Ângela Carrato: Tarifaço mostra que a mídia subimperialista do Brasil continua entreguista

Por Ângela Carrato*

Em 1º de agosto entra em vigor o tarifaço de 50% sobre os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos, conforme anúncio feito por Donald Trump.

Se ele não voltar atrás, setores da nossa economia, em especial suco de laranja, café e carnes, serão duramente atingidos. Os consumidores estadunidenses também serão atingidos, uma vez acostumados com esses produtos em suas mesas. Some-se a isso o aumento do índice inflacionário naquele país.

Até o momento, Trump não deu o menor sinal de que pretende negociar ou rever sua posição, como tem acontecido com outros países também sobretaxados pelos Estados Unidos.

Ao contrário do que alguns possam acreditar, Trump não está preocupado com qualquer tipo de negociação. Seu objetivo com o tarifaço é pressionar o governo brasileiro para obter vantagens de leão.

Dito de outra forma, o velho imperialismo (que efetivamente nunca saiu de cena) está de volta, sedento por abocanhar tudo o que puder.

Quando, há poucas semanas, Trump anunciou o tarifaço, valendo-se de uma rede social, já deveria ter ficado claro que seu interesse passava longe das razões alegadas.

Num texto confuso e estranho, ele misturou (propositalmente) alhos com bugalhos. Dizia que a taxação visava combater a perseguição injusta a Jair Bolsonaro, às cobranças indevidas às big techs, às vantagens que o Brasil tinha no comércio com os Estados Unidos e se colocava como uma espécie de paladino na defesa da liberdade de expressão.

Nada mais mentiroso.

Imediatamente os nossos “patriotas”, capitaneados pela família Bolsonaro, se transformaram em defensores das medidas de Trump.

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A mídia corporativa registrou as posições deles e de aliados como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (aquele que colocou o boné MAGA), além de situações absurdas como um punhado de parlamentares de extrema-direita se reunirem no Congresso Nacional, tendo como pano de fundo uma bandeira azul com o nome Trump.

Nem uma menção, a mais leve sequer, ao fato de Trump querer atingir o Brasil para tentar enfraquecer a China, seu inimigo final. A importância que a China tem hoje – a segunda economia mundial e possivelmente a primeira a partir de 2030 -, está tirando o sono da Casa Branca e do deep state estadunidense.

Não foi mera coincidência que o tarifaço aconteceu dois dias após a declaração final da XVII Cúpula do BRICS, realizada no Rio de Janeiro, em 7 de julho, que enfatizou o fortalecimento da cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável.

Para a mídia subimperialista brasileira, o BRICS é quase um palavrão, acostumados que estão a se pautar pelos interesses dos Estados Unidos. Tanto que ela nem fez qualquer relação entre o tarifaço e a tentativa de Trump atingir o BRICS.

Mais grave ainda: meio como quem não quer nada, não faltou editorial nos “jornalões” da oligarquia defendendo que Lula deveria retirar o Brasil do BRICS.

Que o Brasil nunca teve uma mídia minimamente comprometida com os interesses de nossa população e do próprio país não é nenhuma novidade, mas a situação atual beira ao absurdo.

Nem o grande escritor e dramaturgo irlandês, Samuel Beckett, poderia imaginar situações como as que estamos presenciando.

A mídia corporativa brasileira, aquela comandada por seis famílias, ao invés de explicar para a população o que está acontecendo, pressiona o governo Lula para que capitule e tenta intrigar e lançar desconfiança em relação à lealdade de figuras do próprio governo para com o presidente.

É o caso da vergonhosa matéria da edição do jornal Valor Econômico (do grupo Globo), da sexta-feira (25/7). Ao mesmo tempo em que Lula, num evento na cidade de Minas Novas, no Vale do Jequitinhonha (MG), discursava defendendo os recursos minerais brasileiros da cobiça do imperialismo estadunidense, o jornal da família Marinho, sem qualquer evidência, sugeria que o vice-presidente Geraldo Alckmin admitia que esses minerais poderiam entrar nas negociações com Trump.

A fala de Lula não poderia ter sido mais direta e no lugar certo. Discursando para uma multidão na pequena Minas Novas, uma espécie de capital do Vale do Jequitinhonha, região pobre, mas que possui uma das maiores reservas de lítio do mundo, o presidente deixou claro que não podemos abaixar a cabeça para ninguém, valendo-se de uma metáfora que o povo trabalhador e sofrido de lá entende bem: “se abaixamos a cabeça, eles colocam a canga na gente”.

Já Alckmin respondeu a uma pergunta capciosa do Valor Econômico, sobre se o Brasil poderia negociar minerais como as terras raras no contexto do tarifaço. Ele não disse o que o Valor Econômico queria ouvir, mas pouco importa, quando o interesse é criar confusão e discórdia.

É importante lembrar que foi o vice da então presidente Dilma Rousseff, Michel Temer, o principal articulador do golpe que a classe dominante, com o apoio do Tio Sam lhe desferiu. Golpe pelo qual até hoje a população brasileira paga caro. Naquela época, a mídia alegava que os “patriotas” eram movidos pelo combate à corrupção, através da Operação Lava Jato.

Nada mais mentiroso.

Era intere$$e puro.

Uma das primeiras medidas aprovadas por Temer na presidência foi isentar as petroleiras estrangeiras de impostos em se tratando do recém descoberto pré-sal. Foi Temer, em parceria com os tucanos, a começar pelo então senador José Serra, os responsáveis por menos de 30% dos ganhos do pré-sal ficarem com o Brasil, além de quase terem destruído a Petrobras.

Ainda estamos longe de resolver estes problemas. Basta lembrar que mesmo o terceiro governo Lula tendo baixado o preço da gasolina nas refinarias, o fato de a Petrobras não possuir mais a BR distribuidora, isso impede que a redução se reflita no preço para o consumidor final.

Alckmin não é Temer, mas a família Marinho continua inimiga dos interesses da maioria da população brasileira como sempre foi. E ela não está sozinha.

Nos anos 1950 e 1960, esse tipo de jornalismo seria imediatamente identificado como “entreguista”, sinônimo de sem compromisso com o Brasil e disposto a entregar para o Tio Sam e seus aliados os nossos recursos naturais e minerais.

Vale dizer: um jornalismo que defendia a perpetuação do Brasil como colônia dos Estados Unidos, desde que os donos desta mídia pudessem ficar com uma parte, mesmo que pequena, do botim.

Daí o adjetivo subimperialista cair como luva para esta mídia.

A diferença era que nos anos 1950 e 1960, a extrema-direita estava em baixa no mundo, após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial e aqui no Brasil existia uma mídia que destoava do coro dos imperialistas. Mídia capitaneada pela Rádio Nacional, que pertencia ao governo federal, e pelo jornal Última Hora, do jornalista-empresário Samuel Wainer, com edições em sete capitais brasileiras.

Quanto mais estudo a história da mídia brasileira, mais fica nítido como ambos tiveram papel fundamental nos governos progressistas de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart.

Basta lembrar que a Rádio Nacional, que chegou a ser uma das cinco maiores do mundo, junto com a Última Hora, foram fundamentais para a vitória da campanha “O Petróleo é Nosso”, no início dos anos 1950, que defendia e conseguiu que fosse estabelecido o monopólio da União sobre este recurso mineral e a criação da Petrobras. Monopólio revogado pelo entreguista e queridinho da mídia, Fernando Henrique Cardoso.

Enquanto os verdadeiros patriotas se batiam pelo estabelecimento deste monopólio e pela criação da Petrobras, O Globo e as dezenas de veículos dos Diários Associados, do entreguista Assis Chateaubriand, criticavam os nacionalistas, defensores de nossos recursos minerais, com argumentos do tipo: não dispomos destes recursos.

Quando se provou o contrário, os novos argumentos passaram a ser: não dispomos de tecnologia para explorá-los. Algo como: melhor deixar os ianques cuidarem de tudo.

Se não fosse a Rádio Nacional ter lido, quase que imediatamente após o suicídio de Vargas, a sua carta testamento e a Última hora dar-lhe enorme destaque em edições sucessivas, possivelmente a mídia entreguista de então teria feito de tudo para ocultá-la.

Daí o ódio que esses dois veículos despertaram entre os entreguistas, a ponto da vitória do golpe civil-militar de 1964 significar perseguição e destruição para ambos e perseguição para os profissionais que se recusavam a fazer o jogo dos inimigos do Brasil.

Quase oito décadas depois, os argumentos da mídia entreguista continuam praticamente os mesmos.

Na edição de sexta-feira (25/7), o jornal O Estado de S. Paulo, traz como manchete “Contra tarifa, Brasil propõe mais comércio e investimento aos Estados Unidos”.

A publicação, que é uma das porta-vozes da burguesia paulista, noticia que há conversas reservadas entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos na busca por caminhos para evitar o tarifaço de 50%. Não faz nenhuma referência às pressões imperialistas e ainda sentencia que “Lula deveria falar com Trump”.

Possivelmente o Estado de S. Paulo gostaria de ver Lula na Casa Branca sendo humilhado como foi Wolodymyr Zelenski, o presidente da Ucrânia, poucos meses atrás, quando esteve lá para conversar sobre a guerra e foi obrigado a abrir mão do controle das terras raras de seu país para os Estados Unidos.

Além de levantar a voz com Zelensky, Trump iniciou um bate-boca e o chamou de “desrespeitoso com os Estados Unidos”, logo ele que tem sido um capacho, a ponto de jogar seu país e sua população numa guerra que interessa exclusivamente ao Tio Sam.

O conflito da Rússia com a Ucrânia é considerado, por quem entende um mínimo de geopolítica, como ação dos Estados Unidos contra a Rússia, valendo-se da Ucrânia e do extremista de direita, Zelensky.

Já imaginaram o que Trump poderia fazer com Lula, se ele se prestasse ao papel que a mídia golpista e entreguista brasileira gostaria de submetê-lo?

Já o jornal Folha de S. Paulo, outro porta-voz da burguesia paulista, praticamente esconde em uma notinha de capa que “os minerais estratégicos brasileiros estão na mira dos EUA”.

Isso não deveria ser a manchete? Pior ainda.

Com o entreguismo que caracteriza a publicação, ela noticia que o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos disse ao setor privado que “o governo americano tem interesse em minerais estratégicos no solo brasileiro”.

O entreguismo é tamanho que a publicação não tem sequer o cuidado de se referir a governo dos Estados Unidos, uma vez que americanos somos todos nós, da Patagônia ao Alaska.

Mas foi o jornal O Globo que se superou no quesito “entreguismo”.

Com a manchete “EUA manifestam interesse em minerais críticos do Brasil, e Lula rebate”, a publicação na edição de 25/7, tenta, como sempre, atritar Lula com o meio empresarial e apresentá-lo como radical.

Esta manchete só se torna perfeitamente compreensível, quando lida junto com a coluna de Flávia Andrade denominada “Janela de Negociação”. Indo direto ao ponto, o que a colunista da publicação da família Marinho propõe é que o Brasil deveria aceitar a hipótese da entrega das terras raras, que ela denomina de “uma fresta, até então imperceptível, para o diálogo”.

Diálogo????

Se a mídia corporativa brasileira tivesse um mínimo de vergonha na cara, deveria, nesta mesma edição do dia 25/7, ter desmascarado as razões alegadas por Trump em seu tarifaço com pelo menos duas noticias que se articulam.

A primeira, diz respeito ao depoimento do general Mário Fernandez, ex-secretário executivo da secretária-geral da Presidência da República no governo Bolsonaro, que admitiu em depoimento ao STF, ser autor do chamado plano “Punhal Verde e Amarelo”. Fernandez está preso e integra o Núcleo 2 da tentativa golpista em 8 de janeiro de 2023, que está sendo julgado.

Um depoimento como este, de alguém tão próximo a Bolsonaro, joga por terra o argumento de Trump de que Bolsonaro estaria sendo alvo de perseguição. Mas para não entrar neste aspecto, a mídia entreguista finge que tal depoimento não tem importância, mesmo que os alvos para serem mortos de acordo com o plano “Punhal Verde e Amarelo” fossem Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do STF, Alexandre de Moraes.

A segunda notícia se refere à condenação de Bolsonaro pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a pagar multa de R$ 150 mil em danos morais por dizer que “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas que viviam em área vulnerável de Brasília.

O ex-presidente também foi proibido pelo TJDF de usar imagens de crianças e adolescentes em campanhas ou incentivá-las em eventos públicos a reproduzirem gestos violentos. A decisão ainda pode ser alvo de recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como Trump também está às voltas com situações gravíssimas, como a de participar de uma rede de pedófilos comandada pelo criminoso sexual e magnata financista dos Estados Unidos Jeffrey Epstein, as semelhanças com Bolsonaro vão se tornando cada vez maiores.

Trump enfrenta denúncia do jornal The Wall Street Journal de que ele e Epstein eram bem mais do que simples conhecidos.

Epstein suicidou-se na prisão em 2019, onde aguardava julgamento por novas acusações de tráfico sexual.

Por publicar documentação sobre a amizade entre Epstein e Trump, o WSJ desencadeou a ira do ocupante da Casa Branca, que deu início a uma ação contra o jornal no valor de U$S 10 bilhões e proibiu o repórter da publicação de viajar com ele e demais jornalistas que o acompanham no avião presidencial em sua ida à Escócia.

A situação para Trump se complicou ainda mais, quando foi avisado por integrantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (equivalente ao Ministério da Justiça daqui) de que seu nome aparece várias vezes em correspondências com Epstein. Ele, que já havia prometido tornar público todo o arquivo de Epstein, recuou e quer manter tudo em sigilo.

Trump está conseguindo irritar até seus apoiadores mais ardorosos.

O caso está mexendo de tal forma com a opinião pública estadunidense, que dificilmente Trump conseguirá abafá-lo. O que pode acontecer é imprevisível.

Disso tudo fica ou deveria ficar uma lição para a entreguista mídia corporativa brasileira.

A obrigação dela é para com os fatos, doa a quem doer. O WST não é uma publicação de esquerda.

Longe disso. Trata-se de uma das bíblias do capitalismo, que integra o império midiático de ninguém menos do que o bilionário australiano Rupert Murdoch.

O WSJ poderia ter ficado calado sobre o assunto. Poderia. Mas não ficou. Ao quebrar a barreira do silêncio, a publicação obrigou que outros veículos também entrassem no caso. Essa é a grande diferença entre a mídia de lá e a mídia subimperialista daqui, incapaz de agir por conta própria e sem qualquer compromisso com o Brasil e o povo brasileiro.

Não por acaso, os grandes jornais estadunidenses permanecem vivos e influentes em plena era das big techs e das redes digitais, ao contrário das publicações europeias que de tanto colaborarem com os interesses imperialistas, estão em franco declínio.

Possivelmente destino semelhante seja o que aguarda a entreguista e subimperialista mídia brasileira e os seus “patriotas” de araque.

*Ângela Carrato é jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da ABI (Associação Brasileira de Imprensa)

Publicação de: Viomundo

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