura, herdamos a pior classe política:

a) de um lado, os governistas da ARENA/PDS, o Partido da Tortura, da Censura e da Roubalheira, repentinamente transformados em PFL.

Essa gente era capaz de fazer literalmente qualquer coisa para manter suas fatias de Poder. E a ditadura pagava esse apoio cego e canalha com a tolerância ao negocismo, nepotismo e corrupção;

b) de outro, MDB/PMDB, onde muitos farsantes que cumpriam o papel de oposição consentida e eram bem pagos por isso.

Leonel Brizola dizia que “Quem não perdeu a vergonha na cara foi cassado. Quem não foi cassado perdeu a vergonha na cara”. Não se pode esquecer que Ulysses Guimarães, o “Senhor Diretas”, votou em Castelo Branco para Presidência da República na eleição indireta de 11 de abril de 1964. Uns e outros eram um belo bando de Justos Veríssimos, só
interessados em lucrar.

Aí, quando os generais se foram, o Brasil passou a ser governado por uma trupe de políticos interesseiros, cínicos e venais, e esse sistema mostrou-se cancerosamente capaz de se reproduzir, a medida que os anos passavam.

2) Prosseguimos com a cancerosa capacidade desse sistema perverso de se reproduzir.

É o que é pior: esse sistema putrefato herdado da ditadura não deixa qualquer alternativa para a mudança, porque os anseios populares até podem ser expressos aqui e ali em alguma eleição majoritária, em qualquer nível que seja.

Mas, nas eleições parlamentares, a máquina política continua controlando quem vai ser eleito.

São sempre os mesmos, uma massa disforme de políticos sem cara, sem representatividade, sem qualquer coisa que se pareça com Espírito Público. Foram “Centrão” na Constituinte com seu símbolo Roberto Cardoso Alves, continuaram sendo “Centrão” com a quadrilha de Temer, com Rodrigo Maia, e agora continuam os mesmos com Lyra.

3) Junte a isso um sistema eleitoral perverso, que impede a real manifestação da vontade popular. Isso é feito através do malsinado “voto proporcional”, que destrói qualquer possibilidade de análise de “causa x conseqüência” no voto popular.

Esse sistema faz com a grande maioria dos eleitores “perca” seu voto, pois votam no amigo, no pastor, no líder comunitário, no líder futebolístico, e acabam elegendo pessoas que nem conhecem.

Depois, dizem que o brasileiro não sabe votar…

Mas, como votar bem, se nosso sistema eleitoral é tão abstrato e ininteligível que ninguém consegue entender as conseqüências de seu voto ?

4) Daí nasce a antipolítica. Não admira que a população acabasse tomando ódio disso tudo; ano após ano, o Brasil foi tomando raiva dos políticos.

Junte-se esse ódio disforme com uma grande mídia estupidificante e com uma educação pública de baixa qualidade e você obtém uma multidão furiosa animada por um anseio de mudança que não tem objetivos claros, apenas um sentimento amorfo de que tudo isso que está aí não presta.

Não admira então que essa “multidão furiosa animada por umanseio de mudança que não tem objetivos claros” acabe se voltando para alguma espécie de líder carismático; esse roteiro histórico/histérico já é conhecido. São as raízes dos fascismos.

Há um trecho da filósofa Hanah Arendt (1906-1975), em “Origens do Totalitarismo” sinistramente aplicável à loucura destes dias:

“A essa aversão da elite dos intelectuais pela historiografia oficial, à sua convicção de que nada impedia que a história, fraudulenta como era, fosse usada como brinquedo por alguns malucos, deve acrescentar-se o terrível fascínio exercido pela possibilidade de que gigantescas mentiras e monstruosas falsidades viessem a transformar-se em fatos incontestes, de que o homem pudesse ter a liberdade de mudar à vontade o seu passado, e de que a diferença entre a verdade e a mentira pudesse deixar de ser objetiva e passasse a ser apenas uma questão de poder e de esperteza, de pressão e de repetição infinita”. (minha tradução do texto em inglês)

É importante ter em mente esse fascínio pela irracionalidade.

O descompromisso com a razão que decorre daí é orgástico. O asno sexualmente frustado e economicamente fracassado zurra “agora eu posso falar tudo que eu bem entender e sempre estarei certo !”.

