Anjuli Tostes: Meu amigo Enrique Dussel voou neste domingo
Por Anjuli Tostes*
Há um ano e meio, o Professor Enrique Dussel me recebeu para um café da manhã em sua casa, um jardim frondoso, brilhante e cheio de livros, em Coyoacán, Cidade do México. Nessa conversa, me concedeu a honra de aceitar coorientar minha tese de doutorado.
Ontem, meu amigo, um pássaro cheio de cores e luzes nos olhos, voou.
Dussel deixa um contributo inestimável à construção de uma filosofia de libertação e de realização da Alteridade negada “do índio, do escravo africano, do mestiço humilhado, do camponês empobrecido, do trabalhador explorado, do marginal amontoado por milhões miseráveis de cidades latino-americanas contemporâneas”.
Desde que o escutei pela primeira vez em uma Conferência no Auditório da Faculdade de Direito da UnB, as ideias de Dussel promoveram um despertar que não é apenas acadêmico, mas, também, humano.
A filosofia de Dussel fornece ferramentas indispensáveis ao pensamento crítico latino-americano.
Ao situar o nascimento da Modernidade em 1492, ano do “encobrimento” do Outro, o Professor Enrique Dussel desencobre as violências, silenciamentos e exclusões que a história colonial mercantilista e seu mito civilizador impuseram aos povos do Sul Global, e que a Modernidade segue promovendo dentro de uma “nova ordem mundial” dependente, também baseada em uma razão dominadora.
Para Dussel, a superação desse estado de coisas se dará a partir da libertação da Alteridade negada “do oprimido, do excluído, do outro” na Modernidade.
Da construção da “Transmodernidade” como novo paradigma, transcendência do caráter emancipador racional europeu, projeto mundial de libertação política, econômica, ecológica, erótica, religiosa e epistemológica para os povos periféricos.
“Agora é preciso mudar a ‘pele’, ter novos ‘olhos’. Não são mais a pele e os olhos do ego conquiro que culminará no ego cogito ou na ‘Vontade de Poder’. Já não são mãos que empunham armas de ferro, e olhos que olham das caravelas dos ‘intrusos europeus’ e gritam: ‘Terra!’ com Colombo. Agora temos que ter a suave pele bronzeada dos caribenhos, dos andinos, dos amazônidas (…). Temos que ter os olhos do Outro, de um outro ego, de um ego do qual devemos reconstruir o processo de sua formação (como a ‘outra-cara’ da Modernidade ) (…). Trocar de pele como uma serpente, mas não a serpente perversa traiçoeira que tentou Adão na Mesopotâmia, mas a ‘serpente emplumada’, a Dualidade Divina (Quetzalcoatl), que ‘muda de pele’ para crescer. Vamos mudar a pele!”
(Dussel, E. (1994). “1492 : el encubrimiento del otro: hacia el origen del mito de la modernidade”. La Paz: UMSA. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. Plural Editores. Pág. 84-85.)
Dussel pede que tomemos como próprios os olhos do povo oprimido, os olhos dos “de baixo”.
Pássaro bonito, sábio sacerdote tolteca, “libertador do pensamento crítico”, segue voando dentro de nós!
*Anjuli Tostes é membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), auditora da Controladoria-Geral da União e doutoranda em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa
Publicação de: Viomundo