Ângela Carrato: Assange livre e a hipocrisia desavergonhada da mídia e dos EUA, antes e agora
Por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo
A foto do ativista digital e jornalista Julian Assange beijando a esposa ao desembarcar em Camberra, na Austrália, livre da prisão no Reino Unido, onde permaneceu por 1901 dias, foi divulgada pela mídia corporativa nos mais diversos países do Ocidente como um happy end.
No Brasil, o jornal Estado de S. Paulo publicou a foto com grande destaque, acompanhada da legenda “Livre, Assange se declara culpado em ilha americana no Pacífico”.
Para a maioria esmagadora das pessoas que não acompanhou o caso – até porque a mídia corporativa fez questão de escondê-lo – a impressão que fica é de que Assange cometeu crime, finalmente admitiu o crime e recebeu uma espécie de indulto.
Dito de outra forma, ele é o bandido, enquanto as autoridades que o perseguiram e o encarceraram, são os bons mocinhos.
Nada mais equivocado!
JULIAN ASSANGE IS FREE!!
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— Free Assange – #FreeAssange (@FreeAssangeNews) June 26, 2024
Para jornalistas e pessoas que realmente prezam a liberdade de imprensa, Assange é o maior herói deste início de século XXI, pois foi capaz de desmascarar a hipocrisia de governos como o dos Estados Unidos, além de apontar os riscos que o poderio das grandes empresas de informática (ainda não se usava o termo big techs) significava para a democracia.
É importante recuperar alguns aspectos da trajetória e da luta de Assange para se entender o que estava e continua em jogo.
Ao contrário do que a mídia afirma, Assange nunca foi um hacker, no sentido popular do termo: pessoa capaz de invadir, roubar segredos e quebrar sigilos no ambiente digital.
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Desde jovem, integrou o chamado movimento cyberpunk, cujo objetivo era buscar a transparência para todas as ações, especialmente as envolvendo governos, diplomacia e guerras.
Foi com esse espírito que ele fundou e se tornou em 2006 o editor do site WikiLeaks, uma plataforma onde denunciantes anônimos poderiam partilhar informações e dados secretos.
Entre os documentos vazados e divulgados pelo WikiLeaks estava um vídeo mostrando, em abril de 2010, um ataque de helicóptero dos Estados Unidos, que matou uma dúzia de pessoas em Bagdá, incluindo funcionários da agência britânica de notícias Reuters.
Em junho, um especialista militar estadunidense chamado Bradley Manning foi preso por divulgar o vídeo considerado secreto.
Três meses depois, o WikiLeaks divulgou mais de 91 mil documentos, a maioria relatórios secretos dos Estados Unidos sobre a guerra no Afeganistão.
Isso foi seguido, em outubro, pela divulgação de 400 mil arquivos militares sigilosos dos Estados Unidos, contendo relatos da guerra no Iraque entre 2004 a 2009.
Mesmo diante das ameaças do governo dos Estados Unidos, os WikiLeaks continuaram divulgando milhares de telegramas diplomáticos que mostravam como aquele país e seus aliados agiam nos bastidores.
Aí teve início o calvário de Assange.
Apesar de a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos garantir a liberdade de imprensa, vários ocupantes da Casa Branca tentaram criminalizar veículos e jornalistas por divulgarem suas ações e seus podres.
Só que não obtiveram sucesso.
Foi assim no que ficou conhecido como Caso Watergate, em que dois repórteres do Washington Post mostraram as ligações da Casa Branca com a espionagem de adversários.
A série de reportagens levou à renúncia do então presidente Richard Nixon, em agosto de 1974, para se livrar do processo de impeachment.
Foi assim também com os chamados Papéis do Pentágono, em que a partir do vazamento de 14 mil documentos ultrassecretos do governo dos Estados Unidos sobre a história do planejamento interno e da política nacional adotada pelo país na época da Guerra no Vietnã, a Casa Branca tentou incriminar o responsável pelo vazamento, Daniel Ellsberg.
Analista militar, Ellsberg foi o responsável por um dos vazamentos de documentos mais impactantes da história estadunidense, ao provar décadas de mentiras contadas por presidentes sobre a guerra no Vietnã.
Como Assange, ele também foi acusado de espionagem, roubo e conspiração. Mas no seu julgamento, em 1973, o caso foi encerrado com base na má conduta do governo que para obter informações, invadiu o consultório do seu psiquiatra, em busca de evidências que o incriminassem.
As acusações contra Assange poderiam ter tido igual desfecho, pois não faltaram más condutas dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido contra ele.
Por que isso não aconteceu?
Tudo indica que a Casa Branca optou por transformar Assange em um “exemplo” para criminalizar e atemorizar quem pensasse em novos vazamentos de documentos secretos.
É importante lembrar que em 2013 veio à tona a espionagem que um dos órgãos de inteligência dos Estados Unidos, a NSA, fazia em todo o mundo.
O responsável foi um funcionário terceirizado, Edward Snowden que, como Assange, é um gênio em informática e se mostrou indignado com a invasão da privacidade de milhares de pessoas, entre elas chefes de Estados como a então primeira-ministra alemã, Angela Merkel, e a presidente brasileira, Dilma Rousseff.
A NSA também espionava empresas estratégicas, como a Petrobras, no período em que se preparava para fazer os primeiros leilões de campos do pré-sal.
O consagrado diretor de cinema estadunidense, Oliver Stone, dedicou um filme sobre o assunto, que tem o instigante título de “Snowden: herói ou traidor?”
Quem assistiu ao filme, não tem dúvidas. Snowden e Assange são heróis.
Exatamente por esse motivo, os Estados Unidos precisavam criminalizá-los.
Depois que diversos jornais publicaram as denúncias, Snowden, que estava em Hong Kong, pediu asilo político a vários países, entre eles o Brasil.
Acabou obtendo o asilo na Rússia, depois de permanecer 40 dias no aeroporto de Sheremetyevo, no “limbo”, por não possuir documentos para entrar em território russo. Seu passaporte havia sido revogado pelos Estados Unidos.
Assange parece ter demorado a perceber o que lhe aguardava.
Num primeiro momento, os órgãos de espionagem dos Estados Unidos tentaram transformá-lo em culpado por assédio sexual e estupro de uma mulher sueca. Ele chegou a ser preso, pagou fiança e foi libertado.
Foi então que deve ter se dado conta de que o objetivo daquela denúncia infundada era desmoralizá-lo perante a opinião pública.
Nesse momento, entendeu a gravidade da situação e buscou exílio. O Equador, país então governado por Rafael Correa, um político progressista, lhe pareceu uma boa solução.
Como não teve tempo para deixar Londres, onde se encontrava e dirigir-se ao país sul-americano, refugiou-se na embaixada do Equador naquela cidade.
Lá permaneceu de 2012 até 2019, quando o sucessor de Correia, no governo do Equador, Lenin Moreno, deu uma guinada à direita e aceitou as pressões dos Estados Unidos para prender o criador do WikiLeaks.
Moreno retirou dele a condição de exilado, o que permitiu que a Polícia Inglesa entrasse na embaixada e o prendesse.
Desde então, Assange estava na penitenciária de segurança máxima Belmarsh, em Londres, e passou a ser considerado uma espécie de inimigo público número um dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo em que a pressão da Casa Branca se intensificava para que fosse extraditado e julgado em Washington, em todo o mundo movimentos sociais entravam na luta em defesa de sua libertação.
Nunca houve argumento que justificasse a prisão de Assange. Como jornalista, ele tinha direito de divulgar as informações que obteve e o governo dos Estados Unidos nunca disse que o que divulgou era mentira ou não correspondia à realidade.
Tanto nos Estados Unidos como na maioria dos países e mesmo no Brasil prevalece o sigilo da fonte.
Vale dizer: o jornalista não tem que divulgar quem lhe forneceu dados ou informações, arcando, no entanto, com a veracidade ou não do que divulgar.
Assange não deveria ter ficado preso um único dia. Ficou sete anos exilado na embaixada do Equador, sem poder ir, sequer, ao jardim, e passou outros cinco preso.
Como os Estados Unidos não dão ponto sem nó, qual o motivo de sua libertação agora e da forma rápida como aconteceu, surpreendendo até seus advogados?
Em todo esse processo, o que sempre esteve em jogo foram os interesses e a hegemonia dos Estados Unidos no mundo. E foram eles que falaram mais alto para o presidente Joe Biden, que disputa a reeleição, tentar tirar proveito do caso.
Nesta quinta-feira (27/6) acontece o primeiro debate entre ele e Donald Trump, com vistas às eleições presidenciais de novembro.
Ambos não foram ainda oficializados como candidatos por seus partidos, mas é para garantir condições para tanto que Biden deu sinal verde para a negociação com os advogados de Assange.
Biden sabe que, para vencer, precisa melhorar sua imagem junto a setores progressistas do Partido Democrata e do próprio eleitorado, especialmente após os desgastes do envolvimento dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia contra a Rússia (na realidade uma guerra por procuração dos Estados Unidos contra a Rússia) e o apoio que dá ao genocida primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, contra os palestinos na Faixa de Gaza.
Do outro lado do Atlântico, o Reino Unido tem eleições marcadas para o próximo dia 4 de julho.
Todas as pesquisas apontam para a derrota do Partido Conservador, no poder a 14 anos, e para a vitória dos Trabalhistas.
Como o Reino Unido é uma monarquia parlamentarista, o nome mais destacado dos trabalhistas para assumir o governo é Keir Starmer, líder da oposição, conhecido advogado e defensor dos direitos humanos.
Se Biden quis tirar proveito da situação de Assange, o mesmo pode se dizer dos conservadores ingleses.
Eles temiam que, uma vez no poder, os trabalhistas adotassem, como uma de suas primeiras medidas, libertar o fundador do WikiLeaks.
Daí a rapidez e a sintonia absoluta entre a atuação das autoridades estadunidenses e as inglesas.
Assange está livre. Para ele e para todos nós que lutamos por sua liberdade, isso é o mais importante.
Ele precisa e merece um tempo para se recuperar e decidir se quer ou não continuar nesta luta.
Independente de qual seja a sua decisão, a contribuição dele foi imensa e vale frisar que parte dela nunca é devidamente mencionada.
Foi ele que, em 2011, num diálogo com o então presidente do Google, Eric Smith, denunciou o poderio das grandes empresas de tecnologia e como elas colocavam em risco a democracia, se não fossem devidamente reguladas.
Esse diálogo está publicado no livro “Quando o Google Encontrou o WikiLeaks” (2015), que inclui reflexões essenciais e super atuais envolvendo o poder das big techs, as redes sociais e o potencial para desinformar nelas presentes.
Assange está livre. Mas a luta que travou, com ou sem ele, precisa ter continuidade.
Mais do que nunca, os Estados Unidos tentam se valer do poder das big techs para manter sua hegemonia num mundo em profunda transformação.
Além dos segredos de estado, é essencial agora desvendar os segredos das guerras híbridas, entender como se dá a articulação entre redes sociais e o convencimento das massas, entre dominação e inteligência artificial. Sem isso, podemos dar adeus à democracia.
A liberdade de Assange fecha um capítulo nesta luta. Já o happy end não está sequer à vista.
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Publicação de: Viomundo