Sobre esse tipo de gente, Stefan Zweig (1881-1942) dizia:

“Mas é bastante possível que um poder mais profundo e mais secreto estivesse por trás desse frenesi. Essa maré rompeu a Humanidade tão rápida e profundamente, espumando sobre a superfície, e revolvendo as profundezas, os subconscientes instintos primitivos do animal humano — aos quais Freud tão significamente chamou “a Revolta contra a Cultura”, o desejo de romper com o convencional mundo burguês de regras e códigos, e permitir os primitivos desejos de sangue saciarem- se à vontade.” (minha tradução do texto em alemão).

Isso livra o discurso e o debate de coisas como “fontes”, “lógica”, “razão”, “fatos”, e permite que qualquer indigência mental possa ser gritada sem arrependimento.

E também permite que as frustrações sexuais dos machos insatisfeitos (que odeiam as mulheres porque os rejeitam) e dos homossexuais irrealizados (que odeiam todo mundo) sejam sublimadas.

De certa forma, ISSO É PODER.

Esse fascínio pela irracionalidade tem outra vantagem para seus praticantes: elimina as limitações antes impostas por seus intelectos vulgares e por suas formações parcas, e lhes dá a certeza de estarem sempre certos – já que o certo e o errado são desapropriados do mundo racional a que pertenciam e transformados em conteúdos pastosos, dúcteis à Vontade de quem os grita.

Com isso, esses elementos de intelectos vulgares e de formações parcas podem deixar de lado seus bem justificados complexos de inferioridade e sentirem-se mais certos do que jamais lhes ocorrera antes. E podem também exsudar suas frustrações sexuais em um machismo boçal e primitivo, mas certamente prazeroso.

Claro, esse prazer, a que acima chamei de orgástico, tem como preço a irracionalidade absoluta!

Porque qualquer pitada de racionalidade quebrará o encanto, transformando a carruagem em abóbora, e devolvendo aqueles elementos à indigência e à frustração.

Afinal, Hannah Arendt também adverte que “A propagandatotalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção”!

Por hoje, paro por aqui, antes que eu vomite, lembrando de Stefan Zweig, em “O Mundo de Ontem”:

“Nós da nova geração que temos aprendido a não ser surpreendidos por qualquer jorro de bestialidade, nós que a cada novo dia esperamos que as coisas estejam piores do que véspera, somos decididamente mais céticos quanto à possibilidade de improvimento moral da Humanidade.

Nós devemos concordar com Freud, para quem nossa Cultura e Civilização eram meramente uma fina camada, passível de ser perfurada a qualquer momento pelas forças destrutivas do Mundo Inferior.” (minha tradução do texto em alemão)

É algo terrível, mas Stefan Zweig está certo nessa definição do horror que nos ameaça, as “forças destrutivas do Mundo Inferior” cuja estupidez está além de qualquer compreensão racional.

Depois volto ao assunto.

Abraços.

Cleto.

PS 1 do Viomundo. A propósito da primeira carta (Mesmo com soldados de Hitler invadindo Paris, Drummond anteviu: “Havemos de amanhecer”. Nós também podemos), Stela Costa, grande amiga de Carlos Cleto, escreveu-lhe:

Parabéns!

Aproveitei para ler os outros textos indicados. Você, como de costume, muito atento às conexões da história.

O texto apesar de relembrar momentos tristes e marcantes — tanto nas palavras como nas imagens — é como em um profundo mergulho em um ambiente sem ar. Ao final, há a sensação da possibilidade do retorno à superfície respiratória. 

Stella Costa é museóloga por formação, mas trabalha como Programadora Cultural no SENAC/SESC.

Segundo Cleto, “Stela está entre as pessoas mais cultas que já conheci, mora em uma verdadeira biblioteca, cercada por milhares de livros”.

PS 2 do Viomundo: “Quando um Rei Perde a França”, foi lançado aqui pela editora Bertrand Brasil. É o sétimo e último volume de ”Os Reis Malditos”, de Maurice Druon, considerada uma das séries históricas mais famosas em todo o mundo.

Publicação de: Viomundo

Lunes Senes

Colaborador Convidado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *